Lista de Livros: Contra-História do Liberalismo (Parte I) – Domenico Losurdo

Enviado por Doney

Lista de Livros: Contra-História do Liberalismo (Parte I) – Domenico Losurdo

Editora: Ideias & Letras

ISBN: 978-85-9823-975-5

Tradução: Giovanni Semeraro

Opinião: muito bom

Páginas: 400

O que é o liberalismo?

Um conjunto de perguntas constrangedoras

       As respostas usuais à pergunta que nos colocamos não deixam dúvidas: o liberalismo é a tradição de pensamento que situa no centro de suas preocupações a liberdade do indivíduo, desconsiderada ou pisoteada pelas filosofias organicistas de diferente orientação. Sendo assim, como situar John C. Calhoun? Este eminente estadista, vice-presidente dos Estados Unidos, na metade do século XIX, entoa um hino apaixonado à liberdade do indivíduo e, inspirando-se também em Locke, o defende energicamente contra qualquer imposição e contra toda a indevida interferência do poder do Estado. Mas, isso não é tudo. Juntamente com os “governos absolutos” e a “concentração do poder”, ele não cansa de criticar e condenar o fanatismo1 e o espírito de “cruzada”2, aos quais contrapõe o “compromisso” como princípio inspirador dos autênticos “governos constitucionais”3. Com igual eloquência, Calhoun defende o direito das minorias: não se trata apenas de garantir pelo sufrágio a alternância ao governo de diversos partidos: um poder excessivamente amplo é sempre inaceitável, mesmo limitado no tempo e amenizado pela promessa ou pela perspectiva da periódica inversão das funções na relação entre governantes e governados4. Não há dúvida, teríamos aqui todas as características do pensamento liberal mais maduro e sedutor; no entanto, por outro lado, desdenhando os meios-termos e a timidez ou o temor dos que se limitavam a aceitá-la como um “mal” necessário, Calhoun proclama que a escravidão, ao contrário, é um “bem positivo” ao qual a civilização nunca pode renunciar. Certamente, ele denuncia repetidamente a intolerância e o espírito de cruzada, não para colocar em discussão a subjugação dos negros ou a caça impiedosa aos escravos fugitivos, mas sempre e somente para estigmatizar os abolicionistas, estes “cegos fanáticos”5, que consideram ser “sua mais sagrada obrigação lançar mão de todos os recursos para destruir” a escravidão, uma forma de propriedade legítima e garantida pela Constituição6. Observe-se que das minorias defendidas com tanto vigor e tanta sabedoria jurídica não fazem parte os negros. Ao contrário, neste caso, a tolerância e o espírito de compromisso parecem se reverter: se o fanatismo conseguir realmente levar adiante o ensandecido projeto de abolição da escravidão, haveria “a extirpação de uma ou outra raça”7. E, considerando as concretas relações de força existentes nos Estados Unidos, não seria difícil imaginar qual das duas iria sucumbir: portanto, os negros poderiam sobreviver só continuando na condição de escravos. (…)

       Estamos diante de um dilema. Se à pergunta aqui formulada (Calhoun é ou não é liberal?) respondemos afirmativamente, não podemos mais sustentar a tradicional (e edificante) configuração do liberalismo como pensamento e vontade da liberdade. Se, ao contrário, respondemos negativamente, esbarramos diante de uma nova dificuldade e de uma nova pergunta, não menos problemática que a primeira: por que deveríamos continuar a atribuir a dignidade de pai do liberalismo a John Locke? Sim, Calhoun fala da escravidão dos negros como de um “bem positivo”, mas embora utilize uma linguagem tão altissonante, também o filósofo inglês, ao qual o autor estadunidense remete explicitamente, considera óbvia e natural a escravidão nas colônias e contribui pessoalmente para a formalização jurídica desse instituto na Carolina. Participa na redação da norma constitucional pela qual “todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os seus escravos negros seja qual for sua opinião e religião”15. Locke é “o último grande filósofo que procura justificar a escravidão absoluta e perpétua”16. O que não lhe impede de atacar com palavras de fogo a “escravidão” política que a monarquia absoluta queria impor (Dois tratados sobre governo, de agora em diante TT, I, 1); de maneira análoga em Calhoun a teorização da escravidão negra como “bem positivo” anda de mãos dadas com o alerta contra uma concentração dos poderes que corre o risco de transformar “os governados” em “escravos dos governantes”17. Afinal, o estadista americano é proprietário de escravos, mas também o filósofo inglês tem sólidos investimentos no tráfico dos negros18. (…)

       Vimos Mill tomar posição a favor da União e condenar os “autodenominados” liberais que gritam escandalizados diante da firmeza com que ela conduzia a guerra contra o Sul e controlava aqueles que, no próprio Norte, se inclinavam a aceitar a secessão escravista. Mas, veremos que, com o olhar voltado para as colônias, o liberal inglês justifica o “despotismo” do Ocidente sobre as “raças” ainda em “menoridade”, obrigadas a observar uma “obediência absoluta”, de modo que possam ser postas no caminho do progresso. É uma formulação que não iria desagradar Calhoun, que também legitima e celebra a escravidão quando ele também se refere ao atraso e à menoridade da população de origem africana: só na América, e graças aos cuidados paternais dos patrões brancos, a “raça negra” consegue avançar e passar da anterior “condição ínfima, degradada e selvagem” para a nova “condição relativamente civilizada”32. Para Mill, “qualquer meio” é licito para quem assume a tarefa de educar as “tribos selvagens”; a “escravidão” às vezes é uma passagem obrigatória para conduzi-las ao trabalho e torná-las úteis à civilização e ao progresso (infra, cap. VII, § 3). Mas esta é também a opinião de Calhoun, para o qual a escravidão é um meio inevitável para chegar a civilizar os negros. Claro, diferentemente da eterna escravidão à qual, conforme o teórico e político estadunidense, devem ser submetidos os negros, a ditadura pedagógica de que fala Mill está destinada a se dissolver em um futuro, embora remoto e problemático; o outro lado da medalha é que a esta condição de falta de liberdade está explicitamente subjugado não apenas um grupo étnico particular (o pequeno pedaço de África situado no coração dos Estados Unidos), mas também o conjunto dos povos progressivamente tomados pela expansão colonial e obrigados a sofrer o “despotismo” político e formas de trabalho servil ou semiservil. Exigir a “obediência absoluta”, por um período de tempo indeterminado, de grande parte da humanidade é compatível com a profissão de fé liberal ou é sinônimo de “autodenominado” liberalismo?”

1. Calhoun, 1992, p. 529. / 2. Calhoun, 1992, p. 528-31, 469. / 3. Calhoun, 1992, p. 30-31. / 4. Calhoun, 1992, p. 30-33. / 5. Calhoun, 1992, p. 474. / 6. Calhoun, 1992, p. 582. / 7. Calhoun, 1992, p. 529, 473. / 15. Locke, 1993c, p. 196 (art. CX). / 16. Davis, 1975, p. 45. / 17. Calhoun, 1992, p. 374. / 18. Cranston, 1959, p. 114-15; Thomas, 1977, p.199, 201. / 32. Calhoun, 1992, p. 473.

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        “Para os colonos rebeldes o governo de Londres, que impõe soberanamente a taxação a cidadãos ou súditos que inclusive não estão representados na Câmara dos Comuns, comporta-se como um patrão em relação aos escravos. Mas — objetam os outros — se for mesmo necessário falar de escravidão, por que não começar a colocar em discussão aquela que se manifesta de forma brutal e evidente exatamente onde com maior grandiloquência se aclama a liberdade? Já em 1764, Franklin, na época em Londres para defender a causa dos colonos, deve enfrentar os comentários sarcásticos dos seus interlocutores:

        “Vós americanos fazeis um grande alarido frente à menor violação imaginária das vossas liberdades consideradas tais; contudo, neste mundo não há um povo tão tirânico, tão inimigo da liberdade como é o vosso quando isto lhe convém”42.

       Os pretensos campeões da liberdade retratam como sendo sinônimo de despotismo e de escravidão uma imposição fiscal promulgada sem o seu explícito consenso, mas não têm escrúpulo para exercer o poder mais absoluto e mais arbitrário em detrimento dos seus escravos. É um paradoxo: “Como se explica que os gritos mais elevados de dor pela liberdade se elevam dos caçadores de negros?” — pergunta-se Samuel Johnson. De forma análoga, no outro lado do Atlântico ironizam os que procuram contrastar a secessão. Thomas Hutchinson, governador régio do Massachusetts, acusa os rebeldes de incoerência ou hipocrisia: negam radicalmente aos africanos aqueles direitos que proclamam como sendo “absolutamente inalienáveis”43. Em sintonia com este, um legalista americano (Jonathan Boucher) refugiado na Inglaterra, rememorando os acontecimentos que o haviam levado ao exílio, observa: “Os mais barulhentos advogados da liberdade eram os mais duros e mais selvagens patrões de escravos”44.

       Com tanta dureza não falam apenas as personalidades mais diretamente envolvidas na polêmica e na luta política. É, particularmente, mordaz a intervenção de John Millar, expoente de primeira linha do iluminismo escocês:

        “É singular que os mesmos indivíduos que falam com estilo refinado de liberdade política e que consideram como um dos direitos inalienáveis da humanidade o direito de impor as taxas não tenham escrúpulo em reduzir uma grande quantidade dos seus semelhantes a condições de serem privados não apenas da propriedade, mas também de quase todos os direitos. Provavelmente, a sorte nunca produziu uma situação maior do que esta para ridicularizar uma hipótese liberal ou mostrar quanto a conduta dos homens, no fundo, seja pouco dirigida por algum princípio filosófico”45.

       Millar é um discípulo de Adam Smith. O mestre, também, parece pensar da mesma forma. Quando declara que ao “governo livre”, controlado pelos proprietários de escravos, prefere o “governo despótico” capaz de cancelar a infâmia da escravidão, faz explícita referência à América. Posto em termos imediatamente políticos, o discurso do grande economista significa: o despotismo acusado na Coroa é preferível à liberdade reivindicada pelos proprietários de escravos e que beneficia apenas uma restrita classe de fazendeiros e patrões absolutos.”

42 Franklin, 1987, p. 646-47. / 43 Foner, 2000, p. 54. / 44 Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 297. / 45 Miller, 1986, p. 294 (= Millar, 1989, p. 239).

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        “A troca de acusações entre colonos rebeldes e ex-pátria-mãe, ou seja, entre os dois troncos do partido que até então havia se vangloriado de ser o partido da liberdade, é uma recíproca, impiedosa desmistificação. A Inglaterra que desponta da Revolução Gloriosa não se limita a evitar a discussão sobre o comércio dos negros; não, esta conhece agora um poderoso desenvolvimento59 e, por outro lado, um dos primeiros atos de política internacional da nova monarquia liberal consiste em arrancar da Espanha o monopólio do comércio dos escravos. No lado oposto, a revolução que eclode na outra margem do Atlântico em nome da liberdade comporta a consagração oficial do instituto da escravidão e a conquista e o exercício por longo tempo da hegemonia política por parte dos proprietários de escravos.

       Talvez, a intervenção mais articulada e mais sofrida no âmbito dessa polêmica veio de Josiah Tucker, “padre e tory, mas de resto uma boa pessoa e um valioso economista”60. Ele denuncia o papel proeminente da Inglaterra no comércio dos negros: “Nós, os orgulhosos Campeões da Liberdade e os declarados Advogados dos Direitos naturais da Humanidade, nos dedicamos a esse comércio desumano e criminoso mais profundamente do que alguma outra nação”. Mas, ainda mais hipócrita é o comportamento dos colonos rebeldes: “Os advogados do republicanismo e da suposta igualdade da humanidade deveriam ser os primeiros a sugerir algum humano sistema de abolição da pior de todas as escravidões”61. E, no entanto…”

59 Dunn, 1998, p. 463-65. / 60 É a definição de Marx (Marx, Engels, 1955-89, vol. XXII, p. 788). / 61 Tucker, 1993-96, vol. V, p. 21-22.

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        “O primeiro país a entrar no caminho do liberalismo é o País que revela um apego particularmente ferrenho ao instituto da escravidão. Pelo que se sabe, são os colonos de origem holandesa os que opõem a mais dura resistência às primeiras medidas abolicionistas, aquelas introduzidas no Norte dos Estados Unidos no decorrer e na esteira da revolução72. No tocante à Holanda propriamente dita, em 1791, os Estados gerais declaram formalmente que o comércio dos negros é essencial para o desenvolvimento da prosperidade e do comércio nas colônias. Sempre nesse mesmo período, diferenciando-se nitidamente da Inglaterra, a Holanda reconhece aos proprietários de escravos o direito de transportar e de depositar a sua mercadoria humana na pátria-mãe antes de voltar às colônias. Enfim, deve-se lembrar que a Holanda abole a escravidão nas suas colônias apenas em 1863, quando já a Confederação secessionista e escravista do Sul dos Estados Unidos caminha para a derrota73.”

72 Zilversmit, 1969, p. 165, 182. / 73 Drescher, 1999, p. 211, 218, 196.

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       “Mas para poder ser explicado, antes de mais nada, esse paradoxo deve ser exposto em toda a sua radicalização. A escravidão não é algo que permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desse sucesso: “O total da população escrava nas Américas somava aproximadamente 330.000 no ano de 1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico de mais de 6 milhões nos anos 50 do séc. XIX”1. O que contribui de forma decisiva para o crescimento desse instituto sinônimo de poder absoluto do homem sobre o homem é o mundo liberal. Na metade do séc. XVIII a Grã-Bretanha é a que possui o maior número de escravos (878.000). Não há nada de óbvio nesse dado. Embora o seu império seja de longe o mais extenso, a Espanha segue a muita distância. Quem ocupa o segundo lugar é o Portugal, que possui 700.000 escravos e que na verdade é uma espécie de semicolônia da Grã-Bretanha: boa parte do ouro extraído pelos escravos brasileiros acaba em Londres2. Portanto, não há dúvida de que quem se destaca nesse campo pela sua posição absolutamente eminente é o país que está ao mesmo tempo na frente do movimento liberal e que conquistou o seu primado no comércio e na posse dos escravos negros exatamente a partir da Revolução Gloriosa. Por outro lado, é o próprio Pitt, o jovem, quem em sua intervenção em abril de 1792 na Câmara dos Comuns sobre o tema da escravidão e do tráfico dos negros, reconhece que “nenhuma nação na Europa […] está tão profundamente mergulhada nessa culpa como a Grã Bretanha”3.”

1 Blackburn, 1997, p. 3. / 2 Blackburn, 1990, p. 5. / 3 Pitt, cit. in Thomas, 1997, p. 237.

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        “Durante a sua permanência em Londres, posto em dificuldade pelos seus interlocutores ingleses, que zombam da bandeira da liberdade agitada pelos colonos muitas vezes proprietários de escravos, Franklin reage evidenciando a persistência na Inglaterra de relações escravistas até no âmbito das forças armadas35. Refere-se particularmente à marinha. Vamos dar a palavra aos historiadores dos nossos dias: “Os marinheiros eram tão mal pagos, mal alimentados e maltratados, que era impossível recrutar tripulações com alistamento voluntário”. Muitos procuravam escapar desta espécie de sequestro de pessoa, mas a Grã-Bretanha os perseguia, sem hesitar em bloquear os navios americanos e capturar com a força das armas os desertores, inclusive os que haviam se tornado cidadãos estadunidenses. Era necessário recorrer a estes métodos drásticos para garantir o funcionamento de “mais de 700 navios de guerra com cerca de 150.000 homens”36. Eis então que também Calhoun denuncia, assim como Franklin, a “escravidão dos nossos marinheiros recrutados à força”37.

       Tratava-se de um motivo bastante divulgado na imprensa da época: na própria Inglaterra, os defensores da escravidão evidenciavam a analogia entre esse instituto e o recrutamento forçado da marinha: as duas práticas eram justificadas pelas circunstâncias excepcionais, ou pela necessidade de manter respectivamente as colônias e a marinha militar; por outro lado, o abolicionista Sharp condenava ambas as práticas38. Ao contrário, quem fazia distinções era William Wilberforce, acusado de hipocrisia pelos seus adversários39: o piedoso pastor comovia-se pelos escravos negros, mas era insensível aos sofrimentos não menos graves padecidos por aquela espécie de escravos brancos sobre os quais se fundavam a potência militar e a glória do Império britânico. O argumento não podia ser desprezado: os marinheiros eram “recrutados com a força pelas ruas de Londres e Liverpool”40, e na população não havia instituição mais odiada do que a press-gang, o recrutamento forçado41. A que tipo de condições eram depois submetidos pode ser facilmente deduzido pela comparação indireta que Locke traça entre o poder do “capitão de uma galé” e aquele do “senhor dos escravos” (TT, II, 2). A captura dos marinheiros nos bairros populares tinha pontos em comum com a captura dos negros na África.

       Por outro lado, não se tratava apenas da marinha. Uma estudiosa contemporânea sintetiza assim a condição desses “detentos em uniforme” (militar) que eram na realidade os soldados, chamados a defender em todos os cantos do mundo um Império em rápida expansão:

        “Eram embarcados e levados para terras longínquas muitas vezes em condições repugnantes e até contra a própria vontade. Podiam ser separados por décadas e às vezes para sempre das suas famílias, das suas mulheres e da sua cultura de origem. Se julgados desobedientes ou rebeldes, eram facilmente chicoteados. Se condenados por tentar a fuga podiam sofrer a pena capital; mas permanecendo no lugar e obedecendo às ordens era de qualquer modo provável que morressem de morte prematura”42.

       Por outro lado, é significativa a maneira pela qual Locke descreve a “prática corrente na disciplina militar”:

        “A preservação do exército e, com ele, do Estado no seu conjunto exige obediência absoluta das ordens de qualquer oficial superior, e desobedecer ou discutir mesmo as mais irracionais significa exatamente a morte. Contudo, observa-se que nem o sargento, que pode dar ordens a um soldado de marchar em direção à boca de um canhão ou de ficar em lugares onde a morte é quase certa, pode dar ordens para que aquele soldado venha a lhe dar algum dinheiro; nem o general, que pode condená-lo por deserção ou por não ter executado as ordens mais impossíveis, pode, com todo o seu absoluto poder de vida e de morte, dispor de um centavo de propriedade daquele soldado ou apropriar-se de uma migalha dos seus bens; isto, mesmo podendo exigir qualquer coisa e podendo enforcá-lo pela menor desobediência” (TT, II, 139).

       Dá particularmente o que pensar o “absoluto poder de vida e de morte” que o oficial exerce sobre os seus subordinados. É a expressão que Locke normalmente usa para definir a essência da escravidão. Trata-se de uma amplificação retórica? Já em Grotius encontramos a observação pela qual a condição do escravo não é muito diferente da condição do soldado (JBP, II, V, § 28). Mas, vamos nos concentrar sobre a Inglaterra liberal. A taxa de mortalidade dos soldados na viagem para a Índia é comparável à que atingia os escravos negros ao longo da sua deportação de um lado para o outro do Atlântico. Por outro lado, os soldados ingleses eram submetidos à punição tradicionalmente reservada aos escravos, isto é, ao chicote, e de maneira paradoxal continuaram a ser submetidos a isso mesmo quando essa disciplina havia sido abolida pelas tropas indianas43.

       No exército as relações de poder reproduzem as existentes na sociedade. A figura do soldado tende a coincidir com a do servo. No início do séc. XVIII Defoe observa: “Qualquer homem deveria desejar carregar o mosquete antes que morrer de fome. […] É a pobreza que torna os homens soldados, que leva as multidões nos exércitos”44. No final do século Townsend reafirma que “a indigência e a pobreza” podem empurrar “as classes inferiores do povo a enfrentar todos os horrores que os esperam no oceano tempestuoso ou sobre o campo de batalha”45. Quer dizer, nas palavras de Mandeville, “as durezas e o peso da guerra, tudo o que suporta pessoalmente, recaem sobre os que sustentam qualquer coisa”, isto é, sobre os servos habituados a trabalhar e a sofrer “de maneira semelhante aos escravos”46. Neste sentido, a figura do oficial tende a coincidir com a do senhor, e declarado e até ostentado é o desprezo que os oficiais-senhores têm em relação à tropa: nas palavras de um soldado simples, esta era “como a classe mais ínfima de animais, digna só de ser governada com o gato de sete rabos”47, ou seja, com o chicote capaz de infligir as punições mais sádicas, as que normalmente são reservadas aos escravos desobedientes.

       Podemos entender então as dificuldades do recrutamento militar: “as prisões são rastreadas para extrair delas malfeitores a serem recrutados”; o oficio do soldado — observa Defoe — é repassado particularmente a “homens provenientes da forca”48. E esses eram em grande número na época. De 1688 a 1820 os crimes que comportavam a pena de morte passam de 50 a 200-250, e trata-se quase sempre de crimes contra a propriedade: enquanto até 1803 a tentativa de homicídio é considerada crime leve, o furto de um shilling (quer dizer de um lenço) ou o corte abusivo de uma cerca ornamental podem levar à forca; e é possível ser entregue ao carrasco também com a idade de onze anos49. Em alguns casos, quem corre esse risco são crianças de idade inferior: em 1833 a pena capital é aplicada a um pequeno ladrão de nove anos, embora a sentença não tenha sido executada.”

35 Franklin, 1987, p. 652. / 36 Nevins, Commager, 1960, p. 170. / 37 Calhoun, 1992, p. 291. / 38 Davis, 1975, p. 376, 394. / 39 Rice, 1982, p. 151. / 40 Foner, 2000, p. 19. / 41 Thompson, 1988, p. 88. / 42 Colley, 2002, p. 314. / 43 Colley, 2002, p. 314-16. / 44 Defoe, 1982, p. 84-85. / 45 Townsend, 1971, p. 35. / 46 Mandeville, 1988, vol. 1, p. 119. / 47 Colley, 2002, p. 314. / 48 Defoe, 1982, p. 84. / 49 Thompson, 1989, p. 28-29; Arblaster, p. 172; Hughes, 1990, p. 58.

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       “O “grande rapto herodiano das crianças” pobres

       Entre a força de trabalho imposta chamada a assegurar o desenvolvimento das colônias havia também crianças de condição pobre, atraídas enganosamente com doces, raptadas e deportadas para o outro lado do Atlântico63. Diversamente, chegam à América juntamente com os seus pais, que muitas vezes são obrigados a vendê-los para nunca mais vê-los. Na Inglaterra, por outro lado, a situação das crianças de origem popular não era muito melhor. Marx denuncia “o grande rapto herodiano das crianças realizado pelo capital no início do sistema de fábrica nas casas dos pobres e dos orfanatos, por meio do qual chegou a incorporar um material humano totalmente desprovido de vontade”64. Indo além da utilização dos orfanatos como fonte de força de trabalho a baixo custo e mais ou menos coercitiva, é possível fazer aqui uma consideração de caráter mais geral. Se na teoria e na prática protoliberal do tempo o trabalhador assalariado é, como veremos daqui a pouco, o instrumentum vocale de que fala Burke ou a “máquina bípede” nas palavras de Sieyès, os seus filhos são em última análise res nullius, destinados à primeira ocasião a serem utilizados exatamente na sua qualidade de instrumentos e máquinas de trabalho. Locke declara explicitamente que as crianças pobres, a serem encaminhadas ao trabalho desde os três anos de vida, devem ser “retiradas das mãos dos pais”65. Embora distante mais de um século não é diferente a atitude de Bentham. Este convida a se inspirar nos “exemplos de fábricas (manufactures) onde crianças até os quatro anos de idade ganham alguma coisa, e onde crianças com algum ano a mais ganham do que viver e bem”66. É licito e benéfico “tomar as crianças das mãos dos pais o mais possível e até totalmente”. Não se deve hesitar:

        “Vocês podem jogá-las em uma casa de inspeção e depois fazer o que bem tenderem. Poderiam permitir, sem remorso, aos pais de dar uma espreitada por trás da cortina no lugar do mestre […]. Poderiam manter separados por dezessete ou dezoito anos os vossos jovens alunos homens e mulheres”67.

       A sociedade pode dispor completamente dos filhos dos pobres. Somos levados a pensar na sorte reservada aos escravos no outro lado do Atlântico. Para pôr fim à sua presença no solo americano — sugere Jefferson — se poderia adquirir a baixo preço e até obter grátis os negros recém-nascidos, entregá-los “à tutela do Estado”, submetê-los ao trabalho o mais cedo possível e assim recuperar em grande parte as despesas necessárias para a “deportação” a Santo Domingo, a ser colocada em ato no momento oportuno. Certamente, “a separação das crianças das suas mães pode gerar escrúpulos humanitários”, mas não é necessário ser tão sensíveis68. Embora ele seja motivado pelo cálculo econômico mais do que pela preocupação da pureza racial, resta o fato de que, com os filhos dos pobres na Inglaterra, Bentham gostaria de agir de modo ainda mais ousado:

        “Uma casa de inspeção, à qual fosse entregue um grupo de crianças desde o nascimento, permitiria um bom número de experimentações […] O que vocês acham de um internato fundado sobre esse princípio?”69

       Veremos que Bentham pensa também em experimentações de caráter eugenético. Mas, por enquanto, se pode chegar a uma conclusão, dando a palavra a um economista inglês (Edward G. Wakefield), que em 1834 publica um livro de sucesso dedicado à comparação entre América e Inglaterra: “Não sou eu, é toda a imprensa inglesa que chama de escravos brancos as crianças inglesas” de derivação popular. A maioria é obrigada a trabalhar por um tempo tão longo que chega a cair no sono sem perceber, para ser depois acordada e obrigada novamente ao trabalho mediante pancadas e tormentos de toda espécie. Quanto aos órfãos, é possível se livrar deles de modo muito simples: nas portas das casas de trabalho há anúncios que promovem a sua venda. Em Londres, o preço de meninos e meninas colocados assim no mercado é sensivelmente inferior ao dos escravos negros na América; nas regiões rurais a mercadoria em questão é ainda mais barata70.”

62 Sieyès, 1985, p. 76. / 63 Williams, 1990, p. 11. / 64 Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 425, nota 144. / 65 Locke, 1993 a, p. 454. / 66 Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 56 (= Bentham, 1983, p. 76). / 67 Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64-65 (= Bentham, 1983, p. 98). / 68 Jefferson, 1984, p. 1450 e 1485-87 (carta a A. Gallatin, 26 de dezembro de 1820, e a J. Sparks, 4 de fevereiro de 1824). / 69 Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64 (= Bentham, 1983, p. 98). / 70 Wakefield, 1967, p. 52-55.

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       “Centenas ou milhares de miseráveis “quotidianamente enforcados por alguma inépcia”

       Sobre essa massa de miseráveis pesa uma legislação que certamente não é caracterizada por garantias. Havia mandatos em branco, que permitiam à polícia prender ou revistar uma pessoa a seu bel-prazer. Eliminado da quarta emenda da Constituição americana, este “intolerável instrumento de opressão”, para retomar a definição do liberal francês Laboulaye71em 1866, continua a subsistir por muito tempo na Inglaterra. O próprio Smith, não conseguindo justificá-lo, procura minimizá-lo. Admira-se pelo fato de que a “gente comum”, no lugar de defender a livre circulação e o comércio da força de trabalho, manifesta toda a sua indignação “contra os mandatos gerais de prisão (general warrants), prática sem dúvida abusiva, mas que não parece capaz de determinar uma opressão geral”72.

       A própria pena de morte é infligida não só com grande facilidade, mas também com algumas arbitrariedades. Com a publicação em 1723 do Black Act — os Blacks provavelmente eram ladrões de cervos — em alguns casos não há necessidade de recorrer a um processo formal para cominar a pena capital, pois esta entrega ao carrasco também os que ajudaram de qualquer maneira o ladrão a escapar da justiça73.

       Sem perturbar-se, Mandeville reconhece que é cancelada a “vida de centenas, de milhares até, de miseráveis delinquentes, quotidianamente enforcados por alguma inépcia”74; a execução torna-se muitas vezes um espetáculo de massa com finalidades pedagógicas75. O liberal inglês exorta os magistrados a não se deixar estorvar nem por uma “comoção” fora de lugar nem por dúvidas e escrúpulos excessivos. Certamente, os ladrões poderiam ter cometido o roubo levados pela necessidade: “o que podem ganhar honestamente não é suficiente para sustentá-los”; e, “no entanto a justiça e a paz da sociedade exigem que os culpados “sejam enforcados”. Claro, “talvez as provas não sejam totalmente certas ou são insuficientes” e há o risco de levar à morte um inocente; mas, por “terrível” que isso possa ser, é necessário de qualquer modo alcançar o objetivo que “nenhum culpado fique impune”. Seria grave se juízes muito escrupulosos preferissem a “própria serenidade”, à “vantagem” da “nação”76. Os tribunais dos juízes-proprietários são chamados a funcionar como uma espécie de Comitê de saúde pública.

       Podemos chegar então à conclusão de que, mesmo querendo abstrair das colônias no seu conjunto (inclusive a Irlanda), na própria Inglaterra o gozo pleno de uma esfera privada de liberdade garantida pela lei — a “liberdade moderna” ou “negativa” da qual falam respectivamente Constant e Berlin77 — é o privilégio de uma restrita minoria. A massa é submetida a uma regulamentação e a uma coerção, que ultrapassam o lugar do trabalho (ou o lugar de punição que não é só o cárcere, mas abrange também as casas de trabalho e o exército). Se Locke se propõe a regulamentar o consumo de álcool das classes populares, Mandeville considera que a elas, pelo menos aos Domingo, “deveria ser impedido […] o acesso a todo tipo de diversão fora da igreja”78. Em relação ao álcool, Burke argumenta de maneira diferente: embora não tenha propriedades nutritivas, ele pode pelo menos aliviar o estímulo da fome no pobre; por outro lado, “em qualquer época e em toda nação” o álcool, juntamente com o “ópio” e o “tabaco”, tem sido chamado a fornecer as “consolações morais” que às vezes são necessárias para o homem”79. Ora, mais do que o disciplinamento de operários e vagabundos, como em Locke e Mandeville, o problema é o encobrimento da consciência e do sofrimento do faminto em geral. A tendência a governar a existência das classes populares até nos seus aspectos mais miúdos permanece inabalável. A referência ao ópio acrescenta apenas um toque de cinismo. Mais tarde, os próprios relatórios das comissões governamentais de inquérito vão denunciar a catástrofe: nos bairros mais pobres se alastra o consumo do ópio, que se torna um meio de alimentação ou um seu paliativo; às vezes, ele é oferecido até aos lactantes, os quais “se encolhem como macaquinhos e enrugam como velhinhos”80.

       Essa regulamentação capilar não pode obviamente deixar de lado a religião. Para Locke, a iniciação das crianças pobres ao trabalho desde os três anos é uma medida benéfica não apenas no plano econômico, mas também no âmbito moral: ela oferece a “oportunidade de obrigá-los a ir à igreja regularmente todo domingo, ao lado dos seus próprios mestres, e com isso ensinar-lhes o sentido da religião”81. Por outro lado, Mandeville exige que a frequência à igreja aos Domingo e a doutrinação religiosa tornem-se uma obrigação para os pobres e os iletrados”. Não é suficiente apelar à espontaneidade do sentimento religioso: “É um dever premente para todo magistrado tomar conta particularmente” do que acontece aos Domingos: “os pobres e as suas crianças deveriam ser dirigidos para a igreja de manhã e de noite”. Os resultados positivos não vão faltar: “Se os magistrados tomarem todas as medidas ao alcance deles, os ministros do Evangelho poderão inculcar nos cérebros mais fracos” a devoção e a virtude da obediência82.

       Além de sua vida privada, as classes populares são ainda mais controladas na vida pública que, entre tantas dificuldades, procuram alcançar: “Entre 1793 e 1820, foram aprovados pelo Parlamento mais de sessenta decretos voltados a reprimir ações coletivas da classe operária”83. Bem antes da atividade sindical propriamente dita, quer dizer, da ação direta a elevar o nível dos salários e a melhorar as condições de trabalho, o que é visto com suspeita é a tentativa dos servos de sair do isolamento e de comunicar-se entre eles. Estes — troveja alarmado Mandeville — “se reúnem impunemente quando querem”. Desenvolvem até relações de recíproca solidariedade: procuram ajudar o colega licenciado ou punido pelo seu patrão. Só pelo fato de não se limitar à relação vertical e subalterna com os seus superiores e de querer desenvolver relações horizontais entre eles, os servos devem ser considerados responsáveis de uma subversão inadmissível: “usurpam a cada dia os direitos dos seus patrões e fazem de tudo para se colocar no mesmo nível”; estão “perdendo aquele sentido de inferioridade que apenas poderia torná-los úteis ao bem-estar público”. Ultrapassando qualquer limite, o servo assume poses de gentlmen: é a comédia do “servo-gentlmen”, uma comédia que, se não for interrompida rapidamente, pode transformar-se em uma “tragédia” para a nação inteira84.

       Nesse contexto, revela-se particularmente significativa a tomada de posição de Adam Smith. Ele reconhece que “não existem leis do parlamento contra as coalizões voltadas a baixar o preço do trabalho enquanto há muitas contra as coalizões voltadas a elevá-lo”. Por outro lado: “os patrões sendo em número menor podem unir-se mais facilmente […]. Os patrões estão sempre e em qualquer lugar em uma espécie de tácita mas nem por isso menos constante e uniforme coalizão voltada a impedir o aumento dos salários acima do nível atual” ou voltada a “baixar ulteriormente o nível dos salários”85. Portanto, mesmo se no plano legislativo patrões e operários são tratados da mesma forma, os primeiros continuariam sempre a gozar de uma situação de vantagem. Por outro lado, eles são favorecidos também pelas condições de vida muito precárias em que se encontra a contraparte:

        “Para pressionar a uma decisão rápida, os operários recorrem sempre aos meios mais clamorosos e às vezes às violências e às ofensas mais impressionantes. São desesperados e agem com a loucura e os excessos de homens desesperados que devem morrer de fome ou obrigar os seus patrões a aceitar as suas solicitações”86.

       Isso não impede Smith de recomendar ao governo de agir com rigor contra as coalizões operárias. Certamente, “é difícil que pessoas do mesmo ofício se encontrem para festejar e se divertir, sem que a conversação termine com uma conspiração contra o Estado ou com algum outro expediente para elevar os preços”. Por outro lado, é “impossível impedir esses encontros por meio de uma lei compatível com a liberdade e a justiça”. Mas, o governo deve prevenir qualquer agregação operária, mesmo a mais casual e, aparentemente, mais inócua. Por exemplo, a obrigação do registro burocrático para os que exercem um determinado oficio acaba por colocar “em relação entre eles indivíduos que diversamente poderiam não se conhecer uns aos outros”. Em nenhum caso pode ser tolerado “um regulamento que autoriza os que desempenham o mesmo ofício a se taxar para providenciar aos próprios pobres, aos próprios doentes, às próprias viúvas e aos próprios órfãos, atribuindo-se um interesse comum a ser administrado”87. Portanto, não apenas a ação sindical, mas também uma sociedade de mútuo socorro deve ser considerada ilegal. No entanto, Smith reconhece que estamos na presença de “homens desesperados”, que arriscam a morte pela inédia. Mas, esta consideração passa em segundo plano em relação à necessidade de evitar reuniões, “conversações”, agregações que tendem a serem sinônimos de “conspiração contra o Estado”.

       Com o intuito de criminalizar desde a origem qualquer associação popular, a classe dominante recorre a métodos ainda mais sumários, que podemos descrever com as palavras de Constant: é “o horrendo expediente de enviar espiões e atiçar os espíritos ignorantes e propor-lhes a revolta para depois podê-la denunciar”. Os resultados não faltam: “Os miseráveis seduziram os que tiveram a desventura de ouvi-los e provavelmente acusaram também os que não conseguiram seduzir”. E sobre ambos se abate a justiça88. (…)

       O que aqui está sendo tão apaixonadamente invocado é um Todo que exige o sacrifício não momentâneo, mas permanente da grande maioria da população, cuja condição é tanto mais trágica pelo fato de que aparece muito remota qualquer perspectiva de melhora. Pelo contrário, só vislumbrar projetos que apontem nessa direção é sinônimo não apenas de utopismo abstrato mas também e sobretudo de perigoso subversivismo. Segundo Townsend, “o capital de felicidade humana é fortemente acrescido” pela presença de “pobres”, obrigados a oferecer os trabalhos mais pesados e mais penosos. Os pobres merecem plenamente a própria sorte por serem gastadores e vagabundos, mas para a sociedade seria um desastre se porventura eles chegassem a se emendar: “As frotas e os exércitos do Estado sentiriam a falta de marinheiros e soldados, se a sobriedade e a diligência prevalecessem universalmente”90. Também a economia do país viria a se encontrar em uma situação muito difícil. À mesma conclusão chega Mandeville: “Para a felicidade da sociedade é necessário que a grande maioria permaneça ignorante e pobre”; “a riqueza mais segura consiste em uma massa de pobres laboriosos”91. E agora vamos ler Arthur Young: “Todos, menos os idiotas, sabem que as classes inferiores devem ser mantidas pobres, diversamente deixam de ser produtivas”92 e de contribuir à “riqueza das nações” de que fala Smith. Mais tarde, na França, às mesmas conclusões chega Destutt de Tracy: “As nações pobres são aquelas em que o povo vive em condições de bem-estar, enquanto as nações ricas são aquelas em que ele fica normalmente pobre”93. Por que não é percebida como contraditória a proposição, nas suas diferentes variações, em base à qual a felicidade e a riqueza da sociedade dependem do esgotamento e das privações dos pobres que constituem a grande maioria da população? Quem explica a lógica desse Todo em suas características singulares é Locke: os escravos “não podem ser considerados parte da sociedade civil, cuja finalidade principal é a conservação da propriedade” (TT, II, 85). E esta é também a opinião de Algernon Sidney: “Um reino ou uma comunidade […] é composta de homens livres e iguais; os servos podem estar presentes nela, mas não são seus membros”; sim, “nenhum homem, enquanto é servo, pode ser membro do Estado” (commonwealth); nem membro do povo ele é, porque o “povo” é o conjunto dos “homens livres”94. Os pobres são a casta servil da qual a sociedade tem necessidade, são o fundamento subterrâneo do edifício social, são os que depois Nietzsche vai definir como “cegas toupeiras da cultura”.”

Redação

1 Comentário

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  1. Tradução/revisão precárias

    Este é um belo livro, recomendo decididamente, porém, a tradução e a revisão da editora foram péssimas. A tradução com certeza é oriunda do google tradutor precariamente revisada.

    Eventualmente tentei corrigir algumas coisas na postagem.

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