Adão Ventura odiaria passar pela vida em brancas nuvens, por Sebastião Nunes

Cartão póstumo de Adão Ventura

Adão Ventura odiaria passar pela vida em brancas nuvens

por Sebastião Nunes

As largas plantas amarelas dos pés, o negrume descorado da pele e a flacidez opaca do rosto indicavam que o poeta estava se despedindo.

Sentados em cadeiras de ferro pintadas de branco, eu e Jaime ajudávamos Adão a selecionar seus poemas inéditos na babel de infinitos manuscritos, espalhados pela cama também de ferro e também pintada de branco.

Amarfanhado, o lençol não dava conta de recordar os infinitos doentes terminais que tinham saído daquela cama para a autópsia, o necrotério, a cova e o esquecimento.

– O título será “Costura de Nuvens” – disse Adão, olhando para nós com seu ar de falsa insegurança. – Costura de Nuvens é um bom título, não é?

Mais que isso, era uma pepita de absoluta pureza da mina secreta de Adão.

A enfermaria pobre tinha quatro camas, mesinhas de cabeceira com remédios e um cubículo com vaso sanitário, chuveiro e pia. Uma das camas estava vazia. Nas outras, velhinhos murchos espiavam curiosos entre espanto e riso. Esperavam também.

Adão era apenas uma forma escura entre papéis dispersos.

 

APOSENTADORIA AFINAL

Dois anos antes Adão se aposentara como juiz classista, atuando em Passos. De volta a Belo Horizonte, gastou as economias num apartamento e se instalou para viver e envelhecer tranquilo. Convidou duas amigas e um sobrinho para morarem com ele e a casa movia-se ao ritmo do entra-e-sai de visitas e hóspedes eventuais.

Adão se preparava, tempo cumprido na burocracia jurídica, para longos anos de poeta em tempo integral. Não sabia que ali perto, logo na esquina, estava à espreita outra aposentadoria, a definitiva e eterna, aquela da qual ninguém escapa.

Militante da causa negra, imagino que Adão fazia dele os versos de Francisco Otaviano, com quem nada tinha em comum, exceto o gosto da poesia. Na verdade, o que movia os dois poetas, Ventura e Otaviano, com nos move a todos, era o medo de morrer sem deixar marca na memória dos sobreviventes:

            “Quem passou pela vida em branca nuvem
            E em plácido repouso adormeceu,
            Quem não sentiu o frio da desgraça,
            Quem passou pela vida e não sofreu,
            Foi espectro de homem, e não homem,
            Só passou pela vida, não viveu.”

Foi por isso que, descoberto o câncer que lhe roía os intestinos, e depois de imaginar-se definitivamente curado, decidiu Adão reunir os inéditos, publicando antes “Litanias de cão”, livro feito às pressas, coalhado dos erros de ortografia, de revisão e de impressão que a urgência impusera.

 

VOLTA O BICHO QUE RÓI

Depois de operado vieram dois anos de amedrontada calmaria, a convalescença furtiva e ambígua. Quando a doença voltou, Adão conhecia os vilões:

– Culpa das jantas em Passos. Eu saía do trabalho e jantava uísques duvidosos com pastéis dormidos no botequim da esquina. Todo dia. Foi isso que me lascou – confidenciaria meses depois.

Certa vez, Adão bebeu sozinho, dividido em cinco noites de sábado, um garrafão de cachaça hospedada num recipiente que contivera querosene. Se o cheiro era duro de aguentar, o gosto dava engulhos. Adão bebeu até a última gota, estalando a língua. 

Depois da cirurgia, e numa visita que me fez, o assustado poeta relutava beber um simples copo de cerveja. Deu uma bicadinha envergonhada e deixou de lado. Não se atrevia. Seu regime de mais-vale-prevenir-do-que-remediar era mingau de fubá toda manhã, reforçado com ovo quebrado em cima e queijo picadinho, para fortalecer.

Agora, na cama pintada de branco da enfermaria, Adão concluía seu testamento, costurando sua nuvem de ásperos – quando não líricos – poemas. O outro testamento, o dos bens materiais, deixou nas mãos da amiga e advogada Beth Guimarães.

 

COSTURA DE NUVENS

Afinal desistimos: papel demais, fragmentos demais, variantes demais. Versos soltos e poemas inacabados em excesso.

Decidimos, eu e Jaime, levar para casa a papelada manuscrita e dividir a tarefa. Havia páginas com uma única palavra. Inúmeras repetições. Por um lado, havia poemas já impressos, mas corrigidos e, junto deles, inéditos longe de estarem prontos. Juntamos tudo e levamos para organizar a barafunda e desconstruir o caos.

Antes da morte de Adão estivemos em sua casa. Arranquei, na pequena horta do apartamento térreo, alguns ramos de boldo rasteiro, que transplantei no meu quintal.

Nesse mesmo dia – com nossos votos mentirosos de “volte logo!” – foi levado de ambulância para o hospital, em seu derradeiro passeio pela cidade que se tornara a sua, desde que o menino enfatiotado de botina nova e roupa domingueira deixara Santo Antônio do Itambé rumo à cidade grande.

Na véspera do enterro sofri um ataque de Pânico na ida para o velório, típico de agorafobia: eram uns 200 metros ermos numa rua vazia e triste, do dia dos namorados de 2004, como me lembrou Jaime há pouco. Para lembrar que as parcas existem, é o mesmo dia em que outro poeta e amigo, Fernando Brant, também se foi, anos depois.

“– Muitas vezes/ a cor da pele/ é uma grande parede.// Daí/ o abraço frouxo./ o beijo mal dado/ e o sorriso amarelo.”

 “Talvez/ você possa ser/ até um arco-íris/ ou uma fresta/ de luz.// Que vare/ de ponta a ponta/ meu coração/ e me acorde/ para mais/ uma tempestade.”

Em suas nuvens costuradas Adão sonhou a vida inteira com essa tempestade.

 

Nota: o cartão póstumo da ilustração me foi cedido pelo escritor e amigo comum Jaime Prado Gouvêa.

Sebastiao Nunes

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