Cicatriz, por Lúcio Verçoza

Cicatriz

Por Lúcio Verçoza

Para Rodrigo Espinoza

Era dia de lua cheia. A presença dela clareava ainda mais a tarde sem nuvens. O velho Freitas balançava na cadeira. Seu neto, sentado ao lado, olhava para a réstea de cerrado no canto do horizonte. Os dois estavam calados. Com a lua, testemunha, eram três em silêncio. Só a cadeira falava, com um som na ida e outro na volta do seu balanço.

Até aí tudo ia dentro do habitual. Porém, o rabo do cerrado, fitado pelo neto, começou a mudar de forma. O que já era ralo, foi rareando, numa espécie de dança introspectiva de folhas e galhos. O cerrado se encolhia, como se estivesse se recolhendo para dentro de si, ou como se chamasse o olhar para dentro dele. O curso dessa retração, foi rompido por uma leve expansão. Qual o quê, pura ilusão! Pois logo no segundo seguinte sucedeu uma abrupta murchada, o cerrado soltou o ar e, o que inicialmente era algo disforme, assumiu a forma de uma cicatriz. Tudo isso ocorreu no canto de olho do horizonte.

O neto, boquiaberto, não conseguia emitir, sequer, uma letra, quanto mais uma palavra. Ainda com as pupilas fixas na imagem da inusitada cicatriz, finalmente conseguiu formular algum pensamento – acho que esses traços são familiares. Não sabia de onde vinha tal impressão. Pensou nas curvas do Van Gogh, mas não houve tempo para investigar seu repertório de memórias, pois quando viu, seus olhos já estavam dentro da cicatriz.

Lá observou um menino, um meninote, que junto ao pai, cortava lenha para fazer carvão. Galho a galho, tronco a tronco, daquela terra ia saindo madeira preta. E o menino, um meninote, ia se sentido um homem. Até que, no ápice desse sentimento, a autoconfiança ultrapassou sua estatura de 1 metro e vinte oito centímetros. E foi justamente nesse instante que ele tropeçou. Não flutuou no ar, caiu com o tronco na terra e com a cabeça da brasa de carvão em seu ombro. Foi uma queimadura de graus incontáveis, como incontáveis eram os números de carvão que saíram daquela propriedade.

Na hora não doeu, só fez arder. Não doeu nem quando seu pai, vendo a gravidade subindo em bolhas de pele, jogou água. Só foi ardor. No caminho para casa, deitado na carroça, no mesmo canto em que transportavam o carvão, olhava para o céu e contava os tons de azul. Mesmo que fosse um céu de único tom, céu sem estrelas; era uma forma de resistir valentemente. Um, dois, três, o canto do sabiá, quatro, e era só um ardor…

Chegaram em casa mais cedo do que era de costume, as cigarras ainda estavam caladas, quando apontaram na porteira. A mãe, que naquele horário nem passara o café, ao ouvir o relincho do Verdelinho, sabia que tinha algo errado. Correu para o alpendre com um aperto no peito. Avistar o filho deitado, com o tronco nas tábuas da carroça, foi desesperador. – O que aconteceu com meu menino? – Nada mãe, já sou homem. Quando viu a queimadura, não deu tempo nem de piscar o olho. Já estava no quintal pegando folhas de sambacaitá. Com o menino no colo, aplicou na ferida a planta dissolvida em água. E até ali, ele ainda não sentia dor. Foi somente no instante em que a lágrima salgada da sua mãe pingou em sua pele, que ele sentiu a dor que não sabia. E com a bolha estourada e entreaberta, seus olhos eram um vão, que em vão, o desobedeciam.

E foi aí que a visão do neto voltou ao alpendre, e sua retina viu o vô desabotoar a blusa. E lhe mostrar, com os mesmos olhos umedecidos, que a cicatriz estava ali e que não era só sua. Ali estava um pouco do cerrado, e do que era por comida em alguns pratos. Que ali estava um pouco de sua bisavó, e do que era ver a dor e também tê-la. E o neto que já era um homem feito, doutor pela universidade, viu que ainda era um menino. E que quando tivesse um pequenino, ia falar da bisavó que não o viu. E do abraço lá na quina do alpendre, que teve a cadeira de balanço e a lua como testemunhas. E do velho Freitas que nesse dia, já velhinho, flutuou nos braços do neto. E de quando um olhou para cara do outro, e disseram tudo, sem falar nada.

Redação

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