A última pescaria do velho e o mar ensanguentado, por Sebastião Nunes

Mais uma da nova dentição, desta vez explorando a relação entre Hemingway e Cuba. Hemingway foi um estadunidense que amava a Ilha e sua gente alegre e musical, como eu também aprendi a amar. Cuba é um país pobre mas orgulhoso, que resiste a ser massacrado pelo mesquinho imperialismo ianque.

A última pescaria do velho e o mar ensanguentado

por Sebastião Nunes

Hernie passou pelo El Floridita, pendurou mais um litro de rum na conta e seguiu rumo ao Malecón. Era um dia quente de julho e o sol queimava homens e pedras. Empurrou para trás a boina de algodão e limpou com as costas da mão o suor da testa.

– Bom dia, Manolo – entoou em inglês. – Boa manhã para pesca, não?

– Sim – respondeu o preto grandalhão, arreganhando os dentes. – Boa pra pesca, quente e sem vento. – Manolo era um de seus companheiros de bebedeira e conversa fiada e nunca recusava um daiquiri.

Hernie subiu a Calle Obispo, atravessou a O’Reilly e a Empedrado, seguiu pela Avenida de Bélgica, passou pela Calle Tejadillo, e continuou pela Colón e a San Lázaro até o Malecón, que bordejava o mar.

Durante o trajeto cumprimentou dezenas de homens e mulheres. Vermelho que nem caranguejo em água fervendo, era figura familiar em toda La Habana Vieja. O velho Ernest Hemingway, o Papa, o estadunidense amigo de Fidel.

Lá estava o mar. Do outro lado, visível a olho nu, a Flórida, para onde fugiam os cubanos cansados de comer esperança quando faltavam pollo, plátano e jamón.

Aspirou o ar limpo. Olhou em volta: uns gatos pingados aqui e ali. Então desceu com cuidado, as botas ferradas tirando faíscas das pedras. Lá embaixo estava o barco a vela, com dois grandes remos nas laterais.

Examinou a matalotagem preparada por Juanito: um garrafão de cinco litros de água mineral com gás, cinco garrafas de uísque, fumo para cachimbo e toda a tralha necessária para a pesca: dois caniços com molinete, camarões vivos numa tina com água salgada, garoupas pequenas noutra, anzóis, carretéis de linha, chumbadas, um canivete, destorcedores, uma faca, um gancho para puxar peixes grandes e uma rede de nylon.

Ernie sentou no banquinho do timoneiro e fumou o cachimbo preferido, olhando as águas transparentes, as ondas que se quebravam no molhe, a espuma se desfazendo.

Guardou o cachimbo, empunhou os remos e partiu:

– Hasta la vista! – gritou em espanhol para as pedras.

O RETORNO

Pouco mais de uma semana depois estava de volta, trazido pela corrente que sempre voltava ao Malecón. Do lado direito, restava um pedaço de remo. O outro fora despedaçado na cabeça dos tubarões que o rodearam até limpar a carne do peixe, cujo esqueleto brilhava ao sol. O peixe era imenso, maior que o barco no qual estava amarrado. Tão grande que uma multidão se amontoava em volta da carcaça, e cada vez chegava mais gente. Nunca se vira um espadarte daquele tamanho, nunca!

Deitado de comprido, esfarrapado, mais vermelho do que nunca, Ernie parecia morto. Até as botas estavam em frangalhos, deixando ver os dedos grossos.

– Ernie, Ernie, você está bem? – Manolo o sacudia com força e desespero, uma angústia intensa saindo dos olhos e se espalhando pela cara. – Fale comigo, Ernie!

– Com licença, sou médico, deixem-me passar – aos empurrões, um homem gordo se aproximou. – Afastem-se. Deixem de abafá-lo, deixem que respire.

O grande círculo se alargou, entre murmúrios. Todos queriam ver o famoso “Papa”, o estadunidense amigo de Fidel, se estava vivo ou morto.

QUEM CONTA UM CONTO…

Mais tarde, no El Floridita, entre goles de daiquiri e mastigando um sanduíche de queijo, Ernie tentou se explicar:

– Cinco dias de sol a pino e nada de peixe. O mar liso queimava. Refugiado junto às velas, examinava a ponta dos caniços. Tudo parado. Para matar o tempo, bebia uísque com água e fumava. De vez em quando trocava as iscas, que robalos, garoupas, chernes e vermelhos furtavam. Tubarões rodeavam o barco. Sobre minha cabeça passavam cardumes de peixes-voadores. Derrubei alguns com o remo, assei e comi. Às vezes comia os peixes crus, triturando nos dentes as espinhas. Nada à vista. O alto mar, quando o ar está parado, é um retrato do desespero inútil.

– No sexto dia a ponta do caniço começou a subir e descer. ‘Tem peixe grande mordendo’, pensei. ‘Tomara que seja um espadarte velho e calejado que nem eu’. Dei linha. O peixe começou a correr. Eu podia imaginá-lo com a isca na boca, levando-a para o fundo, cada vez mais fundo.

– No fim da tarde do sétimo dia consegui enxergá-lo. Nunca vira um espadarte tão grande, nem em imaginação. Na manhã do oitavo dia consegui amarrá-lo no costado. Tinha bem uns três dias que não dormia. Minhas costas eram uma ferida só. Mal sentia as mãos, de tão inchadas. A água tinha acabado. Então bebia uísque puro.

– Foi quando os tubarões atacaram. Comecei a bater neles com um remo. Quando o primeiro quebrou, deixei ele cair e empunhei o outro. Até que um tubarão mais afoito ou mais esfomeado abocanhou uma lasca de carne da barriga do meu peixe. O sangue se misturou com a água, enlouquecendo os outros tubarões. Sentado no meu banquinho, lutava para não ser jogado no mar ensanguentado.

Parou de falar, virou-se para Manolo com um sorriso triste, olhou a multidão em volta, e então deu por encerrado o papo:

– O resto vocês saberão no livro que começarei a escrever amanhã.

**********

“A primeira mazela de uma nação mal governada é a inflação; a segunda é a guerra. Ambas trazem prosperidade duradoura para os ricos; ambas trazem ruína permanente para os pobres. Ambas são o refúgio dos políticos oportunistas.” (Ernest Hemingway)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

Sebastiao Nunes

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