Canto da insubmissão, por Bueno de Rivera

Enviado por Felipe A. P. L. Costa

Canto da insubmissão

Por Bueno de Rivera [1]

 

Eu, que sou pedra e montanha, sangue e oeste,

negro poço do tempo e da memória,

mãos sujas no labor do subsolo,

apenas vos ofereço o choro vivo

dos homens solitários.

 

Somos os filhos da noite mineral, os frutos

sem planície e sem sol, ignorados

trabalhadores das minas tenebrosas.

Marinheiros do abismo

sem estrela e âncoras.

Caras de carvão, flores da treva, lírios

de luto brotando num jardim de turfas.

 

Homens duros e amargos, oriundos

de solidões calcáreas, escondemos

nosso protesto na ironia indócil,

não cortante como lâmina, mas pungente

como anedota de loucos, confissões

de bêbedo, música de cego.

 

É estranho esse modo de ferir, pedindo

desculpas. Amigos, perdoai-nos,

amigos, crede em nós, os homens tristes!

Sob a face solene

há um coração sangrando

por nós, por vós.

 

Um grito de mãe na tempestade, um morto

não identificado, uma janela

na noite do hospital, um pé descalço,

a tecelã tossindo

sob a rosa de seda, ou uma bandeira

no enterro do operário, todo o drama

nos fere, nos afoga

em fundas cogitações e paralelos.

A angústia do povo acende o lume

de nossos poemas solidários.

 

No entanto, os amigos aconselham: “Ó ingênuos,

por que esse agitar de braços como flâmulas?

Na tarde do bar, entre os espelhos,

há poetas cantando a vida amena.

Alegrai também o vosso canto, erguei louvores

à farândula dos mitos!”

 

Impossível, embora

eu saiba que há magnólias sob a lua,

lotações de sereias, luminosas

vivendas na praia, entre piano e beijos,

autos deslizando, peixes lúcidos

no mar do tráfego,

e pernas oleosas, mãos em brinde

no espelho do champanhe, o baile, o sonho.

Impossível, pois sei também que existem

soluços e revoltas,

lírios no charco, luta de afogados

contra as marés, o monopólio e a morte.

E isso me comove. Mais que o fogo

isso me queima e me ilumina. Eu sofro

o mundo desigual, a vida em pânico!

 

Eu, que sou pedra e montanha, sangue e oeste,

negro poço do tempo e da memória,

só vos posso ditar este sombrio

canto, denso e amargo

oceano de enigmas, doloroso

rio subterrâneo.

*

Nota

[1] [Odorico] Bueno de Rivera [Filho] (1911-1982). O poema acima – extraído do blogue Poesia contra a guerra – foi publicado em livro em 1948.

Redação

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