“Quem não quiser ouvir, tampe os ouvidos”, diz Sinistro

Por Marco Antonio L.

Do Sul 21

A vida sinistra de quem luta para criar um outro caminho

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Rachel Duarte

Ele poderia ter sido um jornalista, historiador ou advogado. Jovem de classe média do bairro Jardim Botânico, em Porto Alegre, Orlando Vitor Noal Neto acabou indo para outro caminho, depois de tentativas frustradas de ingressar na universidade pública e de ver a empresa em que trabalhava falir. Corretor de seguros, como a mãe, ele foi preso em 1999 acusado de receptação. No ano seguinte, o assassinato de um casal de noivos recaiu sobre seus ombros, já que ele tinha se envolvido com a moça seis meses antes do crime.  Culpado ou não, a sentença foi dada e Orlando foi condenado a 39 anos de pena sob acusação de ferir seis artigos penais. Hoje em prisão domiciliar, depois de 12 anos de cadeia, e em uma cadeira de rodas, ele luta para derrubar seu processo criminal, para tocar em frente à carreira de rapper e a entidade que fundou no cárcere e para reverter os danos físicos e emocionais herdados do sistema prisional.

O que separou a vida de Orlando da dos amigos de infância, que se afastaram diante da repercussão do duplo homicídio na imprensa, em 2000, não é fácil de resumir. Orlando diz que não teve direito à ampla defesa ou mesmo a responder as acusações lhe atribuídas na época. “Primeiro fui testemunha. Depois passei a ser suspeito do assassinato, depois me disseram que eu era o autor e no final o veredicto foi que eu fui o mandante do crime. A imprensa me condenou antecipadamente porque na época estava dando um tumulto com policiais envolvidos na CPI do Crime Organizado”, argumenta.

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Segundo Orlando, ele virou bode expiatório para abafar um escândalo e ser a resposta para a sociedade sobre o duplo homicídio que estampava as manchetes da época. A advogada contratada pela família de Orlando desde o primeiro processo criminal que respondeu, em 1999, advertiu que ele poderia se complicar com a Lei dos Crimes Hediondos, que na época não dava direito ao réu primário responder em liberdade. “Por isso foragi. Mas, me pegaram e eu caí aos 27 anos no sistema prisional. Eu passei por todas as casas prisionais do estado e nunca fui ouvido”, alega.

A mãe Maria Rosa dos Santos Noal, 60 anos, defende a inocência do filho e desde a condenação luta para limpar o nome de Orlando. “Eu passei em todas as portas que me indicavam. Abriam a porta. Mas, na hora que a porta que se fecha atrás de ti, o assunto morre. É como uma ouvidoria. Nunca ninguém pegou o caso para analisar. Não conseguimos nenhum recurso solicitado. Será que todo esse tempo, ele dizendo a mesma coisa, já não é prova suficiente para sermos ao menos ouvidos?”, questiona.

Fama de embolador

Por conta das incessantes lutas por recursos no seu processo, quando estava privado de liberdade, Orlando acusa ter sofrido represálias na cadeia. “Eu questionava a entrada do meu processo. Fazia recursos e os papéis eram vetados. Os meus familiares não podiam mais me visitar. Acho que não tem um cidadão que mais fez recursos e fez papel do que eu. Eu era conhecido como o jurídico da cadeia”, conta.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

A entrada de livros na Biblioteca e outras regras do sistema carcerário eram cobradas por Orlando. “Se tu não te manifesta, tu é tratado como todos e vira só mais um. Foi uma denúncia feita pela minha mãe, de forma anônima para eu não me complicar, que resultou na ida da Corregedoria ao Presídio Central para liberar a subida dos presos vindos do interior para as galerias. Quando não subíamos, os bretes ficavam lotados e ‘os caras’ faziam o que queriam com a gente”, relata.

Orlando também experimentou os dissabores de outras regras do sistema, as instituídas pelos próprios presos. Conflitos, agressões e castigos. “No sistema prisional aprendi a ser menos individualista e a ser mais solidário. Tu precisa se ajudar lá. Por mais que o outro não mereça, tu divide igual”, conta.

A descoberta do Rap como forma de expressão

Em meio à ociosidade da cadeia, logo nos primeiros meses de detenção, Orlando foi avisado na porta da cela de que haveria oficina de hip hop. Ele se candidatou a participar, de começo apenas como forma de se ocupar, já que não curtia o ritmo. “Eu sempre fui mais do rock. Mas os guris ouviam direto. Eu me obriguei a curtir”, brinca.

Ao primeiro contato com o hip hop, Orlando gostou mais do grafite do que do som. Com uma tatuagem do personagem Wolverine nas costas, ele imaginou que o seu destino seria desenhar. “Mas eu ouvi os caras fazendo o som, um freestyle, e me interessei”, diz. A primeira inspiração veio na identidade com o rapper paulista Dexter, famoso por gravar o primeiro CD de dentro da prisão e ter conseguido vida artística quando regressou do sistema prisional.

“Acharam que eu estava derrotado, quem achou estava errado”, Oitavo Anjo – Dexter.

Em 2005, Orlando aproveitou um projeto cultural realizado na cadeia para fazer uma publicação impressa independente denunciando a violência policial e os abusos que sofreu dentro da cadeia. O material foi exposto na Feira do Livro de Porto Alegre. “Foi minha primeira conquista depois de tantos anos tentando me expressar”, fala.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para canalizar a crítica de forma a produzir consciência social, Orlando passou a ser o MC Sinistro e criou o Instituto Parrhesia – Erga Omnes. A palavra de origem grega significa estado de liberdade e certeza diante de Deus. No latim, Orlando buscou o termo jurídico ‘erga omnes’, que significa ‘contra todos’.

Em 2007 Orlando participou de uma pré-seleção dos Mcs para a Paz e participou da gravação do primeiro CD. “Mas, como pintei o A da palavra rap com o símbolo da Anarquia, me tiraram do projeto. Eu sempre fui por não deixar me governarem. Sempre tive camiseta do anarquismo e tive esta convicção”, explica.

Quando já estava com as primeiras rimas feitas, aprovado no vestibular para História transformado para Direito e prestes a progredir para o semiaberto, onde poderia começar a frequentar as aulas, Orlando conta que teve um episódio de agressão dentro do sistema. Sem clarear o ocorrido, ele conta que acabou foragindo. “Não poderia voltar para cadeia pois eu estava sendo ameaçado de morte. Mandei um email para a psicóloga e disse que eu iria utilizar a internet, o rap e meus direitos para me defender e derrubar meu processo”, conta.

Desta vez, Orlando não voltou mais para o sistema prisional. Em março de 2010, um assalto no shopping Iguatemi lhe rendeu o preço mais alto a ser pago na vida. Foi baleado pelas costas ao fugir da polícia. “Eu posso ter regredido e hoje estar em uma cadeira de rodas. Mas tudo isso foi conseqüência do que eu passei”, desabafa.

De volta à casa da mãe, hoje em um sítio na cidade de Gravataí, Orlando está em tratamento para reverter o quadro de paraplegia. “Eu me sondo três vezes ao dia, uso fralda pois tenho incontinência urinária. Fico suscetível a pegar infecções”, relata.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Ele não parava em pé quando chegou. Chegou em casa para morrer. Eu cuidei. Me dedico a isso de forma integral. Ele está sem escaras e se movimentando porque consegui a fisioterapia com a Prefeitura e controlo a alimentação e medicação dele”, conta a mãe.

Sem o dinheiro da pensão da avó, que sustentava a mãe desde que trocou o emprego pela vida de mãe de um paraplégico, a família sobrevive de ajuda de amigos. A luta de Orlando é por uma nova cadeira de rodas, uma bolsa de estudos para cursar a faculdade e para instrumentalizar o Instituto Parrhesia. “A minha filha acha que eu sou uma pessoa ruim. Que sou um monstro. Eu fiz coisas erradas na minha vida. Mas eu paguei. Tô pagando. Hoje eu estou fazendo por mim, pela minha família e por todas as pessoas que não tem voz”, conta Orlando.

“Eu já perdi tudo que eu poderia perder”

O Instituto Parrhesia funciona da dedicação de Orlando, sua atual companheira e outros três regressos do sistema. Na casa dele, a garagem é improvisada para os encontros do grupo e as oficinas de DJ. O material foi doado por outros rappers gaúchos que conhecem a trajetória de Sinistro. “Ganhei os microfones, o toca disco e tudo que tenho é coragem e disposição para mudar”, conta.

As letras que compõem retratam a realidade da cadeia e da vida, mas, o principal elemento é a crítica ao sistema e as leis. “Eu faço rima com a Constituição. Não é só protestar e falar palavrão. Essa é a batida. Tem uns que usam o rap para protestar, para ganhar uma grana e para evoluir. Eu quero propagar o Artigo 5º”, fala, lembrando os direitos fundamentais de igualdade a todos os cidadãos.

A intenção de Orlando é transformar o Instituto Parrhesia em um ponto de cultura e de luta por acessibilidade. “Estou na luta para gravar a primeira música. Eu evolui para lutar pelas pessoas que estão com deficiência, que sofrem com a discriminação e a falta de acessibilidade. Eu já perdi tudo que eu poderia perder”, avalia.

“A vida da gente é de um jeito e pode ser outra. Eu tinha melhor condições antes e hoje eu busco melhorar. As coisas na minha vida acontecem uma atrás da outra. Eu não posso parar. Não tenho tempo para entrar em depressão”, se emociona a mãe Maria Rosa Noal.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Ao final da conversa de longas horas na casa de Orlando Vitor Noal, onde ele ainda cumpre pena em regime domiciliar, perguntamos quem cometeu o crime da sua vida. Após uma risada e um respiro ele diz: “Eu optei por andar em um caminho tortuoso e para eu não seguir caindo eu tive que optar por outro caminho. Mas quem matou aquelas pessoas não fui eu. Pelo que eu fiz, eu to pagando. Mas, na real, até já paguei muito. Agora estou fazendo um projeto de inclusão para que ninguém caia como eu caí”.

“Quem não quiser ouvir tampe os seus ouvidos, é o grito dos excluídos”, letra de Sinistro.

Luis Nassif

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