A única doença incurável é a ignorância, por Sebastião Nunes

Cabeças com régua, compasso e carimbo

A única doença incurável é a ignorância, por Sebastião Nunes

Em 1990, quando a democracia parecia viável e a literatura uma atividade digna de ser praticada, publiquei a primeira edição da minha História do Brasil, sátira feroz contra os figurões e os acontecimentos mais relevantes de nossa história.

Acreditei, desde jovem, pela ingenuidade mais lamentável, que num país do tamanho do nosso, com o potencial que temos, haveria espaço para a inteligência, a cultura, a arte e – por que não? – a sátira. Ledo engano.

Eu acabara de ser admitido na Faculdade de Direito da UFMG quando o golpe de 1964 pariu o monstro que nos humilhou durante duas décadas.

Ainda assim continuei a escrever e a publicar, ingênuo que era.

Jamais poderia supor que, passados tantos anos, e às vésperas de completar 80 anos, estivesse à beira de reviver, em todo o seu terror, em todo o seu sadismo, em toda a sua crueldade, um simulacro grotesco da ditadura morta e enterrada.

Morta e enterrada?

Outro engano. Basta que a democracia bote o nariz de fora, basta que algum arremedo de igualdade ameace brotar, para que as elites governantes desde sempre, de mãos dadas com a mídia nojenta desde sempre e com o judiciário nojento desde sempre, falsifique, trapaceie e ressuscite o velho jogo sujo de ontem e de sempre.

Um velho jogo sujo que parece imortal.

 

AS MÃOS SUJAS

Desde que foi criada, em 1965, a Rede Globo deu as mãos à ditadura e, juntas, marcharam contra o país e o povo. Uma, usando fuzis: a outra, lavagem cerebral.

O que pode um povo contra uma rede de televisão que, numa aberração quase inconcebível, pratica lavagem cerebral em quase toda a população, de crianças a adultos, dia e noite, de domingo a domingo – durante décadas e décadas?

Imaginei que, com o advento da internet e suas extensões, a morte da Rede Globo (e da Record, sua versão neopentecostal) seria questão de tempo e, com meu ingênuo otimismo, questão de pouco tempo.

Mais um engano.

De que valem milhões de celulares, bilhões de mensagens cruzando o ar e se proliferando, se todas repetem o que a Rede Globo manda repetir e o poder das vozes divergentes tende para o zero?

Enquanto isso, o Jornal Nacional, com a canalhice de sempre, com a caradura de sempre, lança mentiras e meias-verdades como torpedos e granadas em plena sala das pessoas que, sem perceber, são massacradas ano após ano.

 

PAPAGAIOS E CARNEIROS

Vivemos num país de repetidores.

95% da população – que nada lê e nunca procura informação fora dos meios convencionais (TVs de direita, jornais de direita, rádios de direita) – se deixa levar pela correnteza avassaladora da extrema direita, enfileirados como carneiros, balindo “sim, senhor” em vez de gritar.

Dezenas de milhões de papagaios e de carneiros seguem na direção que a mídia ordena, afundados na ignorância e na mais sórdida miséria intelectual.

Muitos nem sequer se lembram em quem votaram para prefeito ou deputado da última vez.

A Grande Mãe Global mandou votar em alguém e os carneiros obedeceram. Obedientes como os carneiros, os papagaios repetiram à exaustão as palavras de ordem da mídia canalha.

Somos um país de papagaios e carneiros, analfabetos funcionais, ignorantes de pai e mãe, que mal nos lembramos do que aconteceu no ano passado, quanto mais do que aconteceu na década de 1960.

 

TREVAS PLATÔNICAS

Desde Platão, que pensava, passando por Maquiavel, que também pensava, e por milhares de outros pensadores, os caminhos da democracia se revelam espinhosos, quando existem, mas quase nunca passam de miragens no horizonte tórrido.

O mais triste de tudo é andar pelas ruas e começar, ainda vagamente, a ter medo do que as pessoas imaginam que pensam. A ter medo do que as pessoas em volta dizem, repetindo palavras de ordem. A ter medo do que as pessoas a seu lado podem fazer, por incitação do Grande Irmão e de seus vassalos.

A violência bate à nossa porta.

Os cães de guarda arreganham os dentes.

Os ignorantes (incluindo batalhões de sádicos, prontos para servir a qualquer ditadura) afiam as garras.

Nós, que imaginamos um país em que arte, cultura e liberdade caminhassem lado a lado, estamos prestes a mergulhar no caos da ignorância absoluta.

Da mais absoluta ignorância individual e coletiva.

O Brasil se transformou, graças ao Grande Irmão em que a TV Globo se tornou, numa pavorosa máquina de lavagem cerebral.

Sebastiao Nunes

6 Comentários

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  1. A ignorância tem cura, cabe o

    A ignorância tem cura, cabe o indivíduo procura-lo, a sabedoria e a cura…mas enquanto não procura ele continua matando. sempre digo que a doença que mais mata no mundo e a ignorância, mata de fome ,de ódio, de cobiça, de ganancia, de truculência ,de avareza, de soberba ,de cólera, de poder, da fraqueza, de falta de esperança, de falta de informação….falta de tudo…

  2. TV GLOBO E IGNORÂNCIA

     

    Prezado Sebastião Nunes

    Prezados visitantes

     

    O artigo é impecável. Tudo o que vemos hoje, a violência, o ódio aos pobres e a qualquer tentativa (por tênue que seja) de distribuição de renda, a apologia à morte e à tortura, essas e outras barbaridades, são a expressão da ignorância,  criada pela lavagem cerebral promovida pela mídia e  pela impossíbilidade de se construir um contra-discurso que alcance a grande maioria da população, sobretudo os mais pobres.

    Nada a espantar pois temos uma educação pública (para os pobres) de quinta categoria. Um projeto implantado desde o golpe de 1964 (agora chamado de  “movimento” pelo novo revisionista do stf). Em São Paulo, um professor da rede pública começa a carreira ganhando menos de três salários mínimos por mês .. Não é preciso dizer mais nada.

    O pior é ouvir — e quem já não ouviu — figuras de classe média repetindo como papagaios e carneiros o que a globonews, e rádios de direita alardeiam como se fossem sábios. A penúltima é igualar Haddad e o esfaqueado, como se fosse possível alguma comparação.  

    Um bom domingo e um abraço especial ao Sebastião. Comecei a ler seus textos aqui no ggn e adorei muito “O  país dos Canalhas.

     

  3. Afeto
    Afeta-me (e a quantos outros mais…) o peso do texto, a alusão à idade, a funda tristeza da constatação de minha (nossa?) não sobreviver ainda um algo mais. Abraço ao autor e comentaristas, aturdidos diante do absurdo com grandes chances de se materializar, logo – embora ainda haja fio de esperança do pior não acontecer.

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