Chegaram a algum lugar – mas que diabo de lugar é esse?
por Sebastião Nunes
Foi um deus nos acuda.
Assim que o arcanjo Gabriel deu a partida na máquina do tempo, ouviu-se tremenda explosão, seguida de intermináveis sacudidelas, que jogavam as almas dos imortais-mortais-imortais de um lado para o outro, aos trambolhões.
– Caralho! – berrou São Pedro. – Esta máquina é maluca!
Exceto Gabriel e o santo guardião, os demais tinham desmaiado. Só acordaram com muita droga aplicada na veia e cachaça despejada goela abaixo.
Quando todos pareciam recuperados e com a típica palidez anímica, Gabriel abriu a porta e olhou para fora, recuando imediatamente e fechando a porta.
– Não acredito! Isto não pode ser verdade!
Era verdade sim, conforme constataram os ex-viventes e os celestiais quando a coragem voltou (ou a curiosidade foi mais forte) e um deles reabriu a porta.
OS DOIS MUNDOS PARALELOS
Pareciam duas fotos, uma sobre a outra. Numa delas, uma espécie de Avenida Paulista antiga, absurdamente vazia, com prédios desmoronando e carros despedaçados, espalhados aleatoriamente. Na outra, a mesma imagem absurdamente cheia de gente, mas com apenas meia dúzia de prédios quadrados, muito feios e sombrios, sem portas ou janelas, separados uns dos outros por fileiras de casebres miseráveis. As pessoas pareciam tristes e desamparadas. Amarelada e densa neblina cobria as paisagens.
– Estranho, muito estranho – disse Sérgio Sant’Anna. – Nenhuma das duas fotos parece a Avenida Paulista que eu conheci. Parecem mais caricaturas grotescas, sem nada de real. Vamos descer?
No que desceram, deram de cara com duas multidões de miseráveis, vindas dos dois lados da Avenida rumo ao centro da imagem. A primeira levantava bem alto um cartaz gigante com a expressão incompleta: IDEALIZAÇÃO DA… A segunda erguia gigantesco cartaz, que parecia completar o primeiro: HUMANIDADE FUTURA. Carregado nos ombros pelas duas multidões, um sujeito magérrimo em duplicata, de terno e gravata à moda antiga, parecia pouco à vontade.
– Eu conheço esses caras! – pestanejou Luís Gonzaga Vieira. – Ora vejam se não é o poeta Augusto dos Anjos em dose dupla. Mas ele não devia ter ficado lá em cima (ou lá embaixo, não sei mais), esperando diante do portão do Paraíso? Ele não é um dos imortais-mortais-imortais?
São Pedro coçou a barba antes de responder:
– Como em todo lugar, no hall diante do portão existem privilégios. E alguns dos privilegiados são artistas excepcionais, que transcendem os conceitos celestiais, dão nó nas regras e introduzem ruídos na Música das Esferas. Esse aí deve ser um dos tais.
LENDO O FUTURO TENEBROSO
Como se respondendo a um comando invisível, as duas metades da multidão passaram a declamar, alternadamente, uns versos atrozes, que se ouviam em altíssimo e retumbante cantochão:
Multidão de miseráveis da esquerda:
RUGIA NOS MEUS CENTROS CEREBRAIS
Multidão de miseráveis da direita:
A MULTIDÃO DOS SÉCULOS FUTUROS
Multidão de miseráveis da esquerda:
HOMENS QUE A HERANÇA DE ÍMPETOS IMPUROS
Multidão de miseráveis da direita:
TORNARA ETNICAMENTE IRRACIONAIS!
Multidão de miseráveis da esquerda:
NÃO SEI QUE LIVRO, EM LETRAS GARRAFAIS,
Multidão de miseráveis da direita:
MEUS OLHOS LIAM! NO HÚMUS DOS MONTUROS
Multidão de miseráveis da esquerda:
REALIZAVAM-SE OS PARTOS MAIS OBSCUROS
Multidão de miseráveis da direita:
DENTRE AS GENEALOGIAS ANIMAIS!
Multidão de miseráveis da esquerda:
COMO QUEM ESMIGALHA PROTOZOÁRIOS
Multidão de miseráveis da direita:
METI TODOS OS DEDOS MERCENÁRIOS
Multidão de miseráveis da esquerda:
NA CONSCIÊNCIA DAQUELA MULTIDÃO…
Multidão de miseráveis da direita:
E EM VEZ DE ACHAR A LUZ QUE OS CÉUS INFLAMA
Multidão de miseráveis da esquerda:
SOMENTE ACHEI MOLÉCULAS DE LAMA
Multidão de miseráveis da direita:
E A MOSCA ALEGRE DA PUTREFAÇÃO!
Ouviram-se aplausos frenéticos. E nossos amigos viram a seu lado, aplaudindo com o máximo de energia, os ilustres defuntos Franz Kafka e Jorge Luis Borges.
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– Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros… no junquilho…
Esta árvore, meu pai, possui minh’alma!…
1.a República. República Paulista. Trocamos enorme Elite Intelectual e Cultural pela ridicularização caricata de Povo com fruteira na cabeça. Nossa Transformação Cultural metamorfoseando cabeça em rabo. Alguns ainda tentam negar o abismo. Pobre país rico. Mas de muito fácil explicação.