Retrospectiva do STF: entre a omissão e o protagonismo

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornal GGN – A singularidade de posicionamentos entre os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ficou evidente no ano de 2016. Sobretudo pelo fenômeno das decisões monocráticas, os integrantes atuaram para o agravamento da crise política, no desfecho do impeachment da presidente Dilma Rousseff, seja pela omissão ou por decisões polêmicas, assim como frequentes manifestações políticas de Gilmar Mendes, ou descabidas de Cármen Lúcia.
 
Acompanhe a análise dos repórteres Felipe Recondo e Márcio Falcão para o JOTA:

STF: Árbitro ou protagonista na crise política em 2016?

A crise política que culminou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff desafiou o Supremo Tribunal Federal e ameaçou tirá-lo da condição de árbitro minimamente isento dos conflitos. O tribunal buscou se equilibrar durante todo o ano numa faixa estreita que o separava da condição de moderador e de partícipe da crise. Um descuido, uma decisão em falso, uma declaração fora do tom e o Supremo seria acusado de interferir indevidamente para proteger a presidente Dilma Rousseff ou para derrubá-la e levar Michel Temer ao comando do País.

A tentativa de manter-se como espécie de poder moderador, contudo, não blindou o Supremo. O tribunal de hoje foi mais ativivista no processo de impeachment do que o STF do caso Collor. Além disso, o tribunal viu-se diante de críticas de ambos os lados. Foi acusado de integrar o grupo de atores responsáveis pelo “golpe contra Dilma Rousseff” por não interferir na condução do processo ou por não adentrar o mérito das acusações de crime de responsabilidade. De outro lado, foi também censurado, por aqueles que eram favoráveis à saída de Dillma, por ter paralisado liminarmente no final de 2015 o movimento iniciado na Câmara pelo impeachment da presidente.

À beira do precipício, o Supremo se desequilibrou em pelo menos três momentos. E cambaleou essencialmente pela ação isolada de seus integrantes. Novamente, o STF viu-se desgastado institucionalmente pelo fenômeno que dia a dia se agrava: a monocratização das decisões da Corte e o fato de os ministros, por vezes, terem uma agenda própria em detrimento da agenda institucional.

A coexistência de 11 Supremos foi a marca do ano.

O caso mais grave, gerado por este fenômeno, fechou 2016. Evidenciou desarranjos internos do Supremo, elevou à máxima potência o dano gerado à Corte pela atuação dos ministros como se fossem 11 ilhas, suscitou dúvidas sobre a capacidade do tribunal de fazer cumprir suas decisões e gerou danos à imagem do STF na opinião pública.

No dia 5 de dezembro, o ministro Marco Aurélio Mello liminarmente destituiu o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), por ter passado o senador a responder a ação penal no Supremo pelo crime de peculato. Na semana anterior, o tribunal recebera a denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República em 2013 contra Renan Calheiros pelo escândalo provocado pela descoberta (ainda em 2007) de que a empreiteira Mendes Júnior pagava a pensão alimentícia da filha do senador, gerada fora do casamento.

O ministro se baseou no entendimento precário da Corte de que réus em ações penais no Supremo não poderiam ocupar cargos na linha sucessória da Presidência da República. O julgamento da ADPF 402, iniciado no dia 3 de novembro, foi uma tentativa de o Supremo dar uma resposta ao presidente do Senado, que tachou de “juizeco” o magistrado que autorizou a operação da Polícia Federal contra a Polícia Legislativa, suspeita de atuar para obstruir investigações da Lava Jato.

Depois de cinco votos favoráveis à tese de que réus não poderiam exercer cargos na linha sucessória e de que não poderiam substituir o presidente da República em razão de viagens internacionais, o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo. O decano da Corte, ministro Celso de Mello, antecipou seu voto, garantindo maioria a esse entendimento. Mas o julgamento, ressalte-se, não foi concluído.

O ministro Marco Aurélio juntou os dois fatos: a maioria precária no julgamento da ADPF 402 com o recebimento da denúncia contra Renan Calheiros. Sem consultar os colegas, mesmo diante da gravidade da decisão, afastou liminarmente o presidente do Senado.

“Urge providência, não para concluir o julgamento de fundo, atribuição do plenário, mas para implementar medida acauteladora, forte nas premissas do voto que prolatei, nos cinco votos no mesmo sentido, ou seja, na maioria absoluta já formada, bem como no risco de continuar, na linha de substituição do Presidente da República, réu, assim qualificado por decisão do Supremo”, afirmou.

A decisão causou desconforto no Supremo. Ministros da Corte criticaram, reservadamente, o fato de a decisão não ter sido compartilhada com o plenário do STF. O ministro Gilmar Mendes sugeriu o impeachment do ministro Marco Aurélio, numa declaração inédita que revelava o clima conflagrado na Corte. Enquanto isso, o ministro Marco Aurélio antecipava à imprensa que não levaria a liminar a referendo do plenário naquela semana. E isso provocava mais espanto entre os ministros.

No Senado, a liminar gerou uma rebelião. Também por sugestão de um dos ministros do tribunal, conforme noticiou a imprensa, Renan Calheiros recusou-se a ser notificado da decisão. E os integrantes da Mesa Diretora da Casa divulgaram nota para adiantar que só cumpririam a decisão do Supremo se confirmada pela maioria dos ministros no plenário. Como Marco Aurélio resistia a liberar a liminar para julgamento, criou-se um impasse institucional.

A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, viu-se diante do desafio de equacionar uma conta complexa: respeitar a decisão de um dos integrantes da Corte, convencer o ministro Marco Aurélio de que era preciso submetê-la ao plenário o mais rápido possível (assim como fez o ministro Teori Zavascki ao afastar cautelarmente o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha), garantir a autoridade do tribunal, estabelecer um diálogo institucional com o Senado e fazer com que o STF não se tornasse um fator adicional desestabilizador da situação política (como se Renan Calheiros fosse um esteio para a governabilidade).

Na terça-feira (6/12), depois de intensas conversas e negociações, a solução estava dada e partiria do ministro Celso de Mello. Mas o Supremo pagaria um preço alto pela saída encontrada. O decano da Corte faria uma retificação na parte dispositiva do seu voto para consignar que réus não poderiam assumir a Presidência da República, mas não precisavam ser afastados do cargo por decisão do STF.

Por 6 votos a 3, o tribunal referendou parcialmente a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio. A maioria do Supremo julgou que réus que estejam na linha sucessória não podem substituir o presidente da República, mas podem permanecer nos cargos que ocupam.

“Os conflitos multiplicam-se e não há soluções fáceis ou conhecidas para serem aproveitadas”. Ministra Cármen Lúcia.

O resultado provocou danos à imagem da Corte. A decisão do Supremo foi interpretada por parte da imprensa e pela opinião pública como um acerto político indevido para salvar Renan Calheiros e como um sinal de que as investigações contra esquemas de corrupção podem sofrer revés no tribunal. Por fim, o Supremo foi desafiado como há muito não se via. E justamente no que há de mais caro para um tribunal: o cumprimento de suas decisões.

O desrespeito à decisão liminar do STF foi seguido por outro. Na semana seguinte a esta crise, o ministro Luiz Fux concedeu liminar em mandado de segurança (MS 34.530) impetrado pelo deputado Eduardo Bolsonaro e determinou que o Senado devolvesse para a Câmara o projeto de 10 medidas de combate à corrupção. Argumentou o ministro que a proposta de iniciativa popular não tramitou conforme o regimento interno da Câmara e foi desfigurada ao ser votada pelos parlamentares.

A decisão atiçou o Legislativo. Parlamentares acusaram o Judiciário de interferir indevidamente no processo legislativo. Novamente, o presidente do Senado recusou-se a respeitar a liminar. Disse que não devolveria o projeto e aguardaria o julgamento do agravo contra a decisão, apenas em 2017. Quando o assunto for julgado, porém, Calheiros não será mais presidente do Senado. O ministro Gilmar Mendes novamente foi ao ataque. Comparou a liminar com o “AI 5 do Judiciário” e disse que, pela decisão do colega, seria melhor fechar o Congresso e entregar as chaves para o Ministério Público, que patrocinou as 10 medidas.

Em resposta às sucessivas críticas de Mendes aos colegas, os juízes federais divulgaram nota, afirmando que o ministro do Supremo descumpre a lei ao atuar como comentarista de decisões judiciais: “Nada impede que o ministro Gilmar Mendes, preferindo a função de comentarista à de magistrado, renuncie à toga e vá exercer livremente sua liberdade de expressão, como cidadão, em qualquer dos veículos da imprensa, comentando, aí já sem as restrições que o cargo de juiz necessariamente lhe impõe, o acerto ou desacerto de toda e qualquer decisão judicial.”

No processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff, o tribunal balançou para um lado quando o então presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, fatiou o julgamento da petista no Senado Federal. A manobra – não submetida ao plenário da Casa – criou uma situação sui generis: Dilma Rousseff foi condenada por crime de responsabilidade, mas manteve seus direitos políticos.

O Supremo pendeu para o outro lado em razão da atuação do ministro Gilmar Mendes. Seja por suas declarações públicas, críticas à presidente Dilma Rousseff e ao seu governo, seja pela liminar que concedeu para impedir a posse do ex-presidente Lula como ministro-chefe da Casa Civil. Liminar, por sinal, que tornou-se definitiva, sem nunca ter passado pelo plenário.

Na conta final, descontando um e outro ponto, o Supremo fez sua escolha. Por suas ações ou inações, a atuação do STF na crise política de 2016 pode ser tachada de autocontida, cautelosa ou tímida.

Para os defensores da tese de que o impeachment foi um golpe, o Supremo foi negligente. Para aqueles que torceram pela queda da presidente Dilma Rousseff, o STF foi intervencionista, mas não impediu a saída política. Em qualquer lado que se esteja, será difícil, entretanto, acusar o Supremo de ter assumido partido. A Corte apostou na velha e batida metáfora futebolística de que o bom juiz é aquele que não aparece e que deixa o jogo ser jogado, ganhe quem ganhar.

Mas a moderação do Supremo ao ser chamado a interceder na crise política não foi a mesma no julgamento dos casos mais relevantes deste ano. Não faltam exemplos: possibilidade de iniciar a execução da pena antes do trânsito em julgado de ação penal condenatória, afastamento de Eduardo Cunha do cargo de presidente da Câmara e do mandato parlamentar, manifestação da maioria do tribunal de que réus não podem ocupar cargos na linha sucessória da Presidência da República, corte imediato do salário dos servidores públicos que decidirem fazer greve, inconstitucionalidade de lei que regulamenta a prática da vaquejada (considerada cruel pela maioria dos ministros), proibição da chamada pílula do câncer.

Noutra frente, o Supremo prosseguiu na tarefa que se impôs de promover melhorias no sistema carcerário. Em 2015, o tribunal julgou um pacote de processos em que se discutiu superlotação em presídios, a falta de vagas e a violação do direito à progressão de regime, indenização a presos mantidos em situação degradante, contingenciamento de recursos orçamentários destinados à melhoria do sistema carcerário, possibilidade de o Judiciário determinar aos governos a realização de reformas nas cadeias e, por fim, a obrigatoriedade de apresentação imediata dos presos em flagrante aos juízes.

O tribunal deixou para 2016 outros processos igualmente relevantes para conformar o sistema carcerário: decidiu que o crime de tráfico privilegiado de drogas não tem natureza hedionda, ao contrário do previsto na Lei de Drogas, atribuiu ao Estado a responsabilidade por mortes dentro dos presídios e firmou a tese de que um preso não pode ser submetido a regime de cumprimento de pena mais gravoso daquele imposto na condenação.

Contudo, o fato mais marcante de 2016 no Supremo foi a troca de comando na Corte e a rápida percepção de que a presidência da ministra Cármen Lúcia será sensivelmente distinta da gestão do ministro Ricardo Lewandowski.

Desgastado por suas posições no julgamento do mensalão, pela proximidade com o PT e com os governos Lula e Dilma Rousseff e criticado por sua pauta corporativista, Lewandowski desfechou sua presidência com o fatiamento das penas impostas à presidente da República pelo cometimento do crime de responsabilidade. Dilma foi condenada, perdeu o mandato, mas manteve o direito de ocupar cargos públicos. A decisão causou – e ainda causa – constrangimento ao Supremo.

A imagem pública de Cármen Lúcia  foi construída paralelamente à sua amizade pessoal com Dilma e passou ao largo, por exemplo, de seus votos a favor de José Dirceu nos embargos infringentes do Mensalão. Desde que assumiu o comando da Corte buscou imprimir mais previsibilidade à pauta de julgamentos. Passou a divulgar a lista de processos que serão julgados ao longo do mês. No passado, sabia-se apenas na sexta-feira o que seria julgado nas sessões de quarta e quinta da semana seguinte. Pautou processos polêmicos, mas de grande interesse da opinião pública. E não se escondeu sob a toga quando o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), criticou o juiz que autorizou a operação da Polícia Federal dentro do Congresso para investigar a Polícia Legislativa. A ministra saiu em defesa da magistratura, dizendo que uma crítica a um juiz é também uma crítica a ela.

Todavia, os primeiros quatro meses da presidência Cármen Lúcia são insuficientes para dimensionar sua gestão. Até agora, houve mudanças positivas, mas são visíveis alguns sinais ambíguos em suas decisões. Apesar de reagir a Renan Calheiros na crítica à magistratura, participou das articulações internas para manter Renan Calheiros no cargo, a despeito da liminar do ministro Marco Aurélio Mello e da resistência do senador em cumprir uma decisão do STF.

A ministra também demonstra, por um lado, que pautará todos os processos importantes que estão na fila do Supremo, mas deixou de lado o caso de maior repercussão hoje no STF. As ações contra a correção das cadernetas de poupança pós planos econômicos terão impacto em mais de um milhão de processos em tramitação pelo País.

Mais: a ministra fez visitas surpresa a presídios, mas ainda sem qualquer efeito prático; critica o pagamento a juízes que extrapolam o teto constitucional, mas nada faz como presidente do CNJ e convive, em seu gabinete, com juízes auxiliares que ganham acima do limite. Assumiu como uma de suas bandeiras a melhoria do sistema carcerário, mas manteve-se silente diante de anulação das condenações a policiais condenados pelo massacre do Carandiru.

Nestes quesitos, nestas ambiguidades, talvez, a ministra esteja cumprindo à risca o que Riobaldo, que ela tanta aprecia citar, disse – e que consta de seu discurso: “natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”.

A ministra terá, em 2017, desafios institucionais graves.

A crise fiscal desafia os governos estaduais e cria instabilidade e protestos em várias partes do País, a começar pelo Rio de Janeiro. O governo Michel Temer sofreu baixas relevantes em 2016, com a saída, por exemplo, do articulador político Geddel Vieira Lima, e pode enfrentar dificuldades maiores no Tribunal Superior Eleitoral com o julgamento do pedido de cassação da chapa Dilma-Temer.

As investigações da Lava Jato criarão fatos novos, atingirão parlamentares, integrantes do governo e da oposição e governadores de estado. A delação da empreiteira Odebrecht, cujas primeiras informações já vieram a público, poderá ser um influxo no sistema político brasileiro. Haverá resistências no meio político, no meio econômico e, quem sabe, dentro do próprio tribunal.

Mais uma vez, parafraseando a ministra Cármen Lúcia: “Os conflitos multiplicam-se e não há soluções fáceis ou conhecidas para serem aproveitadas. Vivemos momentos tormentosos. Há que se fazer a travessia para tempos pacificados. Travessia em águas em revolto e cidadãos em revolta.”

 

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Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

1 Comentário

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  1. se precisarem de dica para uma travessia tranquila…

    recomendo as velas da Psicologia

    ou a promoção do desenvolvimento integral de cada um………………..mais ser humano, menos máquina de fazer justiça

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