Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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DOMINÓ DE BOTEQUIM, por Rui Daher

Aldo Fabrizi

Por Rui Daher

Anunciada aos demais a feijoada beneficente deste domingo, na Paróquia São José do Belém, em que apresentaríamos Fernando, o novo capitão da reabertura do Botequim do Dominó, para o Serafim, e Dominó de Botequim, preferência do Manoel Vieira, a preocupação foi do como ao quanto, terminando no quando.

Beneficente supõe doação, contribuição, explicou Virgílio, o funcionário do “Estadão”:

– Tenho disposição e sempre apoiei iniciativas beneficentes. Já colaborei de várias formas. Um dia, me fantasiei de veado, o bicho, claro, para ajudar crianças de Parelheiros a irem assistir ao “Bambi” num cinema da rua Conselheiro Crispiniano, que não me lembro o nome.

– Cine Marrocos, disse eu, o mais velho.

– Foi! O problema é que hoje tem uma crise por aqui e ninguém está vendendo nada, quanto mais doando. Será que o Padre Luís, aqui presente, renovado pelas ideias de Francisco, poderia aceitar beneficência em suaves prestações?

Não sei o porquê, mas logo lembrei-me de dois atores e personagens padres do cinema. Na aparência, nada a ver com o nosso Luís, alto, esguio, de fala mansa e gestos contidos.

O gordo italiano Aldo Fabrizi, de “Roma, Cidade Aberta”, do Rossellini. Realizado em 1945, o padre se esforçava para disfarçar o muro em que se equilibrava o Vaticano, e ajudava bravos comunistas contra os resquícios do fascismo. Devo ter assistido ao filme na década de 1960, auge de minha vibração esquerdista.

Outro, o francês Fernandel, morto com apenas 41 anos, foi em vários filmes o padre italiano Don Camillo, que vivia um misto de litígio e colaboração com o prefeito comunista Peppone, papel de Gino Cervi.

Bons tempos. Disputavam quem fazia mais o bem para a população de pequeno povoado, o PCI ou a Igreja Católica.

Políticos e padres são bons assim. Como Peppone, Camillo, Luís e um certo Frei Patrício, hoje no Egito, e a mim apresentado por grande amiga.

– Virgílio, meu caro, quando a paróquia fala em beneficente pensa não apenas em valores materiais, mas também em intenções, e estas não podem vir em prestações. Quem nada puder doar, contribuirá com sua presença, sua fé, o aperto de mão no amigo ao lado. Cristo foi pobre, aceitará uma simples oração, mesmo que em forma de samba.

Virgínia, a doutoranda em Ciências Políticas, barrigão à mostra, acabara de chegar com o cordelista Nonato João, e arrepiou:

– Padre Luís, com todo o respeito, e os ateus que sei de alguns aqui, inclusive o novo projetista, como ficam?

– Com a esperança de que um dia recebam a Luz Divina do saber. Vai me dizer que quando Nonato afaga o seu ventre você não pede a Deus que tudo dê certo e o nenê venha com a saúde dos que nascem no Xingu?

Naquele momento, a única pessoa que lembrei olhar foi para Dona Zilá, mãe do skatista Magrão. Tinha certeza de que chorava. O contrário da devota Alzira, mulher do Osorinho, que azarou em altos brados:

– Quem não acredita em Deus que arque com as consequências. Vai saber se o filho dela não virá em formato de viola mato-grossense?

Osorio perdeu a paciência:

– Alzira, já, de joelhos! Peça perdão a todos ou se retire.

– Perdão, padre, mas só ao senhor pelo Senhor que me ilumina.

E veio o domingo, setembro 27. Indeciso entre o cinza completo e buracos de azul. Temperatura boa para feijoada. Fora os apelos paroquiais de praxe, uma grande faixa anunciava o futuro Dominó.

Aconselhados por Manoel Vieira, Netinho e o próprio Serafim, evitamos a palavra botequim. Eventos com viés religioso trazem indecisão entre os males feitos ao espírito e ao corpo. A referência poderia não ser bem-vinda. Alzira era exemplo certo.

O tamanho do público presente assustava. Tínhamos ali mais de 500 pessoas, sem que a contagem precisasse o costumeiro “segundo os organizadores … e a Polícia Militar”.

Todos se conheciam por frequentarem a paróquia. Do nosso grupo, não faltou ninguém. Serafim, Netinho, Prudêncio, Buqué, Virgínia, Nonato João, Professor Filgueiras, Osorinho, Virgílio, Dona Zilá, Magrão, e o Dr. Tetê, que trouxera de Piracicaba a turma da Botecaria Villinha.

Até o fugidio cão Benê cancelara uma palestra para algumas cadelinhas na Praça Buenos Aires.

Vendo o público, um alegre Dom Odilo Scherer, convidado especial, segredou aos clérigos: “Botem mais água no feijão”.

Foi quando chegou nossa vez. Padre Luís ao microfone explicou a campanha pelo Dominó de Botequim, e passou a palavra para o presidente da Federação, Manoel Vieira. Depois de breves palavras, exaltando o esporte e seu aspecto pacífico, indicou o novo curador de nossa grande mostra, o Doutor Fernando.

Imaginei-o, antes, declinando suas peripécias sertões afora pelo Brasil. Os causos de campesinos, plantadores, sertanejos, piadistas e pescadores. Campos, matas, florestas, alambiques e balcões. Nada.

– Companheiros e companheiras, anuncio oficialmente aberto o Botequim do Dominó. Sejam todos bem-vindos!

De todos os lugares, surgidos não sei de onde, pela fé do crucifixo cedido a leilão, da justiça dos pastéis de Zilá, do sensual rabo que Benê abanava, estavam lá Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Garoto, Cartola e Dona Zica, Nelson Cavaquinho, Mário e Oswald, Dorival, Tom, Vinícius, Torquato Neto, Tarso de Castro, Maysa, Pagu, Elizete, Baden, enfim todos, todos e muitos mais, que fizeram o céu do domingo virar sertão, mar, botequim e dominó, por um mágico, fantástico e realista Doutor Fernando

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

9 Comentários

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  1. Ah, Rui Daher

    Por fim, uma boa notícia.

    “A freguesia do Botequim, penhorada, agradece”.

    E viva os ateus de bom coração. E os fervorosos de bom coração também.

  2. O Botequim é a sua alma

    O Botequim é a sua alma

    No período de 2001 a 2010, com um intervalo entre 2004 e 2007, quando atendi aos chamados amazônicos, o Deck Sousas foi o primeiro lar de uma turma espetacular que se reunia em torno da mítica e lendária mesa 1. Única mesa redonda do boteco, por um curto período de tempo era chamada pernosticamente “da diretoria”, mas como era o número 1 na comanda do bar, assim ficou sendo. O Deck fica no bucólico distrito de Sousas, a exatos 13 Km da minha casa de então, e por uma dessas incoerências do destino, em total desacordo com o viés idelológico dos frequentadores, exatamente na margem direita do outrora garboso rio Atibaia. Na estiagem, talvez merecesse ser rebatizado de Córrego Atibaia.

    Frequentávamos diariamente, de terça a domingo, guardávamos a segunda-feira. Mas o melhores dias eram o sábado e domingo. Acordava sábado de manhã e antes mesmo de tomar café ligava para o gerente Gil, lá pelas 10p0: “Gil, já abriu?”. To abrindo, Fernando. “Não esqueça, reserve a 1, to chegando daqui a pouco”. Tranquilizava o valoroso Gil: “Já coloquei um balde com vinho na mesa para marcar o território, tranquilo”.

    Antes do meio-dia do sábado, fazia a ocupação da Mesa Um, e jogava em cima da mesa a Folha de São Paulo (perdão, Rui, mas a edição de domingo trazia a coluna de música do Nassif), a Carta Capital e a Caros Amigos do mês e abria os trabalhos. A partir daí, as pessoas iam chegando e se revezando, de modo que a Mesa Um estava sempre cheia. Das 11 da manhã quando chegava, até bem depois da meia-noite, quando infelizmente o Deck Sousas fechava, passavam dezenas de pessoas pela antológica Mesa Um, acabou virando lenda.

    Um bar sem música não existe, é apenas um local que vende cachaça e cerveja. Havia música ao vivo a partir de quarta-feira, e no sábado começava às 13 horas. Pasmem, por muitos anos marcaram ponto lá a a dupla infernal de anderson alves (clarineta) e o Marcelinho Faleiros no violão, que quando “mandava o Lima”, era chamado de Marcelinho Falheiros. Música instrumental de ouvir de joelhos, ambos egressos da Faculdade de Música da Unicamp. O que tocavam nas tardes de sábado um violão e um clarinete? Samba…e choro. Terminavam 18 horas. Por volta das 20p0, chegavam os outros músicos, com início marcado para as 21 horas e tocar até fechar. Quando eram amigos da casa, e a maioria era, esticavam até às 2 horas. E todos os músicos passavam pela Mesa Um para um dedo de prosa, já conheciam a fama. Vou cometer injustiças esquecendo nomes preciosos, mas por lá passavam sempre o grande Brandini, Pezão, Taís e Henrique (irmãos), Doca Furtado, Tatiana Rocha, Fernando Siqueira, o grupo Zabalê, Ricardo Matsuda, e uma infinidade mais. O dono do Deck era o músico Elder, integrante do grupo Bons Tempos, garantia de que lá não tocavam amadores, curiosos. Podia-se dizer com segurança que uma das melhores músicas de Campinas acontecia no Deck Sousas.

    Naquelas tardes modorrentas de sábado (domingo era mais agitado), frequentemente nos dávamos o direito de elocubraçõexs filosóficas, quando eu contava com a colaboração dos amigos do peito Zé Preto e Cidão. Uma tarde, passavamos a elocubrar porque determinados bares davam certo, como aquele, que tínhamos prazer de estar, mesmo sendo precário em alguns aspectos, e a atração que despertava. Começamos a contar os amigos que passavam pela lendária Mesa Um , paramos de contar quando chegou em 50. De onde vinha isso? Qual a explicação?

    “Vem da alma do botequim”, concluímos em pleno acordo. “Um bar que não tenha uma alma não é um bar”. Começou o brainstorm etílico: “Não adianta um bar muito bem montado, perfeito, com banheiros asssépticos, decoração com grife se o dono é um chato, os garçons são antipáticos e os clientes são um bando de malas sem alça”. Conclusão unânime. O Deck Sousas, sob o comando do Elder, era um sucesso porque exatamente o oposto. Éramos uma comunidade, todos se conheciam, nunca presenciei em mais de 10 anos uma única cena ou situação que provocasse desconforto, contrariedade, constrangimento. Bebíamos o dia inteiro e saíamos inteiros, depois de 12/14 horas dentro do boteco. Por isso, repito, não era nosso segundo lar, mas o primeiro. O que motivava um dos maiores oftalmologistas do país ligar no domingo pedindo para reservar uma mesa para ele e suas 5 mulheres (mulher e quatro filhas, cada uma mais linda do que a outra, que os garçons conheciam pelo nome?) Resposta: a alma do bar. O ambiente sadio, a boa música, a descontração, o clima fraterno, amigo, todos se conheciam. Enfim, a alma.

    No início deste mês estive em Campinas para visitas médicas, revisão dos 60 mil Km. Encontro um advogado amigo daqueles tempos. Pergunto do Deck. Tristeza. Trocou de mão 3 vezes, os garçons foram embora, sobrou o Dirlei. Acabou, diz ele, perdeu a alma. Ainda assim, marcamos um Revival para o fim de outubro no mesmo Deck, no retorno das minhas consultas. Ele ficou de chamar a turma. Tempus Fugit.

    O Dominó de Botequim, indiscutivelmente, tem alma. Longa vida ao Dominó de Botequim.

    PS.: Tantos anos ao lado de tantas pessoas, proporcionaram cenas memoráveis, algumas publicáveis, a maioria impublicáveis. É a vida.

     

    1. Fernando,

      quando percebi o jeito que íamos com a reabertura, logo me lembrei de você. Perderíamos a alma que circulava no Dominó, muito próxima do que não conheci, mas reconheço em vários Deck Sousas, de “cenas memoráveis, algumas publicáveis, a maioria impublicáveis”. Se é a vida, não sei, agora tão qualquer-coisamente correta. Um saco, quase sempre, ainda mais se num boteco.

      Mas você já trouxe enormes tocs-tocs-tocs para a longa vida do Dominó de Botequim. A primeira: sem música, não dá. Talvez, tirar um pouco do aspecto padaria, influência do Serafim, na fase Terra Magazine, e acionar as pistoras etílicas e dos ovos rosados. Que tal ampliar as cores dos ovos? Alguns em arco-íris poderiam atrair públicos não tão mais minoritários assim.

      É a vida seguindo. Ah, a Botecaria Villinha é real e tem alma, em Piracicaba. E o Deck, creio, foi para Sousasm ali pertinho de Campinas, para poder preservar sua alma.

      Abração

  3. A volta………..

    Uma volta por cima…..obrigado Rui,  senti-me no céu……

    O Dominó deu a volta por cima. Precisou até botar agua no feijão. Mais de 500 pessoas independente de contagem dos organizadores ou da Policia Militar. Senti-me glorificado ao lado de tantos ídolos: Donga, João de Barros, Pixinguinha, Garoto, Cartola, Dona Zica, Nelson Cavaquinho, Mario  e Oswald de Andrade, Dorival, Tom, Vinicius, Torquato Neto, Tarso de Castro, Maysa, Pagu, Elizete, Baden, Elis, Adoniran e tantos outros.

    Viva o DOMINÓ DE BOTEQUIM.

     

    1. Manoel,

      obrigado. Ainda na última semana, passando por uma pequena cidade do estado de São Paulo, São Sebastião da Grama, quase em Minas, vi do carro várias pessoas sentadas em mesinhas, na praça da Matriz. Parei o carro e fui ver: era o Dominó. Confesso que fiquei emocionado. Todos riam, a paz era perfeita, a tarde quente pedia alguns copos de cerveja. Mesmo estando a trabalho, sentei-me lá por quase uma hora. Saí muito feliz e disposto a continuar com o Dominó de Botequim.  

  4. Rui!

    Vida longa ao Dominó de Botequim!  

    Afeita que sou aos afetos – por essa nem eu esperava, rs – e à gostosa rotina que nos leva sempre de volta às pessoas e locais que nos falam ao coração, estarei de volta no próximo domingo. Desejo apenas que neste Abrigo nunca falte a música a nos orquestrar os dias e o aprendizado da convivência.

    Toca o barco, Comandante!

    E ao Fernando, a quem desejo sucesso, seja, 2o. tenente, o guardião desta Alma.

  5. Odonir,


    Bons corações são os nossos e dos fregueses do Botequim. O meu, mesmo com três pontes, permite travessias: do Cambuci a Barbacena; até o Deck Sousas, no excelente comentário-crônica de nosso amigo Fernando; e ao maravilhoso Rio, da Anna.

    Até lá um beijo para as crianças de Barbacena.   

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