Avanços da Novilíngua na destruição de palavras e do pensamento crítico, por Sebastião Nunes

Avanços da Novilíngua na destruição de palavras e do pensamento crítico

por Sebastião Nunes

Foi só Wilson perguntar pelo dicionário da Novilíngua, para Simeão abrir um largo sorriso de satisfação. Depois de dizer que seu trabalho não era inventar, mas destruir palavras, empurrou a marmita para o lado, fez um sanduiche com pão e tomate, deu uma dentada gulosa e inclinou-se por cima da mesa para falar com Wilson sem necessidade de gritar.

Para deixar bem clara a importância do que dizia, repetiu o que acabara de falar, com mais ênfase ainda:

– Quando terminarmos esta edição do dicionário, pessoas como você serão obrigadas a aprender tudo de novo. Você pensa que estamos inventando palavras? Nada disso. Estamos é destruindo palavras e a capacidade de pensar criticamente!

Fez uma pausa, olhou satisfeito para o sanduíche, deu outra mordida, olhou com superioridade para Wilson, e continuou:

– A décima primeira edição é a definitiva. Estamos dando os últimos retoques na língua, para que fique exatamente como deve ser quando ninguém falar de outro jeito. No nosso trabalho, estamos destruindo dezenas, centenas de palavras todo dia. Trabalho lindo! Estamos reduzindo a língua ao esqueleto puro. A décima primeira edição não terá nenhuma palavra que possa se tornar obsoleta antes de 2150.

Olhou triunfante em volta e deu outra dentada no sanduíche. Seu rosto moreno e afilado se animou. Os olhos abandonaram o jeito zombeteiro e se tornaram sonhadores. Sempre mastigando com prazer, foi em frente:

– Mais bonito do que inventar palavras novas é destruir palavras velhas. Sabia que a maior concentração de palavras inúteis está nos verbos e nos adjetivos? É claro que existem centenas de substantivos que podem ir para o lixo. E não falo apenas de sinônimos. Antônimos também. Pense bem: o que é que justifica a existência de uma palavra que é apenas o oposto de outra? Toda palavra contém o seu contrário.

Depois de uma nova pausa para que Wilson assimilasse a importância do que estava dizendo, prosseguiu:

– Pense em “bom”, por exemplo. Se temos essa palavra, para que serve “mau”? “Nãobom” é suficiente. É inclusive melhor, por ser exatamente o contrário, enquanto a outra não é. Ou, se o que você quer é reforçar a palavra “bom”, por que precisamos de palavras vagas e inúteis como “excelente”, “esplêndido” e outras parecidas?

   CONTINUA A DEMOLIÇÃO

Olhando fixamente para Wilson, mas aparentemente vendo através dele o futuro próximo e também o futuro distante, Simeão continuou:

– Para substituir com rigor tais palavras, podemos usar “maisbom” ou, se prefere algo mais forte, temos “duplomaisbom”. Claro que já usamos essas formas atualmente, mas na versão definitiva da Novilíngua todo o restante desaparece. No final, tudo o que se refere a bondade e ao contrário de bondade será limitado a seis palavras, na realidade a uma só. Consegue ver como é belo, Wilson? Claro que a ideia original foi do Grande Irmão, acrescentou com um sorriso.

Uma espécie de animação insossa iluminou o rosto de Wilson, quando ouviu a referência ao Grande Irmão. Simeão percebeu a falta de entusiasmo no rosto de Wilson e acrescentou imediatamente:

– Pense no futuro, Wilson. Pense em como vamos transformar a sociedade pela linguagem. Por exemplo, nossos grandes inimigos são os Coronaviridae, com todas as suas cepas, umas mais resistentes, outras mais letais. Para combatê-los, para destruí-los completamente, basta associá-los, pela linguagem, aos terroristas proles.

Deu algum tempo para que Wilson assimilasse a enorme importância daquilo que dizia e continuou:

– Temos, atualmente, 65 cepas de Coronaviridae, que nos exigem vigilância e combate permanentes. E temos, em todas as grandes e médias cidades da Terra, mais de 10.000 grupos armados de proles, organizados em guerrilhas, que se ocultam como ratos em casebres, becos, labirintos infinitos. Nosso trabalho atual é o de identificá-los através de agentes infiltrados e, em seguida, caçar um a um.

– Deve ser um trabalho difícil – murmurou Wilson, só para dizer alguma coisa.

– Difícil? Bota dificuldade nisso! – quase gritou Simeão. – Mas sabe como vamos conseguir? Transformando-os em párias indesejáveis, usando a Novilíngua!

Simeão quase babava de entusiasmo enquanto gritava para Wilson, pouco se importando se o ouviam nas mesas vizinhas:

– O mais letal Coronaviridae até hoje foi o SARS-CoV-54, surgido em 2054, há exatamente 30 anos, que se espalhou com uma velocidade incrível, matando em poucos meses três bilhões de pessoas indefesas, totalmente indefesas – está lembrado?

– Estou – resmungou Wilson.

– Pois é a esse vírus que vamos associar os terroristas proles e acabar com eles!

Com um suspiro de satisfação, Simeão recostou-se na cadeira e preparou-se para explicar a incrível nova ideia ao hesitante Wilson.

Sebastiao Nunes

Sebastiao Nunes

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