A admirável Geração Beat: liberdade e coragem para ser vagabundo

Colagem sobre fotos de Ginsberg, Kerouac e Cassady

Tudo vale a pena se a alma não é pequena, escreveu Fernando Pessoa.

E vice-versa.

No Brasil atual é principalmente vice-versa.

Indivíduos absolutamente medíocres, de pobreza mental, humana e ética quase inacreditável, de repente são elevados a expoentes da extrema direita, ela mesma uma paçoca fedorenta que só comporta animais rasteiros.

Como se explica que, num país careta como os Estados Unidos, a Geração Beat tenha nascido, crescido e frutificado, contra todas as expectativas?

Por isso mesmo: pela caretice dos Estados Unidos.

 

NASCENDO DO PÓ

Allen Ginsberg publicou o caudaloso e catártico “Howl” [Uivo] em 1956; um ano depois Jack Kerouac lança o monumental “On the Road” [Pé na Estrada] e William Burroughs publica o contestador “Naked Lunch” [Almoço Nu] em 1959, mesmo ano em que Fidel Castro derruba Batista em Cuba.

Entre o final da década de 1940 e meados dos 1950, a extrema direita atingiu o apogeu nos EUA, como a famosa caça às bruxas, furiosa por identificar, perseguir e isolar comunistas, esquerdistas e simpatizantes, num intenso patrulhamento ideológico que obrigou artistas e intelectuais a se retratar ou calar a boca.

Era o macarthismo, intolerância no mais elevado grau. Contra ele, os jovens da Geração Beat representavam a não-conformidade, o avanço da revolução de costumes que, durante as décadas de 1960 e 1970 avassalaram o EUA careta.

Vagabundagem, drogas, álcool e delirante liberdade sexual se contrapuseram à política careta do poder. A juventude transviada era o oposto da caretice. Depois dela o mundo nunca mais foi o mesmo.

 

AO PÉ DA LETRA

Um dos mais emblemáticos textos do movimento Beat, o poema “Howl”, de Allen Ginsberg, começa assim:

“I saw the best minds of my generation destroyed by madness”, verso que foi desta forma traduzido para o português, por Claudio Willer:

“Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura”, que não dá conta do ritmo nem da sonoridade frenética do original, mas o que podia fazer o pobre Willer, senão se aproximar da literalidade mais evidente?

Ativista político de esquerda, homossexual, poeta em tempo integral, Ginsberg foi o símbolo maior de sua geração, influenciando os músicos e compositores que vieram depois e levando a contracultura a penetrar e fertilizar os nichos mais secretos e impermeáveis da cultura estadunidense. Tudo o que ele queria era querer tudo, o máximo de liberdade física, mental e sexual possível num país impossível. É claro que não conseguiu, mas a semente germinou e o pólen se espalhou.

 

MALUCOS NA ESTRADA

Embora composto da forma mais espontânea possível, inclusive escrito num rolo imenso de papel manteiga, sem parágrafos e seu pausas, “On the Road” transformou seu personagem principal, Neal Cassady, jovem delinquente sem eira nem beira, no herói sonhado por todos os estadunidenses de vinte anos: cruzando os EUA de carona, em carros roubados, alugados ou a pé, ganhando uns trocados aqui e ali, comendo o que encontrassem ou lhe fosse dado por andarilhos e vagabundos que nem eles, viveram a liberdade possível numa época de repressão e intolerância quase absolutas.

Por exemplo, na tradução de Eduardo Bueno e Lúcia Brito:

“Finalmente [diz Ginsberg] expliquei a Neal que ele é capaz de fazer tudo o que quiser, tornar-se o prefeito de Denver, casar com uma milionária ou se transformar no maior poeta desde Rimbaud.”

Ou:

“Subitamente comecei a perceber que todo mundo na América é ladrão de nascença.”

Ou:

“Era morena como uma uva. Mordi sua pobre barriga onde uma cicatriz de cesariana ia até as ancas. Seus quadris eram tão estreitos que ela não poderia dar à luz uma criança sem ser toda retalhada. Suas pernas eram uns palitinhos. Ela tinha apenas um metro e cinquenta. Ela abriu suas perninhas mirradas e fizemos amor na suavidade de uma manhã tediosa. Então, como dois anjos fatigados, tragicamente abraçados num recanto solitário de Los Angeles, tendo descoberto o que há de mais íntimo e delicado na vida a dois, adormecemos e dormimos até o fim da tarde.”

Ou:

“Fomos a Hollywood tentar trabalhar numa farmácia. Famílias enormes vindas do interior saltavam de seus calhambeques e ficavam paradas na calçada implorando para vislumbrar alguma estrela do cinema e a estrela do cinema jamais aparecia. Andavam em círculos olhando uns para os outros. Gays bonitões que tinham ido a Hollywood para serem caubóis do cinema caminhavam por ali alisando as sobrancelhas com a ponta molhada de seus minguinhos esnobes. As menininhas mais apetitosas e mais maneiras deste mundo tinham vindo para ser estrelas. Acabavam nos Drive Ins. Não havia moleza em lugar nenhum.”

Etc.

Um livro com passagens como essas só podia escandalizar na época. Só que o livro é totalmente isso. Ou mais. Não há refresco nem pausas nem sonolência.

Talvez seja o momento, no Brasil, de repensarmos o conceito de liberdade. E de esquerda. E de política. E de sociedade. E de ética.

Sebastiao Nunes

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