Uma derrota dos municípios

 

No último dia 28 de fevereiro o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou as ações relativas à constitucionalidade das leis estaduais sobre regiões metropolitanas. A conclusão a que chegou é que cabe ao Estado-membro instituir as regiões metropolitanas, definindo os municípios que dela devem fazer parte. Tal decisão é compulsória, com isso os municípios definidos por lei complementar estadual obrigatoriamente passarão a fazer parte desse novo ente. Além disso, decidiu que a região metropolitana deve possuir personalidade jurídica, constituindo-se num tipo de autarquia, e, ainda, num aspecto do julgamento que não restou claro, que a região metropolitana deve ser gerida por um colegiado em que metade dos votos é do Estado e a outra metade pertence aos municípios, em uma espécie de gestão compartilhada paritária. Por fim, o STF decidiu que cabe ao Estado, com base nas respectivas dimensões sociais e econômicas, decidir quantos votos deve caber, no colegiado, a cada município.

Em resumo, tudo indica que a opinião que prevaleceu é a do Ministro Joaquim Barbosa, que em seu voto afirmou que: “a titularidade do exercício das funções públicas de interesse comum passa para a nova entidade público-territorial-administrativa, de caráter intergovernamental, que nasce em consequência da criação da região metropolitana. Em contrapartida, o exercício das funções normativas, diretivas e administrativas do novo ente deve ser compartilhado com paridade entre o estado e os municípios envolvidos”.

Na prática, prevalecendo esse entendimento, a instituição de uma região metropolitana transfire as competências municipais para o Estado, que as exercerá por meio do colegiado metropolitano. Com metade dos votos, basta o governador ter o apoio de um dos prefeitos da região metropolitana para impor a sua vontade ao conjunto dos municípios. Como é o próprio Estado quem define quais municípios integram as regiões metropolitanas, fica evidente que essa transferência de competências fica extremamente facilitada.

O efeito da decisão será imediato para o setor do saneamento básico. Atualmente, caso um município estivesse insatisfeito com os serviços prestados pela companhia estadual de saneamento básico, poderia buscar alternativa, pelo que ficava fortalecido para exigir da companhia estadual o cumprimento de metas de investimentos e de melhoria de qualidade. Com o apoio do Governo Federal, era isso o que estava acontecendo nos últimos dez anos, o que permitiu a um impressionante aumento dos investimentos e da melhora dos serviços.

Com a decisão do STF, o município somente poderá buscar uma alternativa no caso de haver a concordância do “órgão metropolitano”, onde o Estado-membro pode possuir metade dos votos. Concordância que nunca irá obter, porque o Estado jamais irá votar em contrário aos interesses da empresa de saneamento que controla. Confundem-se, assim, os papéis de poder concedente e de concessionário e, ainda, cria-se uma cômoda reserva de mercado.

Importante saber que o regime jurídico das regiões metropolitanas é também o das microrregiões e aglomerações urbanas, institutos também previstos no art. 25, § 3º, da Constituição Federal. Nada impede de que todo o território do Estado seja dividido entre estes institutos, o que, aliás, já ocorreu em alguns Estados, como o de Santa Catarina (parece que esta situação foi recentemente reformulada).

Para exemplificar o alcance da decisão, basta que o Estado divida o seu território em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões e defina, por exemplo, que é necessária a integração da educação e dos critérios de quem pode ser diretor de escola, fixando a competência de nomear estes cargos aos colegiados. É o que basta para que o governador nomeie todos os diretores de escola, sejam estaduais, sejam municipais. Evidente que, nos termos do que decidiu o STF, o município passa a ser um órgão cujas competências próprias são as que o governador entender que devam continuar com eles, sendo as outras “compartilhadas”, eufemismo para estadualizar.

Tal compreensão autoritária de regiões metropolitanas se originou no regime militar, dada a sua vocação centralista. Tratava-se de uma distorção da tese de regiões metropolitanas como “autarquias intermunicipais”, defendidas por diversas lideranças no final dos anos 50 e início dos anos 60, com destaque para a tese que o Professor Hely Lopes Meirelles apresentou no Congresso Nacional de Municípios, em 1959.

No STF havia a posição que defendia a região metropolitana como “autarquia intermunicipal”, na qual as competências seriam compartilhadas entre os municípios, sendo o Estado apenas o instituidor, nos termos do que literalmente prevê o art. 25, § 3º, da Constituição Federal. Era essa a posição do Ministro Nelson Jobim, em voto de mais de noventa páginas, bem como a do Ministro Eros Grau, que se dedicou a estudar com profundidade o instituto da região metropolitana em sua carreira universitária. Mas, com a dinâmica dos julgamentos do STF, estes Ministros, apesar de terem votado, não estavam presentes para defender suas posições, porque aposentados. Com isso, prevaleceu o entendimento de que os municípios são incapazes de exercer suas competências, e, por isso, era forçoso “compartilhá-las” com os Estados.

Sem dúvida o julgamento do STF foi uma derrota dos municípios. Mais que isso, foi uma derrota da democracia, porque, como sempre lembrava o governador Franco Montoro, sem município forte não há democracia. E é com tristeza que vemos que o espírito autoritário do regime militar, décadas depois, conseguiu infligir uma derrota ao projeto democratizante da Constituição de 1988.

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