Breve perfil de brasileiros ilustres – Roberto Marinho, o genocida, por Sebastião Nunes

Desenho de caveira sorridente sobre logotipo antigo da Globo

Breve perfil de brasileiros ilustres – Roberto Marinho, o genocida

por Sebastião Nunes

Corria o mês de abril de 1965. Alguns dias antes fora comemorado ali mesmo, com vinhos caros e convidados escolhidos a dedo, o bem-sucedido golpe militar do ano anterior, apoiado ostensivamente pelo jornal O Globo.

A sala era gigantesca. Garçons corriam de um lado para o outro servindo água mineral, café, salgados e refrigerantes. Toda a cúpula do que viria a se tornar a mais poderosa emissora de TV do país estava presente, a começar pelo fantasma do patriarca e fundador do jornal, Irineu Marinho, falecido há 40 anos, emoldurado num quadro a óleo de cores sombrias.

Na cabeceira da mesa enorme, Roberto Marinho (60 anos), autêntico rei da cocada preta, dirigia a reunião. Na outra ponta da mesa, paparicado por uma babá negra, William Bonner, então com dois aninhos, chupava um pirulito de groselha, cuspindo no babador que, providencialmente, lhe fora amarrada no pescoço.

De um lado e outro do chefão, sentavam-se os filhos e herdeiros: Roberto Irineu Marinho (17 anos), João Roberto Marinho (11 anos) e José Roberto Marinho (9 anos).

Em sequência, alternavam-se aqueles que constituiriam no futuro a elite da emissora: Armando Nogueira (38 anos), Walter Clark (30 anos), José Bonifácio Sobrinho, o Boni (29 anos), Merval Pereira (15 anos), Faustão (14 anos) Miriam Leitão (12 anos), Ali Kamel (4 anos) e Xuxa (2 anos), lambendo um microfone de chocolate. As cadeiras restantes eram ocupadas por dedicados e esperançosos aspones, que ao longo dos anos se destacariam no alto escalão das empresas do grupo.

 

COMEÇA A REUNIÃO

– Está aberta a sessão – declarou enfático o chefão, dando forte soco na mesa para demonstrar autoridade.

Autoridade que foi turvada em seguida pela aparição, em marcha acelerada, de seis carrinhos de mão carregados com pacotinhos de notas de dólar. Cada pacotinho tinha 100 notas de 100 dólares = 10.000 dólares. Cada carrinho levava 100 pacotinhos = 1.000.000 de dólares. Seis carros com um milhão cada um = seis milhões de dólares. Havia um sétimo carrinho igualzinho aos outros, mas o chefão esclareceu:

– Esse aí leva também um milhão de dólares, mas são notas falsas pra pagar propinas. Quem recebe propina não pode chiar, não é mesmo?

– O negócio é o seguinte – disse o chefão, assim que os carrinhos acabaram de passar. – Essa grana aí veio dos Istates, mais exatamente do Grupo Time-Life, num acordo que fizemos para que a emissora já nasça dando as cartas. Pra terem uma ideia, a fundação da TV Tupi custou só 300 mil dólares. Vai ser fácil derrubar eles.

 

CONTINUA A REUNIÃO

– Tá tudo certo, chefe – intrometeu-se Armando Nogueira, que gostava mesmo era de futebol. – Imagino que serei nomeado diretor dos esportes, não é?

– Não – cortou seco o chefão. – Você será o diretor de jornalismo e terá sob seu comando a maior equipe de repórteres e apresentadores do país.

– Mas… tentou argumentar Armando.

– Nem meio mas, está decidido – cortou novamente o chefão. – E não reclama da sorte. Você comandará gente da pesada, a fina flor da direita, tipo Ali Kamel, Merval Pereira, Miriam Leitão, William Bonner…

– Peraí, chefe! – apavorou-se Armando. – Merval tem 15 anos, Miriam tem 12, Ali tem 4. Pode ser que eu nem esteja vivo quando se tornarem profissionais da direita. Veja ali o Bonninho, ainda de babador e todo melecado com o pirulito.

– De groselha – disse a babá sorridente. – Uma delícia.

– Pense no futuro, Armando, pense no futuro – respondeu o chefão, com a frieza que o caracterizava. As coisas mudam no futuro. – Aliás, tudo está no futuro.

– Mas a TV Globo não vai começar logo? Não temos muito trabalho pela frente? – argumentou Armando. – O que vou fazer com o Bonninho e seu pirulito?

 

SEGUE EM FRENTE A REUNIÃO

O chefão sorriu sarcástico, recostou-se na poltrona e prosseguiu:

– Devagar com o andor, meu filho, que o santo é de barro – ironizou ele, que odiava expressões populares. – Voltando ao princípio, o negócio é o seguinte. Meu jornal apoiou o golpe (que chamaremos de revolução), e o general-ditador (presidente para o público) está muito feliz. Apoiamos no início e continuaremos apoiando. Os generais golpistas estão adorando a ideia da televisão, que será a mais importante do país e fará a cabeça de 90% da população. Durante 30, 40, 50 anos, todos pensarão o que mandarmos pensar. Dominaremos um rebanho enorme, facílimo de controlar.

José Bonifácio Sobrinho, o Boni, decidiu se manifestar:

– De acordo, chefe. Eu e o Waltinho vamos acabar com a esquerda no país.

Walter Clark, o Waltinho citado, não deixou por menos:

– Na prática, vamos promover um autêntico genocídio – disse ele. – Conhecem o termo duplipensar, de George Orwell? Com a nossa programação, faremos as pessoas pensarem o sim e o não simultaneamente, a frente e verso, o a favor e o contra.

O chefão não gostou:

– Não me venha com tiradas intelectuais. Somos de direita, apoiamos o golpe e não sairemos da linha. O que você quer dizer com genocídio?

 

FUTUROLOGIA GLOBAL

– Muito simples – apressou-se a explicar Waltinho, admirado pelos amigos pela viva inteligência e raro poder de persuasão. – Criaremos faixas diferenciadas de programação, pra crianças, jovens e adultos. Todas levando ao que nos interessa, claro.

– Dá pra explicar melhor? – perguntou um tanto confuso o chefão.

– Claro, chefe – respondeu Waltinho. – Basta citar a Xuxinha, aqui presente, que se tornará no futuro um fenômeno televisivo e conquistará a criançada latino-americana, pra não falar na criançada brasileira. Todo dia pela manhã, durante horas, ela divertirá a molecada com babaquices sorridentes e vazias. De tarde, sessões de entretenimento, incluindo filmes B, C e D de Hollywood, comprados a preço de banana, meterão mais babaquice na cabeça de adolescentes, donas de casa, vagabundos e desempregados. De noite, folhetins piegas e o Jornal Nacional, que o Bonninho comandará como ditador durante décadas, completarão o genocídio pela lavagem cerebral em massa.

– Ainda não entendi – disse o chefão, fechando a cara e sentindo-se burro.

– Serei mais claro, chefe – disse Waltinho abrindo um bloco de notas. – O Brasil ocupa, neste ano de 1965, a centésima sétima posição entre os países com maior taxa de mortalidade infantil. Horrível, não é? Mas se convencermos crianças, jovens e adultos de que tudo está bem, maravilhoso e fantástico, ninguém se importará com mortalidade infantil. Nem com mortalidade adulta. Nem com salários baixos. Nem com desemprego. Nem com subnutrição. Nem com miséria. Ninguém se importará com nada, enquanto os golpis…, desculpe, enquanto os generais farão o que quiserem lá em Brasília.

– Entendido e aprovado – sorriu feliz o chefão levantando-se, aproximando-se de Bonninho e tirando-lhe o pirulito da boca. – Podem começar a trabalhar.

Bonninho abriu o maior berreiro. A babá fez cara de desgosto.

– Excelente, chefe, que ato falho adorável o seu – disse Armando Nogueira, que gostava mesmo era de futebol. – Furtando doce de criança?

Envergonhado, Roberto Marinho enfiou o pirulito na boca de Bonninho, que parou de chorar e abriu o maior sorriso. A sessão estava encerrada.

4 Comentários

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  1. Passárgada
    Por tudo que aqui se tem dito sobre a nossa imprensa tradicional pode-se concluir que, sem o poder influenciador que ela se impõe , o nosso país certamente seria um mundo inigualável de paz , de prosperidade e de justiça social.

  2. Sebastião Salgado

    Muito bem !

    Há necessidade urgente urgentíssima, de se encontrar uma vacina para terminar com a “Peste dos Marinhos” , pior que a febre amarela, a chicungunha, a Dengue , e tantas doenças que estão voltando , graças aos golpes encabeçados por esta gente ordinária , que só vive aqui pq não pode viver em outro lugar, jamais !

     

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