Streck: STJ continua contrariando o CPC e assumindo o papel de legislador

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Foto: Agência Brasil
 
 
Jornal GGN – O jurista Lênio Streck criticou decisão do Superior Tribuanl de Justiça que permitiu que o salário de um policial fosse penhorado para pagamento de dívida não alimentícia. Na visão de Streck, o STJ não apenas seguiu o CPC de 1973, ignorando a edição mais atual, como ainda ignorou que mesmo a lei antiga impossibilidade esse tipo de decisão envolvendo dívida não alimentícia. O “STJ continua contrariando o CPC e assumindo o papel de legislador”, escreveu em artigo do Conjur.
 
Por Lênio Streck
 
No Conjur
 
STJ erra ao permitir penhora de salário contra expressa vedação legal!
 
Leio na ConJur que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que é possível penhorar parte do salário de — no caso — um policial para pagamento de dívida não alimentícia. Qual é o problema disso?
 
Para ser bem simples e didático: o CPC de 1973, no artigo 649, IV, proibia a tal penhora de vencimentos, proventos e quejandos, excetuando no parágrafo segundo que a impenhorabilidade não se aplicava à dívida por pensão alimentícia. Veio o novo CPC e disse a mesma coisa, abrindo a mesma exceção, passando a permitir, entretanto, a cobrança do débito de qualquer origem, incidente sobre o valor que exceder a remuneração superior a 50 salários-mínimos. Claro e límpido assim. Está escrito. Qual seria a dúvida?
 
Ocorre que o STJ já não cumpria o CPC anterior, criando uma exceção a mais. Onde estava escrito “com exceção de dívida de alimentos”, o STJ lia “também outras dívidas, desde que não ficasse comprometida a subsistência mínima do devedor”. Claro: o que significa(va) “subsistência mínima” era produto da criação subjetiva do tribunal. Mutatis mutandis, é isso. Mesmo com o advento do CPC 2015 e a clara redação dizendo que salário (proventos, etc.) são impenhoráveis, com exceção de dívida alimentar e nos casos em que o devedor ganha mais de 50 salários mínimos, o STJ continua contrariando o CPC e assumindo o papel de legislador. Ignora a clareza do texto e cria uma norma que o contraria. De frente.
 
Pior: no caso específico, o STJ decidiu o caso em tela com base no CPC 1973, que nem tinha a exceção dos 50 salários mínimos. E, ao que consta, diante do novo CPC 2015, continua atuando como legislador.
 
O STJ, além de já ter reescrito o artigo 649 do CPC/73, agora reescreve o artigo 833, IV, parágrafo 2º, do CPC/2015. Para tanto, lança mão de argumentos de política e não de princípio (para usar uma linguagem cara para quem trabalha com teoria da decisão).[1] Ora, afirmar que “a jurisprudência da corte vem evoluindo no sentido de admitir a medida se ficar demonstrado que ela não prejudica a subsistência digna do devedor e de sua família” é, exatamente, lançar mão de argumentos de política e de moral. Só que, em uma democracia, esses juízos não são do Judiciário, data vênia. São do legislador.
 
Ou seja, o que quero dizer é que não adianta o judiciário “não gostar” da redação e/ou do limite de 50 salários mínimos ou do elenco de vedações constante no artigo 833. A menos que ele diga que é inconstitucional, fazendo jurisdição constitucional (teria que fazer um incidente, nos termos do CPC). Mas não vi isso. Sei que há doutrina que sustenta que o princípio da efetividade da jurisdição (toda a jurisdição não deve ser efetiva? Julgar conforme a lei não é fazer isso?) daria azo a que o credor pudesse buscar seu crédito e que o CPC não poderia ter feito isso. Sei também que existe doutrina criativa, ao ponto de invocar um “novo princípio”, o da utilidade da execução para o credor, além do curinga de sempre, o carcomido princípio da proporcionalidade. Pois é. Mas, insisto, trata-se de argumentos morais e de política. Funcionam retoricamente, admito. Mas retórica não pode superar uma lei, mormente uma lei votada bem recentemente. Veja-se: Se se dissesse que 50 salários mínimos é inconstitucional…, restaria a pergunta: Mas, então, de quantos salários mínimos se estaria falando? 40? 15? 12? Ora, isso é juízo do legislador e do executivo que pode vetar as escolhas legislativas. Outro problema: se 50 salários mínimos é inconstitucional (sic), então a exceção perderia totalmente o seu sentido. Afinal, o parágrafo, nessa parte do teto de 50 salários mínimos, fala de qualquer tipo de dívida… Compreendem?
 
Insisto: “valores não valem mais do que a lei”. Desejos e subjetivismos não podem substituir a lei. Juiz não pode ignorar a lei com base em princípios que ele mesmo inventou ou, ainda, mediante o uso de uma inexistente ponderação de princípios, que, por certo, deixaria corado o seu criador, Robert Alexy. Desafio que se demonstre que, em algum momento, havendo uma regra que estipula claramente determinada questão, Alexy aceitaria fazer uma ponderação que envolvesse, por exemplo, a colisão entre o mínimo existencial (como valorar?) e o direito de cobrar uma dívida (há direito fundamental nisso?),[2] pesando a balança, no final, a favor do patrimônio do credor. Seria a vitória do “princípio da dignidade do crédito”?[3] Espero não estar dando a ideia da criação desse “princípio”. E aqui vai um aviso para quem gosta de ponderar: conflito entre regras se resolve com a subsunção (pior: no caso, sequer existe conflito — ou colisão — de regras!). Na verdade, Alexy nunca tratou desse modo esse tipo de assunto. Ponderação (e a decisão do STJ chega a falar em ponderação, sim) é uma coisa complexa (ver aqui crítica que Rafael Dalla Barba e eu fizemos ao mal-uso da ponderação em julgamento no STF). Jamais Alexy disse que bastaria pegar um príncipio em cada mão e dizer uma palavra mágica como “estou ponderando” e… fiat lux.
 
Infelizmente, esse tipo de ato criador de direito feito pelo STJ tornou-se absolutamente corriqueiro. Basta ver juízes concedendo 180 dias de licença paternidade para pais de gêmeos (ler aqui minha crítica). Criou-se um certo imaginário pelo qual basta a lei não atender aos anseios do julgador ou da população (sem prognose) e… bingo: lasca um princípio ou às vezes nem isso. Apenas faz o velho confronto jusnaturalismo-direito positivo e diz: “— lei para mim tem de ser justa”. Pergunto: justa para quem?
 
Tenho insistido neste mantra: não é feio nem ruim, em um Estado Democrático de Direito, aplicar a “letra” da lei, podendo esta deixar de ser aplicada apenas em seis hipóteses. Fora disso, há um direito fundamental a que a lei seja aplicada. E não encontrei nenhuma das hipóteses presentes que justificassem a “criação de Direito” feito pelo STJ. Uma decisão judicial que afasta a exceção do artigo 833, IV, fora das exceções previstas no próprio dispositivo, seria/é casuística e ativista. Falta a ela o caráter (a possibilidade) de generalização. Isso para dizer o mínimo. Por isso é que inventaram uma coisa chamada “separação de Poderes”. Outra coisa: Não é proibido fazer sinonímias. O “não” não pode virar “sim”. Há sempre limites interpretativos. E não vou cansar os leitores, agora, para explicar, pela enésima vez, que não estou defendendo o juiz-boca-da-lei (é que sempre aparece alguém para dizer isso). Quem quiser ver isso mais de perto, perca alguns minutos e acesse este anexo, em que, num caso concreto, expliquei a trajetória do Direito do século XIX até hoje, em parecer jurídico que fiz em favor dos juízes do RJ absolvidos pelo TJ e “reprocessados” pelo CNJ. Deixo claro, no parecer, por que não é feio aplicar a lei. É desejável. Prudente. Republicano. E que isso não tem absolutamente nada a ver com positivismo[4] ou com formalismo ou com exegetismo ou com outro epíteto que se queira dar ao fenômeno “aplicar a lei em um Estado de Direito”.
 
Poderia parar por aqui. Mas penso que devo aproveitar o ensejo para avançar mais um pouco, e perguntar: Afinal, qual é o valor de uma lei ou de um Código? Otávio Luiz Rodrigues Jr, em sua tese de livre docência (A distinção sistemática e autonomia epistemológica do direito civil contemporâneo em face da Constituição e dos direitos fundamentais — USP), brinda-nos com um texto magnífico, que deveria ser colado na geladeira de cada lidador do Direito e, principalmente, por professores que gostam de “constitucionalizar” o Direito, como se as leis e códigos nada valessem, fazendo, ao revés, uma panconstitucionalização. É como se o direito civil, administrativo ou processual não tivesse um grau de autonomia epistemológica. Otávio faz uma contundente crítica à invasão do direito civil por um certo principialismo, além do estrago feito pelo neoconstitucionalismo, as cláusulas gerais e um apetite de Moloch, cujo resultado é uma sobreconstitucionalização e um direito civil (e isso pode ser aplicado a outras disciplinas) cada vez mais fragilizado (por vezes, fagocitado no mau sentido da palavra).
 
Por que uso o texto de Otavio? Para mostrar que o STJ (e não só ele) acaba fragilizando o direito posto, que perde sua especificidade e seu desejável grau de autonomia, por intermédio de ponderações sem ponderação, tópica sem tópica, constitucionalização sem a Constituição. O Judiciário ignora o Direito posto e faz um novo, como se sofresse do “mal de Hedemann”, numa alusão ao pequeno livro A fuga para as cláusulas gerais: um perigo para o Direito e o Estado, escrito por Justus W. Hedemann.[5] O livro é de 1933, mas está absolutamente atual se confrontado com o que se vê na operacionalidade do Direito brasileiro, hoje. É isso: os estragos causados pela jurisprudência dos valores, pelo neoconstitucionalismo, pela errônea compreensão do conceito de positivismo (como se existisse somente o exegético), o uso inadequado e abusivo da ponderação – são elementos que formam uma tempestade perfeita para o incremento do decisionismo e solipsismo judicial (veja-se que já Josef Esser criticava o solipsismo teorético-jurídico).
 
Por isso é que escrevo esta coluna: para fazer uma crítica construtiva e respeitosa ao Tribunal da Cidadania. Portanto, escrevo a favor do Direito e de um STJ que aplique a lei. Em uma democracia, a aplicação da lei é a principal tarefa. E a Constituição Federal diz que o STJ é o guardião da legalidade. Portanto, é isso que esperamos do STJ. E do Parlamento, que legisle. Se legislar inconstitucionalmente, aí sim será corrigido. Ou se fará a adequação mediante o uso das seis hipóteses. Simples assim. Cada um com sua função.
 
1 Interessante é que o voto condutor diz que examinou a peculiaridade do caso. Mas, então, por que aplica a Sumula 7? Ou seja: se o STJ não pode reexaminar prova, como pode dizer que os 30% não diminuem o nível de vida do recorrente? E por que 30%? Qual é o critério? Não parece que o STJ seja o competente para definir o que seja o mínimo existencial. Essa tarefa é do legislador.
 
2 Sei também que na doutrina se fala que esse artigo 833 – que coloca a vedação e o teto de 50 salários mínimos – é tido como “salvo conduto” para devedores espertos e coisas do gênero. De novo, trata-se de um juízo meramente moral. Que, entretanto, não retira a prerrogativa de o legislador fixar esses limites. Além disso, em uma sociedade capitalista, o credor, ao fazer negócios, corre riscos. Um deles é a dificuldade de cobrar o seu crédito. Mas, cá para nós, o CPC é pródigo, em outros dispositivos, na proteção do credor.
 
3 Como me disse Marcelo Cattoni, por mail, ao discutirmos o assunto no apagar das luzes de 2017: O que essa decisão do STJ parece dizer é que a obrigação de saldar uma dívida é mais importante do que a garantia do salário. Mesmo para quem vive apenas do salário. De um ponto de vista “consequencialista”, típico de um realismo jurisprudencial, ela parece ser um recado para o mercado: “Não se preocupe, as dívidas deverão ser pagas, mesmo à custa dos salários”. Sem “equilíbrio contratual”, sem cláusula “rebus sic stantibus”: as dívidas deverão ser pagas. (E, assim, veremos até onde vai o desmonte das garantias sociais no Brasil…). Bingo, Marcelo!
 
4 Para quem quiser aprofundar o tema “positivismo”, sugiro o verbete do meu Dicionário De Hermenêutica (https://www.conjur.com.br/loja/item/dicionario-hermeneutica), onde também cito farta literatura estrangeira e brasileira (como Bruno Torrano, André Coelho, Horácio Neiva, entre outros.
 
5 Retirado da tese de Otavio Luiz Rodrigues Jr, p. 61.
 
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

7 Comentários

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  1. Rocha Loures

    ao ser preso, afirmou que ao menos dois juizes do stj eram corruptos 

     

    até o momento nenhum foi afastado ou identificado, portanto TODOS os juizes do stj SÃO CORRUPTOS !!!

  2. Favoritado

    Artigo favoritado, pois sei que terei de usá-lo como argumento nas andanças pelo nosso Judiciário torto e sem rumo de nossos dias. Apenas para exemplificar,  o juiz Moro, ao condenar Lula, “ponderou” entre o princípio da reserva legal previsto na Constituição, o crime previamente definido na letra da lei, e aquilo que ele mesmo, subjetivamente, definiu como crime de corrupção e lavagem de dinheiro. Ficou com a última opção. E tudo indica que o TRF4 adotará o mesmo critério moral e político.É o fim!

  3. Devemos ser coerentes: a

    Devemos ser coerentes: a usurpação do legislativo pelo judiciário é algo que já vem acontecendo há um bom tempo e, antes,  exceto pelo antigo odiado pelas esquerdas, o Reinaldo Azevedo, ninguém se incomodava… Isso porque as cortes superiores têm sido pródigas em beneficiar as querências progressistas, ao arrepio das Leis e da CF/88.  Ora, por exemplo, Supremo não definiu que, ao contrário do que estabelece a Constituição, família é qualquer arranjo entre pessoas, independentemente de sexo? O Supremo não definiu que, ao contrário do que estabelece a Lei, aborto até o terceiro mês não é crime? E por aí vai… Se estamos postulando pela atenção à letra Lei, independentemente do que consideramos  justo ou não, não vale saudarmos determinados atos  ‘legislativos” por parte do judiciário só porque atende a um anseio nosso…

      1. Henrique Finco, que

        Henrique Finco, que comentário cretino o seu: em vez de se ater ao que se diz, tenta ridicularizar a pessoa do interlocutor. Parece até coisa de bolsominion ou olavete.

        1. Eis uma resposta à altuara ao

          Eis uma resposta à altuara ao Sr. Henrique Finco, dada pelo próprio Lênio:

           

          O mal que a onda histérica da judicialização da política e da politização da Justiça fez ao Brasil é uma das piores desgraças institucionais que já se fez neste país. A lei, que era para todos, agora foi substituída pelo julgamento moral que depende do que o juiz acha ou deixa de achar e sua tutela se sobrepõe, sem voto, a qualquer um neste país.

          Escrevi ontem sobre este episódio pavoroso da falecida nomeação de Cristiane Brasil e o absurdo em que  estamos metidos. Ao que parece, o caso vai mesmo para as mãos de Cármem Lúcia e é de duvidar que, nelas, vá ter outro destino senão seguir o pré-julgado, mais de olho na repercussão midiática que na constituição.

          Hoje, no Conjur, Lênio Streck escreve melhor, com o pensamento jurídico que deveria ser tão comum que mesmo, nós, leigos, podemos alcançar. Mas que se tornou quase uma raridade, entregues como estamos à uma corporação judicial que  olha para seus “índices de popularidade” e “repercussão nos jornais e nas redes” e passou a considerar que o que diz a lei já “não vem ao caso”.

          Judiciário quer nomear ministros:
          sugiro para a Saúde um não fumante!

          Lênio Luiz Streck, no Conjur

          A coluna também poderia ter o seguinte título: Alguém que trai a esposa(o) pode ser ministro(a)?

          Esta coluna não está preocupada com o destino nem do Ministério do Trabalho e nem da quase-ministra deputada Cristiane Brasil. O que quero discutir é o aspecto simbólico da interferência do Judiciário em assuntos que não são de sua alçada. Uma das grandes vantagens (talvez a única) de criticar o ativismo judicial e as arbitrariedades do Poder Judiciário no Brasil, como venho fazendo desde o século passado, é que nunca tive problema de “falta de material”. Todo santo dia aparece alguma decisão arbitrária e, mesmo que já tenha visto quase de tudo nessa vida, não paro de ser surpreendido. No meu ofício acadêmico, penso que jamais sofrerei de tédio.

          Dessa vez, o juiz da 4ª Vara Federal de Niterói (RJ) resolveu suspender a nomeação da deputada Cristiane Brasil ao cargo de ministra de Estado do Trabalho, pelo fato de que essa nomeação afrontaria a moralidade pública, já que a deputada teria sido condenada em duas reclamatórias trabalhistas.

          Pois bem. Dentre as 27 atribuições do presidente da República previstas na Constituição do Brasil, a primeira delas deixa claro que é de sua competência privativa nomear e exonerar ministro de Estado (artigo 84, I da CF/88). O argumento de que a deputada seria imoral para ocupar o cargo, pelo fato de que já foi condenada por duas reclamatórias trabalhistas, é redondamente frágil.

          “Mas professor, o senhor quer dizer que a (Não-quase-ou-de-novo) ministra tem moral para o cargo? O senhor gosta dela?”. Não, não quero dizer isso. Nem quero dizer o contrário. Isto porque sou jurista, não sou comentarista político, e é por isso que não interessa o que eu acho, o que eu penso nesse sentido, assim como não interessa o que pensa o juiz. Juiz tem responsabilidade política e é subjacente a essa responsabilidade a tarefa de decidir, não de escolher.

          É por isso, pois, que a decisão é frágil. Nem estou dizendo que a argumentação moral, a argumentação política e a retórica são frágeis. Não importa. A argumentação jurídica — essa, sim, a que importa de verdade — é frágil justamente porque se afasta da racionalidade própria do Direito. Quando a nomeação de Lula foi barrada, protestei; quando a nomeação de Moreira Franco foi barrada, protestei do mesmo modo. Por isso, protesto, aqui, mais uma vez contra o ativismo.

          Legitimar uma decisão ativista porque concordamos com a racionalidade moral ali pressuposta nada mais é do que legitimar que o Direito possa ser filtrado pela moral. E se aceitarmos que o Direito seja filtrado pela moral, e peço desculpas por fazer as perguntas difíceis, indago: quem vai filtrar a moral? É esse o ponto. Alguém tem de ser o chato da história. Não podemos aceitar o ativismo que agrada. Isso é consequencialismo puro, e devemos rejeitá-lo por uma questão de princípio. Do mesmo modo um réu não pode ser condenado porque o juiz não gosta dele. E nem o réu deve ficar preso porque o juiz fundamenta no clamor social, como se houve um aparelho chamado clamorômetro. Ou como as pessoas que queriam fazer interpretação extensiva ou analogia in malam partem no caso do ejaculador (ver aqui).

          Agora dito isso, tomemos emprestado o pessimismo de Kelsen por um momento e aceitemos, para fins de argumentação, que o Direito é assim mesmo e que juiz faz ato de vontade. Se a decisão for mantida (no segundo grau já foi), e o precedente tornar-se obrigatório (quanta gente adora esse stare-decisis-que-não-é-stare-decisis no Brasil, né?), gostaria de sugerir ao presidente, doravante, algumas observações na nomeação dos seus ministros. Dizem que conselho, se fosse bom, não seria de graça. De qualquer forma, lá vão eles:

          Penso que se o ministro da saúde fumar, deve ser descartado. Um bom ministro da Saúde deve praticar jogging diariamente. Deve comer salada e assistir o programa Bem Estar na Globo todo dia. O ministro da saúde também não deve ter halitose. E não pode ser gordo. Heráclito Fortes seria vetado.

          O ministro da Defesa precisa saber lutar judô. Ou boxe. Se for algum lutador de MMA, melhor ainda. Deve ser feita, ainda, uma pesquisa da vida do ministro, para apurar se foi alvo de bullying na escola. Se sim, deve ser descartado, afinal, que ministro da defesa é esse que sequer conseguiu se defender? É preferível nomear o valentão que fez o bullying.

          O ministro das Cidades não pode ser alguém que morou no interior; e o ministro da Agricultura não pode ser alguém que morou na cidade. O ministro da Educação deve sempre dizer “bom dia”, “por favor” e “obrigado”. Se houver qualquer registro de que ele não o fez, é imoral para o cargo. O Ministério da Cultura…. bem, esse eu acho que vai ter que acabar mesmo. Sem chance de resolver esse problema. É que ele deveria saber tudo sobre Machado de Assis, Shakespeare, mas parece crime impossível.

          Falando sério agora. Seríssimo: desculpem a ironia, desculpem as perguntas chatas, desculpem a insistência em coisas que, para alguns, já estão ultrapassadas, como força normativa da Constituição, legislação, enfim. Mas isso precisa ser dito. Afinal, se o juiz escolhe como quer, não há critérios, e não mais poderemos exigir o cumprimento da lei. E aí não adianta reclamar do ativismo só quando ele incomoda. (Talvez não tenha ficado claro, mas eu não subscrevo a essas teses que alguns têm levantado, inclusive em livros, de que o ativismo é bom.)

          Numa palavra final: se a racionalidade jurídica for substituída pela racionalidade moral, não servimos para nada. Fechemos as faculdades de Direito e matriculemo-nos todos em faculdades de filosofia moral.

          Ainda: se a decisão for mantida, teremos que, por coerência e integridade (artigo 926 do CPC) perscrutar/sindicar todos os cargos de livre nomeação. Por exemplo, o presidente do TCU quer nomear João Antônio das Neves para seu chefe de gabinete… só que ele foi multado em duas blitzes ou não pagou o carnê das lojas Renner. Pode ser nomeado? Isso é pior ou menos ruim do que ter duas reclamatórias trabalhistas? O prefeito de Pedregulho das Almas quer nomear Sofrício Ataualpa para uma secretaria…, mas ele não pagou o caderninho da venda ou foi visto saindo de um lugar suspeito de mulheres de vida difícil na periferia. Cabe ação popular? Vai liminar aí?

          Eis aí, de novo, a diferença entre Direito e moral. Entre a racionalidade jurídica e os argumentos morais. Ou a moralização do Direito. Não se pode olhar a política como ruim a priori.[1] Se o presidente erra na nomeação de um ministro, o ônus é dele. É o ônus da política. Se não fosse “por nada”, não há previsão constitucional que autoriza o judiciário barrar esse tipo de ato administrativo sob argumentos subjetivos.

          [1] Nesse sentido, a excelente análise de Eloisa Machado de Almeida, Folha de S.Paulo de 10.1.2018: “Suspensão de posse de ministra não deveria ser questão jurídica”.

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