“Ele está de volta”: a sátira contagiante de Adolf Hitler

Um Hitler para os nossos dias

Há dez, 15 anos, que os alemães se riem de Hitler. Mas até agora ainda ninguém tinha tido a ideia de colocar esta hipótese tão aterradora como delirante num livro: e se afinal Hitler ainda estivesse vivo? Ele está de volta, de Timur Vermes, é ficção, claro. Mas algumas coisas parecem realidade.

Às vezes a realidade supera a ficção – foi assim que Timur Vermes sentiu alguns acontecimentos depois da publicação do seu livro, Ele está de volta. O livro é sobre Adolf Hitler. Na verdade, quem fala connosco no livro é o próprio Hitler, na primeira pessoa. O antigo ditador nazi está vivo e acorda em Berlim. E embora de facto Hitler esteja morto algumas coisas que se passam no livro têm reflexo na realidade.

Para contar uma delas é preciso ir a uma das surpresas de Ele está de volta – quem não quiser saber pode avançar para o parágrafo seguinte. Na ficção, Hitler, que é visto como um comediante que imita Hitler, suscita algumas perguntas a que o próprio Timur Vermes se viu obrigado a responder na vida real depois de publicar o seu livro: o que quer dizer esta popularidade (o livro vendeu 300 mil exemplares apenas nos primeiros três meses)? E mais: o comediante Hitler acaba político (slogan: “Nem tudo foi assim tão mau”). Vermes confessa que achou pouco plausível que um comediante entrasse assim na política, mas era um final demasiado bom para lhe resistir. “Mas depois vieram as eleições italianas”, conta. “E o comediante Beppe Grillo foi a surpresa das eleições.”

O livro de Vermes (editado em Portugal pela Lua de Papel) resulta, sobretudo, de uma comédia de mal-entendidos. Ninguém suspeita, obviamente, que aquele Hitler é o verdadeiro Hitler, já que isso seria impossível. Elogiam-lhe a capacidade de improviso, por exemplo, depois de fazer um rasgado discurso incluindo uma acção no estrangeiro, que leva o seu interlocutor a perguntar: “Essa coisa da Polónia [estava preparada]? Ou vai-me dizer que foi de improviso?”. Resposta: “Claro que não. A coisa da Polónia já estava toda planeada desde Junho.” “Você nunca sai da personagem”, admira-se outra interlocutora. “É aquilo do De Niro? Method acting?”

O sucesso do pequeno sketch de Hitler num programa de um turco-alemão apanha todos de surpresa – menos o próprio, claro. No caso do livro de Vermes isso não aconteceu. “Não esperava nada, e acho engraçado”, diz Vermes. “Achei que o livro seria para um mercado limitado, não sei, umas 100 mil pessoas na Alemanha que iriam gostar deste tipo de humor. Não imaginei nada do que aconteceu, a começar por muitas pessoas terem achado que seria o presente de Natal perfeito, mas a verdade é que o livro entrou neste mercado de Natal.”

Proibido concordar?

Vermes teve a ideia de Ele está de volta na Turquia, quando viu numa loja O Segundo Livro de Hitler. “Não sabia nada desse segundo livro. Se havia um segundo, eu podia escrever o terceiro.” Leu os dois primeiros, e escreveu o seu livro baseando-se na maneira de se expressar de Hitler. Mas comenta que “o que é estranho é ninguém ter tido a ideia antes”. Ainda assim, a escala do sucesso de Ele está de volta deveria dar que pensar: “Se há um milhão de pessoas a comprar um livro, então não é apenas um livro de sucesso, é um livro mainstream. Hitler ligou-se ao mainstream de novo – sobre isto gostaria de ver uma discussão, mas não está a acontecer.” Há artigos nos jornais, mas com ângulos diferentes: podem os alemães rir-se de Hitler? Já se riem há dez, 15 anos. Aliás, no início Hitler é confundido justamente com um famoso imitador de Hitler. “A diferença deste é que parece não estar a brincar.”

Ele está de volta foi um dos últimos motivos para que se voltasse a escrever sobre Hitler, o fascínio que a sua personagem ainda provoca, e o que quer tudo isto dizer. Antes, tinha havido um debate sobre a possível publicação do seu manifesto, Mein Kampf – está a ser preparada uma edição especial comentada que será lançada no final de 2015, quando o estado-federado da Baviera deixar de ter os direitos exclusivos sobre a obra. Muitos temem ter outra vez este livro no top ten dos mais vendidos na Alemanha.

Vermes, que já leu Mein Kampf, não faz prognósticos: “O meu livro provou que não vale a pena antecipar nada”, diz a rir. Mas acrescenta que a ideia de uma edição comentada com grande pormenor não é a que lhe agrada mais. “Uma coisa mais simples, que explicasse em pontos facilmente acessíveis, não muito longos, para que todos pudessem ler e perceber, seria melhor.”

Há talvez duas coisas que causam desconforto neste livro de Timur Vermes. É que é muito divertido, e rimo-nos. Porque nos rimos? Depois, há alturas em que nos vemos a concordar com Hitler, na sua crítica da vida moderna, da Alemanha de hoje ou da democracia. Como é possível que tenhamos a mesma opinião?

“Nós somos os únicos a rir em todo o livro”, aponta Vermes, comentando a primeira razão do desconforto. “Todos os outros estão com uma postura séria. Porque vivem em dois mundos diferentes, e não sabem. O único que sabe que Hitler é o verdadeiro Hitler é o leitor. É o único que tem de lidar, de algum modo, com a reacção das pessoas: como é que não conseguem ver, como é que não notaram?”

Quanto às críticas, perfeitamente razoáveis, que passam pela cabeça do antigo ditador, Vermes não tem falsos pudores: “Hitler é uma boa pessoa para criticar a democracia, os políticos, etc, porque foi isso que ele fez. A melhor parte do Mein Kampf é quando ele critica a democracia. Uma pessoa pensa: “Já vi o q ele descreve, e também não gosto”. Claro que criticar só não chega. E ele não propõe nada de novo, é só polémico. As fraquezas dos políticos, da democracia – ele mostra-as. É uma técnica velha, mas por mostrar as falhas dos outros não se é melhor do que eles.” Para o autor, “é interessante ver até que ponto as pessoas concordam, e como é que este concordar as aproxima de Hitler”. É que este não é um Hitler diferente: “É o mesmo, não mudou nada, não aprendeu nada, não está a fazer nada de diferente, e de repente damos por nós a concordar com ele. É interessante porque muitas pessoas hoje em dia não imaginam como é que na altura foi possível eleger alguém como este Hitler.”

No livro há de resto alturas em que se vai contra a noção de que só alguns alemães foram apoiantes do regime hitleriano. Uma sondagem recente mostrava que a esmagadora maioria dos alemães – 94% – não acredita que os seus familiares tenham sido apoiantes dos nazis, o que é obviamente impossível.

“É preciso aceitar que tudo o que aconteceu não poderia ter acontecido sem pessoas que o fizessem”, diz Vermes. “E foram precisas muitas pessoas: para ir à guerra, para apoiarem de algum modo. Foi iso que fez uma vasta maioria. Não acredito que estas pessoas estivessem prontas para levar a cabo o Holocausto num primeiro momento, mas não perguntaram o que se passava.” No livro há uma altura em que Hitler elogia um jardineiro que está com uma engenhoca que faz voar as folhas no jardim. Parece-lhe uma acção idiota, mas logo se enche de respeito pelo homem, que está a cumprir ordens. “Ele fez algumas coisas boas e acertadas ao início”, nota Vermes, “e teve tanto sucesso que as pessoas deixaram de fazer perguntas”.

Hitler também se espanta com a sofisticação da propaganda dos jornais actuais: “O que eu gostava era da forma subtil como o jornal trabalhava”, diz. “Numa coluna humorística, entre anedotas sobre sogras e maridos traídos, fora casualmente inserida a seguinte pergunta: “Um português, um grego e um espanhol vão a um bordel. Quem é que paga? A Alemanha”.”

Com os judeus não se brinca

No livro de Vermes, o tema dos judeus entra relativamente tarde, e não é algo de que Hitler esteja sempre a falar. O escritor recusa a ideia de ter feito assim para evitar polémica: era, diz, que o próprio Hitler teria feito. “Tive alguma preocupação acerca do modo como abordar esse tema. Depois de ler os livros dele, a solução foi simples: ele não tem de falar sobre essas coisas porque as encara como algo necessário e feito. Por isso em algumas partes é só uma frase curta. É algo que ele não tem de explicar.”

Mas Vermes faz um esforço para que Hitler seja confrontado com o Holocausto. É quando é a sua jovem secretária (que ele nunca tinha percebido que era judia) diz que a avó, que perdeu toda a família no Holocausto, desaprova que ela esteja a trabalhar com aquele tipo de comediante. O final da cena é, mais uma vez, surpreendente.

Vermes acha, no fundo, que por mais tinta que o seu livro tenha feito correr, ou que acontecimentos recentes como os assassínios de uma célula neonazi (a única sobrevivente, Beate Zschäpe, está a ser julgada pela morte de dez pessoas) tenham provocado discussão, na Alemanha o debate é superficial. Um exemplo do livro, que mostra que é melhor o assunto ser arrumado rapidamente, é quando a produtora impõe um único limite ao futuro comediante: “Temos de concordar que com os judeus não se brinca”, adverte. “Tem toda a razão”, concorda Hitler, “quase aliviado”: “”Ali estava finalmente alguém”, pensa ele, “que sabia do que estava a falar”.”

Redação

4 Comentários

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  1. “o que é estranho é ninguém ter tido a idéia antes”

    Mais ou menos. Em 1971 Norman Spinrad publicou The Iron Dream, uma paródia de ficção científica especulativa onde Hitler nunca se tornou chanceler da Alemanha mas emigrou para os EUA e virou ilustrador e escritor de magazines (pulps)de ficção científica. Boa parte do livro apresenta uma novela de ficção científica escrita por Hitler, O Senhor da Suástica, comentada por um suposto crítico. O livro foi publicado no Brasil pela José Olympio em 1976 com o título O Sonho de Ferro e, até onde sei, nunca foi reeditado. No link a seguir existe um artigo interessante onde o autor analisa como Norman Spinrad usa a paródia para criticar idéias racistas (e nazistas) que apareciam com freqüência em publicações de ficção científica. http://w3.ufsm.br/literaturaeautoritarismo/revista/num12/art_10.php

  2. “o que é estranho é ninguém ter tido a idéia antes” (2)

    ha tb um filme cujo o nome eu nao me lembro dos anos 80 mostrando como seria se o nazisto tivesse triunfado, caguei pras vigulas

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