STF devolveu aos Partidos o poder que Eduardo Cunha usurpou

por José Berlange Andrade

A emancipação alcançada pelo cidadão, nesta fase da modernidade – de livre comunicação e igualdade de participação pelos canais da Internet – está a exigir muita paciência histórica e em forma de tolerância para com a estultice.  Inadmissível, porém, a ofensiva desqualificadora vazia de conteúdo ético e técnico.  

A propósito do caso daquele comentário apaixonado, feito com azedume e perversidade, que acusa a um ministro da suprema corte ter se comportado com “malandragem ao omitir a parte que legitimava a votação secreta no Regimento Interno da Câmara“, “interrompendo” o aparte de outro ministro, “evitando que fosse lido por completo o inciso III“, do Art. 188 do RICD, na parte em que menciona a possibilidade de “votação por escrutínio secreto nas demais eleições“.

Esta arrogante crítica baseou-se na leitura de falas e movimentos observados em um vídeo publicado na Internet. O objeto do discurso selecionado para análise, a expressão “nas demais eleições”, sequer chegou a ser exposto ou mencionado pelos debatedores. Estava fora de cogitação naquele contexto.

A questão focada pelo voto naquela passagem da linha do tempo (00:01 a 02:12 do vídeo https://www.youtube.com/watch?v=LLGEAlyMdQA), apontava para circunstâncias fáticas: um o ruído conflituoso produzido pelo comportamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, a quem se acusava ter agido com astúcia técnica, arbitrariedade e abuso de poder, quando deveria ter conduzido à formação da comissão especial do impeachment pautado pela ética de uma magistratura.

Na dicção do voto de Barroso a questão foi definida juridicamente assim: “A VOTAÇÃO PARA FORMAÇÃO DA COMISSÃO ESPECIAL SOMENTE PODE SE DAR POR VOTO ABERTO”.  Essa proposição normativa é resultado de uma construção técnica alicerçada em relevantes valores éticos, conforme está fundamentado nas argumentações do voto:  “No processo de impeachment, as votações devem ser abertas, de modo a permitir maior transparência, accountability e legitimação”.

No silêncio da Constituição, da Lei 1.079/1950 e do Regimento Interno sobre a forma de votação, não é admissível que o Presidente da Câmara dos Deputados possa, por decisão unipessoal e discricionáriaestender hipótese inespecífica de votação secreta prevista no RICD, por analogia, à eleição para a comissão especial de impeachment.

Além disso, o sigilo do escrutínio é incompatível com a natureza e a gravidade do processo por crime de responsabilidade. Em processo de tamanha magnitude, que pode levar o Presidente a ser afastado e perder o mandato, é preciso garantir o maior grau de transparência e publicidade possível.

Nesse caso, não é possível invocar como justificativa para o voto secreto a necessidade de garantir a liberdade e independência dos congressistas, afastando a possibilidade de ingerências indevidas. Se a votação secreta pode ser capaz de afastar determinadas pressões, ao mesmo tempo, ela enfraquece a possibilidade de controle popular sobre os representantes, em violação aos princípios democráticorepresentativo e republicano. Por fim, a votação aberta (simbólica) foi adotada para a composição da comissão especial no processo de impeachment de Collor, de modo que a manutenção do mesmo rito seguido em 1992 contribui para a segurança jurídica e a previsibilidade do procedimento.”

Fragmento do voto vencedor, produto intelectual que já está nas prateleiras disponível à avaliação, ao consumo e ao desprezo do cidadão-consumidor.

Luís Roberto Barroso talvez tenha sido até ‘bonzinho’ com os pares que formaram convicção diferenciada quando focaram o “inciso III, do Art. 188 do RICD” e, nesse dispositivo, enxergaram autorização para que Eduardo Cunha impusesse a sua vontade, arbitrariamente, no sentido de facilitar o recebimento da denúncia que persegue o impeachment.

A verdade é que o invocado “inciso III“, do Art. 188 do RICD” – que autoriza “votação por escrutínio secreto” nas eleições de dirigentes de mesas e representantes em outros órgãos permanentes –  não se aplica aos casos de “eleição dos membros da comissão especial de impeachment“. Por conseguinte, nem o termo “nas demais eleições” pode ser usado para incluir no seu horizonte semântico a escolha dos membros dessa comissão especial por escrutínio secreto.

É um problema lógico-estrutural. Constitucionalmente, vige o princípio da transparência para a deliberação no parlamento, salvo as exceções que apontam para a preservação da liberdade de consciência do parlamentar diante do poder de opressão de outros poderes do Estado. Só esse dever de transparência ainda é pouco para o ambiente republicando que se deseja para o mundo.

(O judiciário, por exemplo, deveria estar há anos luz à frente dessa exigência: na sua prática, não basta que os atos sejam todos públicos (salvos as exceções da lei, não da vontade do juiz), é necessário para a sua validade que sejam juridicamente fundamentados e versem sobre fatos históricos comprovados. A mídia, no Brasil, regrediu quase à pré-história com relação a essas duas questões que interessam à sociedade, cujo progresso, individual e coletivo, depende do nível de acesso que se tenha à verdade dos fatos – o que implica maior responsabilidade do judiciário quanto ao dever de emitir a última palavra, mesmo contra as torrentes caóticas das manadas midiotizadas).

O Art.188 do RICD é o dispositivo que institui e regula os casos de exceções em que é legitimamente autorizada a votação por escrutínio secreto e também estabelece os métodos: a regra é usar o sistema eletrônico de apuração de nome e de resultado final. Os casos que possibilitam aos parlamentares ‘esconder’ assim a sua ‘escolha’ são restringidos ao elenco dos dois incisos do 188: 1) ambiente de estado de sítio e pronunciamento sobre mandato parlamentar; e 2) ambiente de normalidade democrática, mas por decisão do Plenário, e a requerimento de um décimo dos membros da Casa ou de Líderes nessa proporção.  Estas são as regras básicas do jogo, uma imperativa (Mesa) e outra consensual (Plenário).

Na verdade, qualquer leigo pode perceber: na estrutura do Art.188 não existe o mencionado inciso III.

O que está colocado, na sequencia da cabeça do dispositivo, é um corpo de dois parágrafos.  

O primeiro cuida de resolver o problema da votação secreta quando for conveniente ou necessário usar a velha mídia de papel.  Este parágrafo 1º contém três incisos.  No último (III), institui a “Eleição por Escrutínio Secreto” mediante o uso de “cédula, impressa ou datilografada que será recolhida em urna à vista do Plenário”.   Portanto,  regra procedimental para eleição de dirigentes da Mesa e de representantes da Casa em órgãos externos: Presidente e demais membros da Mesa, do Presidente e Vice-Presidentes de Comissão Permanente, dos membros da Câmara que irão compor a Comissão Representativa do Congresso Nacional, dos dois cidadãos que irão integrar o Conselho da República, e nas demais eleições… (Excluídos, aí, a contrario sensu, o presidente e vice das Comissões Temporárias. A Especial de Impeachment é temporária, dura até que pratique a deliberação sobre a denúncia. Depois, extingue-se, automaticamente).

O segundo parágrafo tem importância para a questão da malandragem.  Aqui, o regimento estabelece, expressa e explicitamente, proibição de se fazer deliberação por  meio de escrutínio secreto. Em que circunstâncias este tipo de votação secreta, por sistema eletrônico ou por urna e cédula impressa, está interditado de ser feito? Nos casos fáticos elencados nos inciso I a IV desse parágrafo 2º.

E é aqui, exatamente, que entra a hipótese de deliberação sobre impeachment de presidente e de vice-presidente da República. Na voz do inciso IV do §2º está dito que “não será objeto de deliberação por meio de escrutínio secreto:  

“autorização para instauração de processo, nas infrações penais comuns ou nos crimes de responsabilidade, contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado”.

Ora, a regra de instauração do processo permeia todas as fases e contamina todos os atos que nele serão praticados. Isto é da natureza protocolar que preside a ordem e o movimento processual. Bastaria esta certeza técnica para afastar qualquer possibilidade de incidência (se fosse adequada do ponto de vista lógico-estrutural) da parte final do inciso III, do § 2º, do Art. 188: “nas demais eleições”. Onde for possível.  E aqui não o é.

Essa eleição passa por uma escolha unilateral legitimada pelo prestígio da liderança. Lideres, bancadas de partidos e blocos partidários.  Responsabilidade do alto clero.  Por este motivo, essa questão do voto por escrutínio secreto está estruturalmente vinculada aos dois outros temas (problemas) que foram resolvidos no mesmo voto vencedor com duas outras proposições normativas: a) “Não é possível a apresentação de candidaturas ou chapas avulsas para a formação da comissão especial” e b) “proporcionalidade na formação da comissão especial pode ser aferida em relação a blocos partidários”

Finalizando.

Na escolha dos membros para a formação da comissão especial que vai deliberar sobre o encaminhamento da denúncia ao Senado, no processo de impeachment, o presidente da Câmara não está autorizado a meter o dedo e nem deve meter o bedelho. Deve ficar sentadinho em sua mesa, numa atitude de magistral inércia,  esperando que os líderes de partido ou de blocos partidários lhes enviem os nomes dos deputados que cada grupo desses elegeu, isto é, escolheu, selecionou e agora relacionou numa lista que enviarão às suas mãos.

A disciplina dessa “eleição” passa pela estrutura de poder que se concentra na organização coletiva dos interesses nacionais mais relevantes, portanto, é assunto para os partidos políticos que se regerão, nesta hora, pelas suas normas estatutárias. Não diz  com o interesse individual e pessoal de cada parlamentar. Exatamente para que a política afirme a sua dignidade diante das duas grandes  forças siamesas que disputam o controle da consciência e do comportamento humano:  o mercado (dos tapetes, dos segredos e dos prêmios) e o governo (dos gabinetes, da visibilidade e dos castigos).

Este o grande conflito do final de nossos tempos?

Redação

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