A expectativa de vida aumenta, em 2084, para 35 anos, por Sebastião Nunes

Esta série de textos, iniciada neste domingo, é uma paródia do livro “1984”, de George Orwell, e pretende recriar a vida na Terra sob uma hipotética dominação do Covid-19.

A expectativa de vida aumenta, em 2084, para 35 anos

por Sebastião Nunes

Era um dia frio e luminoso de abril. Os relógios marcavam treze horas. Wilson Souza, queixo enfiado no peito na tentativa inútil de escapar ao vento desagradável, passou a toda pressa entre as portas de vidro grosso do Palacete Paulistano, mas não tão depressa que evitasse a entrada de um remoinho de pó e sujeira atrás dele.

Tirou do bolso o minitela (como era chamado o celular) e verificou se havia alguma mensagem nova para ele. Nada. Ouviu apenas uma voz resumindo o sucesso alcançado na última safra de cebola. Conforme sabia desde sempre, mensagens novas deveriam ser imediatamente respondidas. Aliás, responder mensagens oriundas do Ministério da Verdade era sua única ação no minitela. Nada mais era permitido, nem havia teclas ou outros meios de fazê-lo.

O vestíbulo cheirava a sopa de repolho estragada e a capachos velhos mofados. Numa extremidade, um brilhante cartaz colorido, grande demais para ambiente fechado, mostrava a imagem de um dos “Coronaviridae”, família de vírus relacionada com várias patologias humanas, entre eles o SARS-CoV, responsável pela pneumonia atípica grave, e o SARS-CoV-2 (vírus da Covid-19), além de cinco outras cepas. A maioria causava apenas resfriados comuns, mas suas diversas mutações, ao longo de décadas, haviam provocado terríveis pandemias e centenas (talvez milhares) de epidemias, muitas vezes subnotificadas, em todos os continentes.

Na parte superior do cartaz, em letras vermelhas, destacava-se a frase A UNIÃO VENCERÁ! Em letras menores, abaixo da imagem principal, outra frase apelava para a comunhão de esforços: TODOS JUNTOS PELO BEM DE TODOS! Do lado direito, quase tão grande quanto o vírus, a cara do presidente da Organização Mundial de Saúde (OMS), dirigente máximo da Terra, Brian O’Brien. Era um homem de seus quarenta e cinco anos, com espesso bigode escuro e feições rudes, mas agradáveis e simpáticas.

Wilson caminhou para a escada. Não adiantava pensar no elevador. Mesmo quando tudo ia bem, raramente funcionava. Desde o início de abril, a eletricidade vinha sendo cortada enquanto houvesse luz natural, supostamente como retribuição econômica dos moradores do prédio para a “Semana do Ódio”, na campanha contra as pandemias.

O apartamento ficava no sétimo andar e Wilson, com seus vinte e nove anos e uma úlcera varicosa no tornozelo direito, subiu devagar, respirando fundo e parando para tomar fôlego de dez em dez degraus. E se morasse, como tantos outros, no vigésimo, no quadragésimo, no centésimo andar? Sentiu um arrepio de pavor.

Em todos os andares, ao lado do elevador, havia um cartaz igual ao do vestíbulo, com o vírus e a cara de O’Brien se destacando, como se o acompanhassem durante todo o trajeto, para que ninguém esquecesse de que cada vida dependia do esforço pessoal. Como se repetissem continuamente o mote A UNIÃO VENCERÁ! Mas enquanto o vírus permanecia imóvel, os olhos de O’Brien se moviam, acompanhando-o para onde fosse. Só não era sinistro porque todos estavam acostumados com a imagem e não só o admiravam como a maioria também o venerava como o Grande Irmão.

 

DENTRO DO APARTAMENTO

Mal abriu a porta, o camarada Wilson, membro do partido externo e funcionário do Ministério da Verdade, ouviu uma voz pastosa, mas agradável, que dizia lentamente:

“Foi há mais ou menos sessenta e quatro anos que o Coronaviridae, através da cepa SARS-CoV-2, desencadeou a primeira epidemia de importância do século XXI e a mais mortífera desde a Gripe Espanhola, entre 1918 e 1920.”

A voz provinha de um dispositivo de plástico retangular fosco, preso à parede. Wilson acendeu a lâmpada do teto e depois girou um interruptor, de modo que o volume diminuiu, embora as palavras ainda fossem inteligíveis. Mesmo sendo possível baixar o som da macrotela (era esse o nome do aparelho, que lembrava a tela de um televisor), era impossível desligá-lo completamente.

“O problema” – continuou a voz – “é que, ao contrário da Gripe Espanhola, que originou apenas duas vagas sucessivas e altamente letais, a Covid-19 deu origem a uma enorme série de epidemias e pandemias, com duração de décadas.”

Wilson estava farto de ouvir aquele tipo de relatório. Desde os 21 anos, quando fora admitido no Ministério da Verdade e se mudara para o Palacete Paulistano, a falsidade desses noticiários deixou de importuná-lo, pois fazia praticamente o mesmo no Ministério da Verdade, ou Miniver, como se chamava em novilíngua, a língua oficial do Socialismo Inglês, ou Socing.

Com um suspiro, Wilson caminhou até a única janela da sala. Era um indivíduo pequeno e fraco, sua magreza acentuada pela frouxidão do uniforme azul do partido. Tinha o cabelo muito louro, o rosto avermelhado e a pele ferida pelo sabão vagabundo e pelas lâminas de barbear rombudas, sem contar a ação provocada pelo frio do inverno recém-terminado.

Do lado de fora, a cidade de São Paulo, que fora uma das mais populosas do mundo até a década de 2030, se mostrava fria e vazia. Na rua, pequenos remoinhos de vento formavam espirais de pó e papel sujo. Embora o sol brilhasse e o céu estivesse claro, o mundo parecia desbotado, exceto pelo brilho dos grandes cartazes pregados nas paredes e nos muros descascados.

Tentou lembrar a cidade quando era pequeno, mas nem ao menos lhe ocorreu o bairro de sua adolescência. Era como se, trabalhando no Miniver, ele fosse uma cobra mordendo o próprio rabo. Ao longe, a enorme massa de edifícios do centro, na maioria abandonados e arruinados, que pareciam ter sido bombardeados, erguia para o céu sua tristeza e seu desemparo.

Lá embaixo, nenhum carro passava, nem uma vivalma caminhava.

 

**********

Esta série de textos, iniciada neste domingo, é uma paródia do livro “1984”, de George Orwell, e pretende recriar a vida na Terra sob uma hipotética dominação do Covid-19.

Sebastiao Nunes

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. “Se o poeta é o que sonha o que vai ser real
    Bom sonhar coisas boas que o homem faz
    E esperar pelos frutos no quintal”.

    Milton Nascimento

    A distopia atual não é suficiente?

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador