Como funciona o controle social absoluto na Terra Unificada, por Sebastião Nunes

Segue o décimo primeiro capítulo de "2084": uma amostra de como é possível - e relativamente fácil - desmontar a cultura e substituí-la pelo que interessa ao Grande Irmão.

Como funciona o controle social absoluto na Terra Unificada

por Sebastião Nunes

No Departamento de Arquivos, os cubículos eram separados por divisórias estreitas e baixas, medindo 1,20 de altura. Wilson olhou por cima da divisória. Logo ao lado, trabalhava um sujeito pequeno, de barbicha escura e jeitão escrupuloso, Ramiro, que estava examinando outro periódico, chamado Estadão, dobrado sobre os joelhos. Com o Globo, o Estadão era um dos dois únicos jornalões sobreviventes da chamada Grande Mídia, ambos totalmente alinhados com o Grande Irmão e as diretrizes do Partido Interno. A boca de Ramiro estava bem perto do falaescreve. Parecia estar transmitindo um segredo para a macrotela. Ergueu os olhos e seus óculos lançaram um lampejo hostil na direção de Wilson.

Wilson mal conhecia Ramiro e apenas vagamente sabia qual era seu trabalho. Os camaradas do Departamento não falavam de boa vontade o que faziam. Na grande sala, ampla e sem janelas, com sua fileira dupla de cubículos, o incessante rumor de papel e o murmúrio das vozes no falaescreve, havia pelo menos uma centena de pessoas a quem Wilson nem de nome conhecia, embora os visse indo e vindo apressados pelos corredores, ou gesticulando e gritando durante os Dois Minutos de Ódio.

Wilson sabia que a mulher loura, no cubículo do lado contrário, passava o tempo procurando e apagando dos jornais os nomes de pessoas que haviam sido vaporizadas e, por isso, se considerava que não haviam existido. O que não deixava de ter certa lógica, pois o próprio marido dela havia sido vaporizado.

Alguns cubículos à frente, um indivíduo paradão e sonhador chamado Severino, com orelhas peludas e um talento surpreendente para fazer versos rimados, se ocupava de produzir “versões definitivas” de canções que se tornaram ofensivas do ponto de vista ideológico, mas que por algum motivo deviam ser conservadas no repertório.

TAREFAS E DIVISÃO DE TAREFAS

Aquela sala, com cerca de 500 camaradas do Partido Exterior, era apenas uma subseção, uma célula, para simplificar, na enorme complexidade do Departamento de Arquivos. Em cima e embaixo, nos inumeráveis pisos superiores e inferiores, havia enxames de trabalhadores dedicados a uma inimaginável quantidade de tarefas. Havia gigantescas oficinas de impressão, gravação e reprodução, além de complexos sistemas de adulteração de fotografias e assinaturas reais ou digitais, e todo tipo de documento. Havia a seção de teleprogramação com engenheiros, produtores e equipes de atores e maquiadores, estes escolhidos pela habilidade em imitar vozes, simular rostos e, até, mimetizar pessoas. Havia exércitos de camaradas cujo trabalho consistia simplesmente em elaborar listas de produtos que era preciso revisar. Havia ainda a imensidade de depósitos nos quais se armazenavam os documentos corrigidos e os galpões onde se destruíam os exemplares originais. Além disso, em algum lugar, de maneira quase anônima, estavam os cérebros que coordenavam todo o trabalho e rascunhavam a política que tornava necessário que se preservasse um fragmento do passado, se falsificasse um segundo fragmento e se apagasse um terceiro. De modo que nada se criava, nada era permanente, e tudo era passível de revisão a qualquer momento.

Em resumo, o Departamento de Arquivos não era mais do que uma ramificação do Ministério da Verdade, cuja função principal não consistia apenas em reconstruir o passado, mas também em produzir cultura nova: periódicos, filmes, livros técnicos, programas variados para exibição na macrotela (quando e se fosse permitido), obras de teatro e música, além de novelas sentimentais – e todo tipo de informação, instrução e entretenimento imaginável: de jogos a slogans, de canções românticas a tratados de biologia, de cartilhas escolares a dicionários de Novilíngua.

De modo geral, ao Miniver cabia não apenas suprir as necessidades intelectuais dos camaradas do Partido Exterior, mas também refazer essas operações, simplificadas, para entendimento dos proles. Havia, assim, outra série de departamentos dedicados à literatura, à música, ao teatro, aos jogos e demais produtos destinados aos proles. Neles se produzia um jornalismo-lixo, tipo tabloide, que continha somente notícias esportivas, entrevistas com camaradas famosas (pois existiam, sim, camaradas famosas, falsas ou verdadeiras, nunca se sabia), horóscopo, novelas sentimentais baratas e de poucas páginas, música sertaneja, pagodes e funks compostos de forma totalmente mecânica em uma espécie de aparelho especial chamado neoversificador. Havia, inclusive, toda uma subseção – cujo nome em Novilíngua era “Secpornô” –, encarregada de produzir filmes, jogos e documentários pornográficos para crianças, adolescentes e adultos, do nível mais escroto que se possa imaginar, que eram enviados em pacotes fechados e aos quais nenhum membro do Partido, que não trabalhasse na seção, tinha acesso.

Assim, o controle social era completo, do Partido Exterior aos proles. Toda a informação disponível, além da que chegava filtrada pela macrotela e pelo minitela, era produzida e distribuída pelo Ministério da Verdade, depois de corrigida pelo Partido Interior, ou alguma comissão interna encarregada desse trabalho. O que recebiam os proles de informação, cultura, educação e entretenimento, era apenas o que desejavam que recebessem os altos escalões do Partido Interior e o Grande Irmão.

De modo que  a imensa maioria dos habitantes da Terra Unificada não passava de um gigantesco rebanho de mamíferos bípedes amestrados.

Sebastiao Nunes

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  1. Com relação à imagem dos bustos apresentados no título dessa matéria, nos vem à memória a história de um comandante majoritário de uma grande e sólida instituição financeira, que resolveu comemorar o aniversário de 60 anos da empresa e encomendou à uma fundição, 1000 estatuetas de bronze escurecido (negro) do busto do fundador, seu pai.
    Depois de um mês a encomenda estava pronta, e sendo transportada em um pequeno caminhão baú para um dos endereços da instituição. No meio do trajeto, a porta traseira do baú abriu com o peso das estatuetas que começaram a caírem no meio da rua deixando um rastro de bustos. O ajudante do motorista, ao olhar pelo retrovisor percebeu o que estava acontecendo e começou a gritar: Para para para Zé!!! Para que os neguinho estão tudo caindo na rua!!!!

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