Os gregos, os romanos e os norte-coreanos ocidentais, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O Tribunal de Westminster julgou o sistema prisional norte-americano e não o cidadão que os EUA pretende extraditar.

Os gregos, os romanos e os norte-coreanos ocidentais

por Fábio de Oliveira Ribeiro

De maneira geral, desde o século I aC os romanos gostavam de dizer que eram os herdeiros da cultura grega. Isso é muito evidente na poesia, pois poetas romanos como Propércio  (43 a.C. – 17 d.C.) e Catulo  (87 ou 84 a.C. – 57 ou 54 a.C.) imitavam as convenções estéticas utilizadas e difundidas pelo poeta grego Calímaco (310 a.C. – 240 a.C.).

O que os versos dos poetas elegíacos gregos e romanos “…dizem no fundo é a convenção de base da elegia: existe um mundo elegíaco imaginário, espécie de mundo bucólico com roupas comuns e não com roupas de pastor, onde a única preocupação é amar; mas, para que essas imaginações sejam mais divertidas do que sonhadoras, toda seriedade será afastada de um humor leviano. O que se rechaça é a emoção verdadeira.” (A elegia erótica romana, Paul Veyne, editora Brasiliense, São Paulo, 1985, p. 63)

Evidentemente, essa absorção e glorificação da cultura grega somente foi possível depois que Roma conquistou as cidades estados da Grécia. Antes disso, é possível citar pelo menos dois exemplos de como os romanos rejeitaram politicamente a grecização de Roma. Ambos foram narrados por Tito Lívio.

O primeiro refere-se à supressão do culto de Baco entre os romanos (186 a.C.).

“A partir do momento que os homens foram aceitos [no culto de Baco] e se instaurou uma mistura dos sexos – agora que a adoção da noite favorecia a desordem -, não havia excesso ou infâmia que não se realizasse, com os homens entregando-se mais aos desmandos entre si que na companhia das mulheres. Quando alguém mostrava repugnância àqueles vícios monstruosos ou parecia pouco disposto a perpetrá-los, acabava imolado como vítima, pois o melhor indício de religiosidade era não furtar-se a nenhum tipo de crime. Como que ensandecidos, os homens profetizavam e se entregavam a fanáticas contorções; as mulheres trajadas de bacantes e com os cabelos soltos, desciam ao Tibre empunhando tochas acesas, que mergulhavam na água e retiravam ainda incandescentes, pois continham uma mistura de cal e enxofre virgem.” (Ab Urbe Condita Libri, Tito Lívio, volume V, Paumape, São Paulo, 1990, p. 291/292)

O segundo se refere ao escândalo causado por Públio Cipião que, antes de passar à África para atacar Aníbal em Cartago, teria sido visto usando manto e sandálias gregas e se dedicando à leituras desprezíveis e às palestras.

“Além do caso Plemínio e das vicissitudes dos locros, o gênero de vida não apenas pouco romano, mas nada militar do general era muito discutido. Dizia-se que passeava de manto e sandálias gregas pelo ginásio dedicava-se a leituras desprezíveis e aos exercícios da palestra; com iguais preguiça e moleza, seu estado-maior degustava as delícias de Siracusa, esquecido de Aníbal e Cartago; o exército, subvertido pela licença como outrora em Sucro, na Espanha, e agora mesmo em Locros, constituía um perigo maior para os aliados que para o inimigo.” ((Ab Urbe Condita Libri, Tito Lívio, volume IV, Paumape, São Paulo, 1990, p. 108)  

Recupero esses dois episódios, pois me parece evidente que, assim como aqueles romanos escandalizaram Roma ao se desligar das tradições romanas, ao julgar o caso de Julian Assange a Justiça inglesa pode ser acusada de estar se libertando de algumas tradições ocidentais. 

Ao rejeitar o pedido de extração do fundador do Wikileaks, o Tribunal de Westminster não acolheu duas teses jurídicas essenciais sustentadas pela defesa de Assange: a necessidade de preservar a liberdade de imprensa e; a  impossibilidade da Lei norte-americana produzir efeitos extraterritoriais para alcançar um cidadão australiano em território inglês. 

Segundo o juiz, Assange – que ficará em custódia até o julgamento de eventual apelação – deve ser colocado em liberdade porque ficou provado que ele pode cometer suicídio num presídio dos EUA. Portanto, o Tribunal de Westminster julgou o sistema prisional norte-americano e não o cidadão que os EUA pretende extraditar.

A Inglaterra já havia estrangulado a Lei Internacional ao manter Assange confinado numa Embaixada impedindo-o de exercer o direito de asilo que lhe havia sido concedido. Agora, o sistema de justiça inglês estrangulou dois outros princípios jurídicos essenciais: o que garante a liberdade de imprensa e o que limita a soberania do Estado ao seu próprio território.

Se o precedente do Tribunal de Westminster prevalecer,  jornalistas ingleses que denunciarem crimes cometidos por Vladimir Putin poderão ser julgados com o mesmo rigor pela Justiça russa. E os jornalistas norte-americanos que denunciarem os crimes de Bolsonaro? Em tese eles poderão ser julgados pelos juízes federais evangélicos bolsonaristas.

Ao que parece, o jornalismo está sendo transformado num culto de Baco. Nas redações da imprensa livre existem “… homens entregando-se mais aos desmandos entre si que na companhia das mulheres.” No imaginário desses juízes, especialmente daqueles que são adeptos ao bolsonarismo, a existência de jornalistas gays deve ser considerada uma evidência concreta do ressurgimento do culto de Baco nas empresas de comunicação. Essa seria uma razão adicional para estrangular a liberdade de imprensa?

Nesse ponto, o leitor deve estar se perguntando porque diabos citei dois episódios da história romana para refletir sobre fatos que ocorrem no presente. Explico.

A história do Direito Público Internacional pode ser dividida em dois grandes períodos. O marco divisório é a Paz de Vestfália, celebrada em 1648. Através dela foram reconhecidos dois princípios que até a presente data orientam as relações internacionais: o da soberania nacional e o da não interferência nos assuntos internos de outro Estado.

Ao rejeitar a tese de inexistência de extraterritorialidade da Lei dos EUA e condenar o sistema prisional norte-americano, o Tribunal de Westminster feriu duplamente os princípios da Paz de Vestfália. Esta é uma das razões pela qual me recuso a comemorar a não vitória de Assange. A outra foi o desprezo pela liberdade de imprensa demonstrada pelo juiz inglês. 

Os evangélicos brasileiros ligados às igrejas evangélicas norte-americanas apoiam toda e qualquer pretensão dos EUA. Portanto, aproveitarei a oportunidade para falar de outro assunto sugerido por um dos fragmentos da obra de Tito Lívio.

Ninguém pode dizer que os cultos evangélicos não são preenchidos por emoções verdadeiras. Quando levam suas plateias ao delírio, os pastores evangélicos utilizam uma técnica diferente daquela que era empregada pelos poetas elegíacos. 

Ao rever vídeos de cultos na internet, notei pastores “…ensandecidos, os homens profetizavam e se entregavam a fanáticas contorções…”. Os cultos deles, portanto, podem ser considerados semelhantes àqueles que foram reprimidos pelos romanos. A aproximação entre igrejas evangélicas e traficantes de drogas e a sexualidade desenfreada da deputada pastora acusada de mandar matar o marido sugerem que o Brasil está sendo assolado por bacanais de Jesus.

A solução encontrada para resolver o caso Assange também é curiosa. Devemos supor que o juiz inglês viu um dos defensores de Assange filosofando acerca da impossibilidade dos EUA de projetar seu poder por todo globo terrestre como se tivesse uma soberania total sobre o que ocorre na Internet? Ele estava passeando “…de manto e sandálias gregas pelo…” Tribunal de Westminster?  

Finalizo com uma pequena história. Ela também é poética. 

No teto do  saguão do Heathrow Airport existem duas gaiolas penduradas. Numa delas, a vítima está morrendo. Na outra, a prisioneira já começou a apodrecer. Um turista norte-coreano que acabou de chegar à Inglaterra observa curioso as duas gaiolas e pergunta ao agente alfandegário.

-Quem são aqueles prisioneiros? O que eles fizeram?

-Eles são a liberdade de imprensa e o princípio da soberania da Paz de Vestfália. A primeira acreditou que podia ser realmente livre, coitadinha. O segundo estava atrapalhando o imperialismo global norte-americano. Ambos foram condenados pela justiça inglesa. – respondeu o inglês.

-Que adorável. N​o Aeroporto de Pyongyang existe apenas uma gaiola. Mas eu não pude ser informado sobre quem está preso nela. Talvez seja um poeta elegíaco grego ou romano.

Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

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  1. Quem vai julgar o império por desobedecer a Paz de Vestfália? Pois o que mais faz é atacar a soberania nacional de outros Estados,quando não armado, através do apoio a golpes “militares” ou “primaveras” (ou agora por lawfare) e interferir nos assuntos internos de outros Estados (apoio a Guaidó por exemplo)

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