Da série Biografias Requentadas: Lampião, por Sebastião Nunes

Por Sebastião Nunes

Maria Bonita 1 expulsou da cozinha, com vassouradas furiosas, um bando de galinhas que teimava em catar migalhas no chão de terra batida:

            – Plaft! Schlapt! Plaft! Schlapt!

            Irritadas, as galinhas bateram sonoras asas e fugiram em carreira desabalada para o sol a pino:

            – Cococoricoricoricocococoooooooó!

            Um cachorro velho, polvilhado de bernes e pulgas, que lambia distraído feridas velhas e novas, assustou-se com a gritaria e ergueu-se de um pulo:

            – Au! Au! Au! Au! Aughrrrraauuugh!

            Languidamente adormecido debaixo de frondosa mangueira, com as patas cruzadas diante do focinho, disparou um gato velozmente para os ramos mais altos da árvore, e de lá queixou-se amargamente:

            – Miauuu… Miauuuuu… Miaurauuuraarauuu…

            Alguns patos, que se banhavam em pequeno lago para refrescar as penas encardidas, embora a pouca água estivesse tão quente quanto a poeira e os vermes, continuaram no bem-bom, pouco se lixando para o vozerio de parentes e vizinhos:

            – Shlepcheeeé! Shlaapchaaaá! Shloopchoooó…

            A porteira rangeu – heieieieim, heeeeiieeim, heiieieieim… – e pelo espaço entreaberto passou um homem sujo, magro, de ar simpático, simplório e finório, cujo cinturão exibia, de um lado, pesado revólver de cano longo; do outro, comprida peixeira enferrujada por infinitos labores; entre ambos, de cabeça para baixo, dezenas de cartuchos de calibre grosso. Na cabeça, brilhavam luas, sóis e estrelas no chapelão ensebado. Debaixo do bigode fino e acima da barbicha rala, um desses ambíguos sorrisos tímidos e arrogantes e cruéis e expectantes e lascivos e mórbidos e generosos e assustadores e amorosos. Nas mãos, enorme ramo dessas flores que brotam, contra tudo e contra todos, na beira das estradas e no coração das pedras.

            – Lampião, meu amorzinho! 2

            Na porta da cozinha sorria uma feliz Maria, enxugando as mãos avermelhadas no avental de chita tão vermelha quanto os lábios que sorriam e que Lampião estava louco para mordiscar, depois de tantos dias degolando e esfolando 3.

 

**********

 

            1. Meu Deus, como é bonita! Sinto-me capaz de fazer um escândalo, pensava Rubião, à noite, ao canto de uma janela, de costas para fora, olhando para Sofia, que olhava para ele.

            Cantava uma senhora. Os três maridos de fora, que ali estavam de visita, interromperam o voltarete, em atenção à senhora, e vieram à sala, por alguns instantes: a cantora era mulher de um deles. Palha, que a acompanhava ao piano, não via a contemplação mútua da esposa e do capitalista. Não sei se todas as outras pessoas estavam no mesmo caso. Uma delas, sim, essa sei que os via: Dona Tonica, a filha do major.

            Meu Deus, como é bonita! Sinto-me capaz de fazer um escândalo, continuava a pensar o Rubião, encostado à janela, de costas para fora, os olhos esquecidos na bela dama, que olhava para ele. (ASSIS, Machado de. Quincas Borba, in Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 4 vols., 1962)

 

            2. No fundo, a diferença de uma época para outra se aproxima da diferença entre dois quadros ou duas sinfonias: é de natureza estética. O verdadeiro objeto da História reside na plena consciência do halo que particulariza um momento no tempo, como o estilo de um pintor caracteriza o conjunto de sua obra. O desconhecimento do caráter estético da História provocou, entre os historiadores, uma falsificação completa do tempo que eles se propuseram evocar e explicar. (ARIÈS, Philippe. Le Temps de l’Histoire. Paris: Éditions du Seuil, 1986)

 

            3. Os oficiais, antes de saírem, recebiam do Estado uma ajuda de custo, destinada a cobrir gastos iniciais com os recrutamentos. Os salários sofriam anos de atraso. Os militares talvez tenham sofrido, além dessa dificuldade, o primeiro achatamento salarial da história do Brasil – um soldado que, em 1755, ganhava 4$800 reis por mês, passou para 2$400 em 1764, e 1$800 em 1766.

            Sem receber seus vencimentos, endividavam-se com os comerciantes. Uma eventual baixa significaria, portanto, ser preso por dívidas, e os soldados permaneciam, assim, atados ao exército. No dia do pagamento, o Estado descontava as fardas, as armas, as munições, até o transporte de alimentos, bagatelas e coisas semelhantes. As famílias permaneciam abandonadas à sua sorte. Para o Estado, um soldado morto era uma dívida a menos.

            Com a justificativa da falta de pagamento, as tropas dedicavam-se à pilhagem. Os oficiais organizavam partidas para roubar gado vacum e cavalar dos espanhóis. Os soldados degolavam os feridos para retirar suas botas, suas calças e as armas, as quais eram vendidas aos oficiais. Quando a Coroa tentou regulamentar as presas, ficando com a maior parte dos despojos, entrou em atrito com esses bandos armados. (PEREGALLI, Enrique. Recrutamento Militar no Brasil Colonial. Campinas: Editora da UNICAMP, 1986)

Sebastiao Nunes

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