A pescaria parisiense que deu certo e outras proezas ‘patafísicas’, por Sebastião Nunes

Culpados, cabe a nós recuperar a democracia perdida e botar nossa terra nos trilhos, pela enésima vez.

A pescaria parisiense que deu certo e outras proezas ‘patafísicas’*

por Sebastião Nunes

Com forte puxão, Alfred Jarry lançou para a rive gauche do Sena um belo exemplar de lucioperca, peixe um tanto idiota e dos mais comuns naquelas paragens. Pescá-lo não era vantagem nenhuma, pelo menos entre os amadores sofisticados. Mesmo assim, Jarry dava saltos de alegria, batendo palmas, soltando hurras e arreganhando a dentadura de escassos dentes: estava garantido o almoço. Se não aparecessem filões, idem o jantar. Foi quando cheguei.

Eu tinha sido expulso por meus amigos recém-desencarnados (não tão recém assim), do Portão do Paraíso e adjacências, onde eu tentava alinhavar uma meta-ficção desprovida de astúcia, argúcia, perícia e sagacidade, ou seja, de fluência e nitidez.

– Sugiro interromper imediatamente essa parpalapatetice – disse Sérgio Sant’Anna, o contista renomado. – Por muito menos Dante condenou ao Inferno centenas de amaldiçoados ex-poetas, por maiores que houvessem sido.

– De acordo – de bate-pronto Otávio Ramos, o ficcionista reticente. – Não vale a pena gastar vela, flor e coroa com essa imitação barata de novela político-patética.

– Assino embaixo – prontificou-se de caneta imaterial em punho Manoel Lobato, o ex-consultor de prostitutas belo-beligerantes, na sua ex-farmácia do baixo meretrício belorizontino.

– Mais embaixo assino – tartamudeou Adão Ventura, o preguiçoso vate preto, rindo à socapa do desventurado ex, tão ligeiramente apeado de seus ricos galardões.

– Idem – concedeu Luís Gonzaga Vieira, o extensíssimo narrador semi-impublicado por teimosia e aleivosia dos generais (sic) editoriais.

– Ibidem – gastou seu latim Sancho Pança, o portador de bondades, cujo alforje repleto era plenamente aberto e oferto a quem se habilitasse, não estivessem todos de papo cheio de haxixe, heroína, ópio, maconha, cocaína, ayahuasca, erva-de-santa-maria, ora-pro-nobis, folha de maracujá, iscas de mescal e preciosidades mil, sem referir as congêneres sintéticas de matrizes variegadas.

– Ok, murmuraram Janis Joplin e Jimi Hendrix, os intrusos tocantes, drogantes e cantantes, no momento apenas delirantes.

Expulso por unanimidade, lá os deixei e abalei nuvens abaixo.

– Um dia me vingarei – gritei antes de abalar. – Nem que seja no Juízo Final!

NA MARGEM TURÍSTICA DO SENA

Foi quando encontrei o pai da ‘Patafísica (atentem para o apóstrofo antes do P, de suma importância), do Ubu Rei e do Super Macho, obras supremas do espírito humano, acima e abaixo do que sonha a filosofia dos turistas deslumbradistas, dos terraplanistas, dos antivacinas, dos radicais à direita, enfim, dos imbecis contumazes a quem, aliás, convido a retirarem-se deste texto, se é que o adentraram (argh!)

Tratava-se do famigerado, notório, magérrimo, famélico e parlapatão filósofo-poeta-dramaturgo-pescador-romancista Alfred Jarry. Diariamente pescava o almoço e, dando sorte, o jantar. Encostada a uma árvore raquítica que nem o pescador, sua discreta bicicleta, que o transportava nas horas vagas (que eram todas), por ruas, ruelas, praças, becos e puteiros de Paris. Cujo Jarry, para acrescentar-se 500 gramas na discrição corporal, levava na cintura o inseparável revólver, com o qual obtinha pardais gordinhos para enfeitar os pratos de peixe.

Que fazia eu na Cidade-luz? Não sei.

Alguma afinidade eletiva? Talvez.

Ou, quem sabe, ali depositado pela arte mágica das sábias palavras do mestre Millôr Fernandes, para quem “dinheiro não traz felicidade, mas com dinheiro podemos ser infelizes em Paris”. Pois sim. Ali estava eu, duríssimo, diante do deus tutelar, ao qual dediquei no pretérito longas horas de pensamento e prosopopeia.

RIO, PESCADOR E PEIXE

O rio dispensa apresentação. Mas é preciso situar os dois elementos que o circunscreviam. Nas águas sujas e atulhadas de porcarias diversas, barcaças sujas transportaram para cima e para baixo porcarias maiores, destinadas à fabricação de outras porcarias, menores e ainda maiores, senão colossais.

O segundo elemento eram milhares de ratazanas-gigante, fruto dos esgotos que ali despejavam, com estrondo, robustos cagalhões e aguadas diarreias parisienses.

Nada disso interessava a Jarry que sacudia no ar o rebrilhante peixe de dorso esverdeado, dançando apoplético. De repente, parou. Voltando-se para mim, indagou:

– Está servido?

Referia-se ao peixe e ao almoço. Pensei no almoço e encarei o peixe: teria bem uns cinco quilos. De espinha e vísceras, dois quilos. Restavam três de carne, mais do que suficientes para saciar nossa (dupla) fome.

– Muito obrigado pelo convite – declarei inclinando as costelas e desprezando o franzir de sobrancelhas que repudiava meu aceite.

– Então pegue o revólver e traga meia dúzia de pardais bem gordos.

Foi quando apareceram, aos berros, Sérgio Sant’Anna, Otávio Ramos, Manoel Lobato, Adão Ventura, Sancho Pança, Janis&Jimi, obviamente dispostos a almoçar.

– Três quilos de lucioperca divididos por nove, dá 333,33 gramas por cabeça – calculou Jarry. – Mas não seja por isso: leve o revólver e traga 18 pardais bem gordos.

Assim fiz, assim nos banqueteamos e assim me dou por retornado, para alegria dos parcos amigos e desgosto dos inimigos da ‘patafísica.

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* “Deus é o caminho mais curto entre o zero e o infinito, tanto numa direção como na outra” (Alfred Jarry)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Sebastiao Nunes

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