por Sebastião Nunes
O destino dos grandes poetas, mais do que o de escritores e poetas menores, costuma ser regido por Momo, filha da noite e deusa da ironia e do sarcasmo. No caso de FP, a deusa caprichou na dose.
Astrólogo fascinado pela numerologia, Pessoa fez o próprio horóscopo, com base nos dados de seu nascimento: 15 horas e 20 minutos de 13 de junho de 1888. Só que ele próprio não tinha certeza dos minutos. Ainda assim, admitiu como verdade que morreria em 1937, como determinava o horóscopo.
Outro astrólogo português, Paulo Cardoso, refez os cálculos, alterando o horário do nascimento para 15 horas e 22 minutos, chegando à conclusão de que FP morreria no dia em que de fato morreu: 30 de novembro de 1935.
ANOS FATÍDICOS
Inúmeros dados relevantes, todos fundamentais para sua vida e obra, mostram que os anos terminados em cinco foram em algum aspecto determinantes.
A mãe se casou pela segunda vez em 1895 e, no mesmo ano, a família partiu para Durban, na África do Sul, onde o poeta se educou.
1905: regresso definitivo a Portugal.
1915: lançamento da revista “Orpheu”, divisor de águas em sua vida e no modernismo português.
1925: morte da mãe, seguida de agudo sentimento de abandono.
Assim, de 10 em 10 anos, graves acontecimentos marcaram-no, de modo que algo de muito sério deveria ocorrer em 1935. Mas não sua morte, prevista por ele próprio para 1937.
TENTATIVA FRACASSADA
FP esteve sempre inseguro quanto à organização e à publicação de sua obra. Mais do que insegurança, mostrava profunda indecisão, pois nenhuma das ordens que se propunha chegava a satisfazer. Dois episódios levaram-no a finalmente se decidir, pela pressão do tempo e pela dificuldade de ganhar a vida.
Em 1932, seus rendimentos mensais alcançavam, segundo o crítico Alfredo Margarido, apenas 300 escudos, “que mal chegavam para suprir-lhe as necessidades vitais”, incluída apreciável quantidade de bebida.
Como estivesse vago o cargo de conservador do Museu-Biblioteca de Cascais, decidiu o poeta candidatar-se. Quase completamente desconhecido, exceto nas rodinhas da vanguarda literária, e sem cartas de recomendação apropriadas, não obteve a indicação, voltando à vida medíocre de sempre.
CORRIDA CONTRA O TEMPO
Em 1934, o Secretariado de Propaganda Nacional, dirigido por António Ferro, antigo companheiro do “Orpheu”, instituiu o Prêmio Antero de Quental. Ferro e Ferreira Gomes, amigos do poeta, convenceram Pessoa a se inscrever.
O tempo era curto. No entanto, o livro “Mensagem” estava pronto desde setembro. Impresso em outubro, foi colocado à venda em primeiro de dezembro, dia em que Portugal comemora a libertação do domínio espanhol, ocorrida em 1640.
Havia outra dificuldade: o regulamento exigia que os livros inscritos tivessem um mínimo de 100 páginas. “Mensagem” contava apenas 44 poemas curtos. Para resolver o problema, Ferreira Gomes combinou com o impressor deixar em branco as páginas da esquerda, prática usual em livros de poesia magros.
SUCESSO RELATIVO
Até aí, tudo bem. O júri era presidido pelo poeta Mário Beirão, antigo companheiro dos tempos da Renascença Portuguesa, que se tornara salazarista ferrenho. Só que, na escolha do vencedor, chegou-se à conclusão de que o livro de Pessoa, hermético e profundo, não cumpria o principal requisito do concurso, de propaganda do Estado Novo e de exaltação do nacionalismo à moda de Salazar.
Resultado: o primeiro prêmio foi dado ao padre Vasco Reis, pelo livro “Romaria”, cabendo a “Mensagem” o prêmio de segunda categoria, destinado não a um livro, mas a um único poema.
António Ferro não era membro do júri, mas autoridade máxima não só do certame como do Secretariado. Para não ofender Mário Beirão ou o padre Vasco Reis nem desagradar o amigo Fernando, decidiu que a este caberia também a quantia de 5.000 escudos, igual à do primeiro prêmio.
VALORES ABSOLUTOS
Fernando Pessoa se mostrou satisfeito com o acordo. Tanto que chegou a publicar, no “Diário de Lisboa”, em janeiro do ano seguinte (1935), um artigo de louvor ao “poema adorável”. Nele, escreveu:
“O nosso catolicismo é (…) uma meiguice religiosa, preguiçosamente incerta do que em que realmente crê. Por isso, o nosso vero Deus Manifesto é, não o Deus uno e trino, ou qualquer das Pessoas da Trindade, mas um Cupido católico chamado Menino Jesus. (…) Quanto ao Diabo, nunca um português acreditou nele.”
Não se sabe se o “admirável artista”, como Pessoa se referiu ao padre, gostou da crítica. O certo é que, para quem ganhava 300 escudos por mês, 5.000 davam para viver quase um ano e meio, mergulhado em poemas, cigarros e bagaceira.
O problema foi que, tendo errado o próprio horóscopo, FP, depois de sofrer terríveis cólicas hepáticas, morreu às oito e meia da noite do dia 30 de novembro desse mesmo ano, de cirrose ou pancreatite aguda.
O destino lhe furtara os dois anos com que contava para organizar a obra.
Ilustração:
Colagem de “Fernando Pessoa em flagrante delito” sobre símbolos da Numerologia
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