Quem pagará as custas processuais da Lava Jato? Por Sergio Saraiva

Por Sergio Saraiva

Desafio à autoridade – o Supremo e nosso ordenamento jurídico estariam pagando os custos dos excessos da Operação Lava Jato?

Têmis

Em março de 2016, preocupava-me a desenvoltura com que a Lava Jato avançava sem freios hierárquicos sobre as garantias individuais dos investigados. Lembrava-me a “comunidade de informações” da época da ditadura, que não respondia a ninguém além de si própria, tornando-se uma ditadura dentro da ditadura. “O Monstro” como definida pelo seu criador, o general Golbery do Couto e Silva. Monstro que um dia comeu o próprio general.

Parecia-me claro que a Lava Jato estava se tornando um Judiciário dentro do Judiciário.

“Frente a atual crise política, creio que, tanto quanto questionar o que restará dos Poderes Executivo e Legislativo, nos cabe perguntar qual será o Poder Judiciário que dela sairá?”.

Pois bem, dois acontecimentos na mesma semana mostram-me que meus temores são justificados.

O bom negócio da Lava Jato

Em 26 de junho de 2016, a Folha, em uma singular reportagem nos traz que a Lava Jato estava se apropriando de parte dos recursos que eram definidos como indenização nos acordos de leniência com as empresas acusadas de desvios na Petrobras. Havendo já valores depositados em contas judiciais da Caixa Econômica Federal, vinculadas à 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba. A da jurisdição do juiz Sergio Moro.

Da Folha de S. Paulo

”Acordos de leniência preveem repasse de 10% para a Lava Jato”

“A força-tarefa da Lava Jato incluiu em todos os acordos de leniência que está negociando uma cláusula que determina o repasse aos órgãos responsáveis pela investigação de até 20% do valor das multas pagas pelas empresas”.

Assim se manifestava um procurador que atua na Lava Jato:

“… o critério foi muito simples. Definimos duas alíquotas, uma de 10% para acordos maiores e [outra de] 20% para acordos de menor valor. Não existe obviamente nenhum fundamento científico nisso, mas se trata da construção de uma prática do direito sancionador negocial.Considerando o total dos atuais acordos de colaboração e leniência a serem depositados ao longo dos anos, a força-tarefa pode arrecadar mais de R$ 300 milhões”.

Primeiro que R$ 300 milhões é dinheiro demais para ficar na discricionariedade de uma entidade chamada “força-tarefa”.

Segundo, o que significa “construção de uma prática do direito sancionador negocial”?

Significa que a Lava Jato está inovando? O que, em direito, está longe de ser uma prática recomendada. Tanto assim que o STF, na figura do ministro Teori Zavascki, em decisão recente vetou a prática.

Motivos óbvios, o “negócio” do Judiciário não é “fazer dinheiro”. Dinheiro que, aliás, pertenceria por direito como reparação à vítima, sem que essa tenha de pagar “comissão” a quem, como o Judiciário, está somente cumprindo seu dever constitucional.

Como se posiciona em relação à decisão do STF o procurador que, segundo a Folha, é um dos principais integrantes da força-tarefa?

“Evidentemente devemos insistir na destinação dessa verba, tal qual ocorre em diversos outros países”.

Desculpem-me, mas, devemos insistir frente uma decisão da Suprema Corte? No sentido de sermos refratários a ela? Um procurador decide “insistir” em relação a uma decisão de um ministro do Supremo?

Então, em minha opinião, não há mais Supremo, supremo passa a ser o procurador.

Data vênia, senhor ministro, vá lamber sabão

Em 23 de junho de 2016, a primeira instância da justiça federal de São Paulo mandou prender o ex-ministro Paulo Bernardo. Seis dias depois, o ministro do STF Dias Toffoli mandou solta-lo. Toffoli afirmou que não havia elementos no processo que justificassem a manutenção da prisão preventiva.

Como se manifestou o juiz de primeira instância?

Discordou publicamente pela imprensa da decisão do Supremo.

”Juiz diz discordar do entendimento de Toffoli para soltar Paulo Bernardo”

“Quanto à questão da fundamentação da prisão preventiva, obviamente irei acatar, porém respeitosamente discordo, continuando a achar que a expressiva quantia do dinheiro não localizado pode sofrer novos esquemas de lavagem, ao menos por ora”. 

Juiz de primeira instância discordando pelos jornais de uma decisão de tribunal superior não se trata de um desafio à autoridade desse tribunal? Não o desautoriza?  Não se trata de indisciplina?

“Resguardo, pois, o meu posicionamento pessoal, aqui manifestado em homenagem à minha independência judicial, e, sem prejuízo, evidentemente reconheço que devo e irei acatar [decisão de Toffoli].”

Independência judicial?

Qual a linha que traça a divisa entre a independência e a revelia? A resposta parece-me fundamental para a manutenção de nosso ordenamento jurídico.

Creio que o exercício da independência judicial é um direito do juiz para decidir e deve ser preservado sempre. Mas não consigo ver que assista-o a questionar publicamente decisão superior.

Parece-me que a “independência judicial” do juiz de primeira instância termina onde começa a “independência judicial” do juiz de segunda instância, quanto mais da instância última.

Quando a semana ameaça terminar e eu não leio nos jornais que consequências tiveram os dois atos de irreverência, preocupo-me. O uso de eufemismos, tais como, “devemos insistir” ou “discordar respeitosamente” não me parece que minoram tal irreverência. Irreverência, para ainda não usar o termo insubordinação.

Preocupa-me.

No caminho do lobo mau

Já não bastasse termos assistido, em passado desagradavelmente recente, a roqueiros decadentes convocando o populacho a constranger publicamente juízes do Supremo e seus familiares em retaliação às decisões tomadas por esses juízes, aí sim, fazendo uso da imprescindível independência judicial.

Pelo pouco eu sei dos desdobramentos do caso, parece-me que igualmente deu em nada.

Preocupa-me.

Grandes construções, tal qual a do nosso ordenamento jurídico, às vezes, vem abaixo devido a uma lenta, mas contínua, fragilização das fundações que as mantém. Poderosos minúsculos abalos da base de sustentação.

E o silêncio em relação a eles é a pior forma de amortecimento.

PS.: a Oficina de Concertos Gerais e Poesia  não discute decisão judicial, mas reserva-se o direito de recorrer à jurisimprudência dos poetas.

No caminho com Maiakóvski, de Eduardo Alves da Costa:

“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada”.

Redação

17 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Um magistrado não pode
    Um magistrado não pode comentar publicamente sobre um processo sob sua responsabilidade. Muito menos usar orgao de imprensa para criticar publicamente decisao da mais alta corte do pais.
    E tao obvio que chega a doer no ouvido ter de explicar isso. Tem até aquela máxima repetida com frequencia: Juiz só fala nos autos.

  2. Em algum momento vão ter qie

    Em algum momento vão ter qie por ordem nessa bagunça, a nova lomam proposta pelo “festejado” vai em sentido contrario, cria novos privilegios em vez de criar regras mais rigidas de conduta, a solução é desfazer esse cnj e criar um orgão de controle externo patra o judiciario, o poder emana do povo e por ele é exercido, tem que lembrar esses senhores disso.

  3. Tudo começou com Gilmar

    Tudo começou com Gilmar Mendes,o cangaceiro do supremo, chamando às falas  o presidente  da  república,Luís Inácio Lula da Silva,afirmando ter sido grampeado.Culminou com absurda humilhação de  destituir  o chefe da PF.Ou seja, Lula atendeu o chamado…

    1. Quer dizer
      Começou com o PT, o Lula, não exigindo o respeito AO CARGO.

      Fica a sensação clara de que o PT pediu para levar um golpe de tão fácil que foi.

      A dificuldade toda estava em passar a sensação de normalidade que não veio Nunca, então, fizeram assim mesmo.

      Hoje sabem que deveriam ter feito isso com Lula e seus 85% de popularidade usado para NADA .

  4. No pre-golpe de 64 as

    No pre-golpe de 64 as rebeliões militares ficaram conhecidas como “quarteladas”. Como vamos batizar essas quebras de hierarquia dentro do poder judiciario? Sugestões, por favor.

    1. Sugestão.

      Ilustre Marcos Camargo, aceite minha sugestão: se a indisciplina nos quarteis se chamava “quartelada”, no judiciário deve-se chamar de “pornomorográficas”.

  5. Quer dizer que o José

    Quer dizer que o José Dirceu(consultoria privada) não podia receber comissão dos negócios que intermediava e a lava jato(funcionários públicos concursados pagos pelo estado) pode?

  6. Judiciário pós lava-jato.

    Nunca estive ligado a justiça  em meus 75 de existência. Entretanto a aspiração de ter justiça no sentido mais amplo da palavra sempre me acompanhou. O legal e o judiciário são caminhos para viver numa sociedade civilizada. Louvo o texto de Sérgio Saraiva, que traz uma luz sobre imperfeições enormes do Poder Judiciário brasileiro.  Acredito que  o esgarçamento político do país abriu espaço para personagens do judiciário agindo fora do histórico ordenemento. Está em curso um processo destrutivo endógeno do Poder Judiciário com perda de valores, falência de hierarquia, celebração do personalismo, descuido do bem comum da sociedade e agressão continuada a cidadãos .

  7. Não é invenção minha, mas falta dá nome aos bois

    Opinião: o possível fim de um país

    Jornal do Brasil

    http://www.jb.com.br/opiniao/noticias/2016/07/02/opiniao-o-possivel-fim-de-um-pais/

     

    Um jornal de grande circulação e um colunista muito bem informado sobre a política brasileira denunciam neste sábado (2) que um dos advogados mais importantes do país soube que estava na mira das investigações. Ao tomar conhecimento que era alvo, não pensou duas vezes e procurou os investigadores para oferecer denúncia de tudo o que sabe sobre o Judiciário.

    Mais especificamente, esse importante advogado relatou detalhes das relações “nada republicanas”, como informa o colunista, com dois importantes integrantes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Não apenas relatou os fatos, como deu o nome dos ministros. Segundo o colunista, quem teve acesso ao teor dos depoimentos disse que “não sobrará pedra sobre pedra” quando a delação for fechada.

    Pela importância institucional dessas duas Cortes para o país, elas devem imediatamente ingressar com ações e informar a opinião pública desses fatos que abalam a estrutura da segurança nacional, se a delação de fato for verdadeira. Deixar que a opinião pública fique intranquila com seus ministros que dão a tranquilidade institucional ao país é muito perigoso. Espera-se que os presidentes dessas duas Casas esclareçam a população a respeito dessas denúncias em curso, caso elas sejam confirmadas e comprovadas.

  8. de fato, nenhum processo de

    de fato, nenhum processo de corrupção poderia ser aberto se não houvesse garantias absolutos de que, pelos menos,  200000% do roubado seria recuperado parar que compensassse os gastos terríveis que isso impõe

  9. Vão imitar a Polícia…

    Que, geralmente ao se deparar com um butim gordo, fazem o desvio básico de uns….50% da apreensão !!!

    Reparem na coincidência de que, o ladrão com a grana, sempre ” foge com o dinheiro “. Os outros se ferram !!!

    Ou tô mentindo ?

  10. Quem pagará as custas processuais da Lava Jato?

    Muito bom o post de Sergio Saraiva.

    Faço adendos, se me permite.

    Desde a implantação da neorepública, isso ainda no governo Lula desde seu primeiro dia quando disse que FHC teria um amigo na presidência, passando pela aceitação do indicado pelo MP – o primeiro da lista tríplice, até quando decapitou a PF na pessoa de um honrado delegado.

    Foi ingenuo ao supor que haveria possibilidade de acordos com a direita conservadora cevada em 500 anos de Brasil. Acho que com o andar da carruagem percebeu o significado de “amigo” para os que sempre se valeram dos cofres públicos para suas maracutaias.

    Dilma ousou.

    Além da lista tríplice apadrinhou um acomodado “ministro da justiça” e sua atuação – ? – frente aos desmandos da PF. A rede está cheia deles. Abriu mão do comando e bailou.

    Ademais, ambos, Lula e Dilma, fizeram indicações, digamos, infelizes ao STF.

    Tambem podemos perceber em Dilma algum reconhecimento de que erros houveram. Não sabemos a profundidade disso.

    Assim o STF viu-se a braços com nomeações infelizes de períodos anteriores, uma recebeu famosos e inesquecíveis comentários de Dalmo Dallari,  e hoje vive o que me parece um duplo comando. Um presidente formal a trabalhar pela Justiça na corte que preside, e um “portavoz” a avançar julgamentos públicamente como que tangendo votos para seus interesses ideológicos.

    A mídia interessada na queda do governo popular, tocou as cornetas e fez do “grupo de Curitiba” um Estado à parte do Brasil, tendo seu próprio marco legal dando-se ao direito de espoliar a Petrobras vítima de malfeitores diversos. Assim, os operadores são beneficiados com parte do desvio – a maior ? – prisões a curto prazo e agora os funcionários públicos, regiamente pagos e cheios de penduricalhos, estão a legislar em causa própria.  Uma parcela de 10 a 20 % do butim fica em casa.

    Mas, em que pese o exposto, sou mais Lula e Dilma. O aprendizado sempre tem um custo.

     

    1. Provavelmente, nunca mais

      Por mais essa razão é que de maneira alguma, e em qualquer hipótese permitirão que eles, Dilma e Lula, retornem ao poder. Estão graduados com mestrado e pós-doutorado nas manhas e artimanhas do poder. 

  11. Republiqueta de Curitiba

    O problema está na perspectiva adotada pela lava-jato e copiada em outras operações, as quais miram as relações entre o poder econômico e o Poder Público. Nela, procuradores e juízes responsáveis pela condução do processo só conseguem enchergar pela lente do Direito penal, esquecendo ou nem ligando para o impacto causado à economia nacional, tendo como meta apenas a extinção da corrupção. Acontece que essa tarefa é impossível, pois a própria estrutura da economia capitalista tem como um de seus elementos constitutivos a corrupção. Somente em um verdadeiro e assustador Estado Policial, com abolição das garantias e direitos individuais dos cidadãos, a corrupção poderia chegar próxima a zero. Esse é o Estado sonhado por setores do MP e Judiciário, basta ver as 10 medidas anti-corrupção proposta pelo MP de Curitiba junto ao Congresso, e, mais recentemente, a questão da destinação dos recursos recuperados pela Lava-Jato. Se o objetivo dessas instituições fosse verdadeiramente a luta contra a corrupção e defesa do patrimônio estatal, não lutariam por desviar parte desses recursos apreendidos para sustentar seu aparato investigatório. Vivemos tempos sombrios…

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador