por Sebastião Nunes
Não pensei duas vezes.
De um pulo alcancei a cabine do meu Blackbird e decolei. Em menos de 30 segundos cheguei ao local da explosão.
Ainda com os olhos ardendo e lacrimejando, perguntei a um policial que tentava limpar a poeira do uniforme e alguns arranhões do rosto:
– Que diabo aconteceu aqui?
Atarantado, ele apontou para os escombros do palácio e para a fileira de corpos estraçalhados no gramado. Parecia repetição de Carandiru. Só que agora não eram presos pobres chacinados pela polícia paulista, mas altos figurões da república. Calculei entre 150 e 200 corpos, a maioria quase irreconhecível de tão pretos. Senadores, deputados e puxa-sacos, com certeza.
Pensei com meus botões: “Negro no congresso só se for branco carbonizado”.
CONDENAÇÃO SIMPLIFICADA
Numa grande mesa estavam reunidos os 11 ministros do STF. Julgavam alguns petistas apanhados com coquetéis molotov.
O julgamento era sumário.
– Seu nome?
– Fulano de Tal.
– Confessa que atirou um coquetel molotov na mesa diretora da Câmara?
– Não confesso nada. Não fiz nada. Não tinha coquetel nenhum.
O juiz-presidente martelava na mesa:
– Condenado. Pena: fuzilamento. Quando: em 30 minutos.
Boquiaberto, via aquilo sem entender que merda estava acontecendo. Parecia sonho. Ou delírio.
De repente, fui agarrado por dois japoneses da federal e jogado diante dos juízes do STF. Sorriam sadicamente, Gilmendes Márvio mais que todos.
BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO
– Seu nome?
– Sebastunes Nião.
– Confessa que jogou um coquetel molotov na mesa diretora do Senado?
– Não, meritíssimo. Eu nem estava aqui.
O juiz-presidente martelou na mesa:
– Condenado. Pena: fuzilamento. Quando: em 30 minutos.
A FILA DA MORTE
Nós, os condenados, fomos colocados em fila indiana. Eu era o sexto. Súbito, ouviu-se o rufar dos tambores. Ao ouvi-lo, senti, por assim dizer, como se a alma me fugisse do corpo. Perdi toda a capacidade de pensar e recordar. Só podia ver e ouvir. E só tinha um desejo: que aquela coisa horrível acabasse o mais depressa possível.
Passei os olhos pelos companheiros.
Os dois das extremidades tinham a cabeça raspada, não sei como deu tempo. Um era grande e magricela, o outro era peludo, musculoso e de nariz achatado. O terceiro tinha uns 40 anos e cabelos grisalhos. Chorava silenciosamente, as lágrimas correndo pela cara enrugada. O quarto era um belo rapaz, de barba escura em forma de vassoura e olhos pretos. O quinto parecia operário: tez amarelada, esquelético, olhos fundos, vestia uma blusa xadrez e devia ter no máximo 18 anos.
NA HORA DA MORTE
Ouvi que discutiam como fuzilar os condenados: individualmente ou dois a dois.
– Dois a dois – determinou o comandante do pelotão.
Lá no fundo, sentados em sua mesa, os ministros do STF assistiam. O secretário leu a sentença, que era a mesma para todos, e bilíngue: português e inglês.
– Atiradores, a postos! – ordenou o comandante.
A fuzilaria começou. De dois em dois os corpos caíam, cobertos de sangue, e eram jogados numa cova funda logo atrás do poste.
Na minha vez, chamaram apenas o condenado a meu lado. Compreendi que eu não seria fuzilado. Enfim, levaram o rapaz que parecia operário.
Assim que lhe puseram as mãos em cima, deu um salto e agarrou-se a mim, que sacudi os braços, tentando livrar-me dele, covarde que sou.
Não adiantou o coitado espernear. Arrastaram-no pelas axilas enquanto ele gritava. Ao chegar ao poste, calou-se. Só então compreendeu. Parecia um animal ferido, olhando em volta, alucinado.
Quando lhe vendaram os olhos enxutos, ele próprio ajeitou na nuca o nó que o machucava e quando, em seguida, o amarraram ao poste ensanguentado, inclinou-se para trás, mas como essa posição fosse incômoda, voltou a endireitar-se e, de pés juntos, dócil, pôs-se no lugar conveniente.
Ouviu-se a ordem de fogo (português e inglês de novo) e os tiros soaram quase simultaneamente. Vi o rapaz escorregar, de súbito desamparado. Sangue lhe apareceu em dois pontos, no peito e na barriga, as cordas bambearam sob o peso do corpo e o fuzilado, a cabeça exageradamente pendida, as pernas dobradas, sentou-se no chão. Corri para ele. Ninguém me deteve. Em volta do cadáver moviam-se vultos pálidos e assustados. Os soldados, apressados, arrastaram-no para longe do poste e o jogaram na cova. Alguns ainda se contorciam.
AÇÃO E REAÇÃO
Calados, indiferentes, os ministros do STF olhavam em sossego. Só Gilmendes Márvio tinha um sorriso sarcástico no bocão de sapo.
Não sei quanto tempo se passou. Lembro apenas que a multidão em volta dos corpos crescia, passando diante deles em silêncio, como numa procissão.
Sem pensar duas vezes, alcancei um coquetel molotov no bolso esquerdo de meu casaco polivalente e o lancei, com pontaria certeira, na mesa do STF.
Voaram pernas, braços, cabeças e vísceras para todos os lados.
(Continua na próxima semana)
NOTAS NECESSÁRIAS
01) Parte deste texto é pastiche do romance “Guerra e Paz” (1869), de Leon Tolstói.
02) Não vi José ou Verídica Serrote entre os vivos ou os mortos.
03) A ilustração é uma colagem a partir de vários protestos populares.
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reconheci
Não conheço os personagens da historinha.
Apenas um, que é inconfundível.
Este:
“um sorriso sarcástico no bocão de sapo.”
” Sem pensar duas vezes,
” Sem pensar duas vezes, alcancei um coquetel molotov no bolso esquerdo de meu casaco polivalente e o lancei, com pontaria certeira, na mesa do STF.
Voaram pernas, braços, cabeças e vísceras para todos os lados.”
Gostei especialmente desta parte.
Podemos fazer o mesmo com a “força Tarefa” da lava rato incluindo o tribunal de exceção do RS.
Com a globo também.
Janio da Silva Quadros!
Ex presidente Janio Quadros,tentou um golpe de Estado mas o “POVO”nao ajudou.Jogava o Rei PELE e as 5 da tarde o temido Janio e sua mulher foram banidos do Territorio Nacional.Dura realidade. Brasileiro so se reune para valer no cordao do”BOLA PRETA”
Por enquanto pensar não é crime,
por isto pensamos e imaginamos e sonhamos e desejamos. Tenho certeza que nem tudo o que pensamos e desejamos temos coragem de falar ou escrever. Neste momento surge a arte que libera nosso íntimo contido. E da arte o sonho se fará realidade. Não àtoa, um dos primeiros atos de ditadores é tentar calar a voz dos artistas.