Manuel Bandeira: duas crônicas sobre Machado de Assis

Enviado por Gilberto Cruvinel

Nas crônicas “Antonieta Rudge” e “Machado de Assis”,  Manuel Bandeira fala sobre sua experiência pessoal com o Velho Bruxo. Bandeira encontrava, ainda garoto de 18 anos,  com Machado e Carolina nas ruas do Cosme Velho.

Antonieta Rudge

O caso Antonieta Rudge me faz pensar no caso Machado de Assis. Perdão, eu conheço bem as enormes diferenças. O caso Machado de Assis era complicadíssimo, o de Antonieta simples.  Machado de Assis era inquietante. Conheci-o pessoalmente, eu era rapazola. Laranjeiras… O rio da Carioca a descoberto. Era particularmente pitoresco nas proximidades da casa do mestre. Uma casa que era um amor de simpatia. Porque era do mestre. A prova é que havia mais duas ou três iguais a ela e não eram a mesma cousa. Eu passava por lá sempre com um bruto respeito. O Brás Cubas fora escrito ali? Em todo caso o Dom Casmurro. A casa de Capitu. À tardinha havia sempre uma janela aberta na sala de visitas, a primeira janela à esquerda, e eu já sabia que havia um vulto de senhora, bonita cabeça de cabelos todos brancos, com um livro aberto nas mãos. Era Corina, Carolina, a esposa do mestre, que o esperava de volta do Ministério da Viação. Todas as noites quando eu ganhava a rua depois do jantar via passar um casal agarradinho: o mestre com Carolina.

Machado de Assis dava a impressão de um homem muito tímido, muito discreto, incapaz da menor maldade. Seria bom? Era bom no sentido de não fazer a menor maldade a ninguém. Mas eu lhe tinha lido a obra inteira. E embora fosse um fedelho, não sei, Machado de Assis me inquietava. Aquela história do enfermeiro… O soneto “Suave mari magno”… Nos versos como no conto o gosto doentio de espiar o sofrimento alheio. E a psicologia dura, derrotista, insultante de quase toda a obra. Sempre o móvel egoísta, e ainda que limpo, inconfessável. Machado de Assis dava o sentimento desconfortante que aos olhos dele não adiantava ser bom, que era impossível fazê-lo reconhecer a generosidade de um nosso gesto de bondade, de dignidade ou de modéstia.

Certa vez tive de levar a Machado de Assis uma carta de meu pai demitindo-se do lugar de consultor técnico do ministro da Viação. O engenheiro deixava o seu cargo por solidariedade com um amigo, injustamente atingido num caso escandaloso da administração. Levei essa carta danado da vida. Fui todo o caminho pensando que Machado de Assis havia de formular a respeito do ato de meu pai uma filosofiazinha desagradável. E eu só de imaginar nisso tinha vontade de bater em Machado de Assis. Em suma eu achava, e ainda hoje acho, que Machado de Assis era um monstro. Um monstro que não fazia mal a ninguém, que nunca haveria de fazer mal a ninguém, mas não obstante um monstro.


Ao passo que Antonieta é, sempre me pareceu, um anjo. Principia que é loura. Nisso eu fiquei criança: anjo para mim tem que ser louro. Adorei os anjos mulatinhos do quadro de Tarsila, mas francamente não acredito neles. Estou certo que, para os serviços angélicos do paraíso, Deus tem o preconceito de cor. Ora muito bem, Antonieta é anjo. É de tal maneira anjo, que pode ser ao mesmo tempo mulher, e eu acredito que Antonieta seja uma mulher como as outras (Machado de Assis no caso). E Antonieta é simples. – Como? É mulher e é simples? – Perfeitamente, vamos deixar dessa história. Machado de Assis era simplíssimo na expressão, complicado no sentimento: “Tinha outro dentro”, como dizia a cozinheira do Ribeiro Couto em Campos do Jordão. Antonieta não tem outra dentro. É aquilo mesmo. Eu não
disse que ela era anjo? Os anjos são assim.

Afinal comecei escrevendo que Antonieta me lembrava Machado de Assis e já estou quase no fim destas duas meias colunas e até agora só disse que ele era um monstro e que ela é um anjo. Vou depressa desmanchar a antítese. Ambos são iguais no extraordinário pudor. A nenhum dos dois falta aquilo que a crítica de música chama temperamento. Mas que recato na expressão dessas cousas! O nosso grande João Ribeiro declarou uma vez não conhecer nada mais – como dizer? – sex-appealing do que na obra de Machado de Assis o conto “Os braços de dona Severina”, onde no entanto não há nada de mais sensual senão aqueles braços e em verdade nada acontece. Muitas vezes ouvindo certas interpretações tão finas de Antonieta (não esquecerei nunca o adágio da Apassionata há anos no Municipal carioca) tenho pensado, sem querer, nos braços de d. Severina.

O pudor desses dois artistas não se limi?ta apenas ao domínio propriamente sexual, senão a tudo. Machado de Assis nunca descreveu uma paisagem. Acho que ele foi o único brasileiro que teve o
sentimento de pudor diante da paisagem brasileira. Esse senso do pudor está na base de todo estilo. E aí está afinal de contas o que desde o princípio eu queria dizer de Antonieta: ninguém melhor que ela ilustra o sentido dessa palavra tão difícil de definir – o estilo.

Machado de Assis

No seu estudo crítico e biográfico sobre Machado de Assis, escreveu Lúcia Miguel Pereira: “A um amigo seu que o acusava de materialista, já no fim da vida, retrucou, vivamente: Materialista, eu? absolutamente!” 

E no pé da página vem a nota: “O dr. Abel Ferreira de Matos, o amigo Abel citado por Machado de Assis num admirável conto, ‘O incêndio’, publicado em 1906 no Almanack Garnier. Abel de Matos e seu colega Manuel Sousa Bandeira eram consultores técnicos do Ministério da Viação…”

Peço licença para retificar: o dr. Abel de Matos não era consultor do Ministério; mas freqüentava assiduamente o gabinete do meu pai, onde Machado de Assis aparecia de vez em quando para espairecer.
De uma feita que Machado de Assis entrou lá estava meu pai fazendo uma mancha do posto semafórico do Castelo, uma aquarelinha em papel almaço. Machado de Assis gostou muito da pintura e pediu-a a meu pai. No dia seguinte contou que tinha mandado encaixilhar a aquarela. Meu pai ficou tão cheio de honra, que saiu dali narrando o fato a meio mundo. Dias depois o dr. Antonino Fialho, encontrando-se com Machado de Assis, falou-lhe no caso. Pra quê? Machado de Assis espinhou-se todo e respondeu amoladíssimo:

– J… á é a t… erceira pessoa que me fala nisso!

Ao que o dr. Antonino replicou simplesmente:

– Sinto muito ter sido a terceira…

Foi por esse tempo que tive a fortuna de conhecer o mestre. Tinha acabado de aparecer o Dom Casmurro. Uma tarde, tomando o bonde no Largo do Machado, aconteceu sentar-me ao lado de Machado de Assis, que vinha lendo um jornal. Pois, não é que ele dobrou o jornal e puxou conversa com o rapazola de 15 anos? Fiquei radiante. Machado de Assis começou a contar um passeio que fizera na baía com um grupo de escritores, passeio durante o qual o Holanda recitara:

– Recitou aquela estrofe dos Lusíadas… Como é mesmo? Do episódio em que Vênus vai pedir a Júpiter pelos portugueses…

Eu, muito vaidoso de mostrar a minha familiaridade com o Camões, recitei:

– “C’um delgado cendal as partes cobre…”

Machado de Assis interrompeu-me:

– A estrofe anterior!

A memória traiu-me. Não houve meio de me lembrar da estrofe anterior! Fiquei desolado.

Naquele ano estive à noite em casa de Machado de Assis no dia do seu aniversário. Como eu tinha vontade de conhecer aquele interior, quando passava de tarde pela rua e via um vulto de d. Carolina sentada junto à janela da esquerda lendo! Interior simples, como o descreve Lúcia Miguel Pereira. Poucos amigos, só os íntimos. Lembro-me bem do dr. Heitor Bento Cordeiro.

Machado de Assis, como o conheci, está todo no livro de Lúcia Miguel Pereira. É uma ressurreição digna de figurar ao lado dos melhores de Strachey. Sente-se neste estudo, a par de senso crítico incomum, a imaginação da romancista, tudo penetrando, tudo vivificando. Crítica e biografia, conduzidas a par e passo, equilibram-se através de todo o volume. No gênero não me lembro de outra obra em nossa literatura que dê maior impressão de harmonia. E pode-se dizer que nela Lúcia Miguel Pereira revela toda a medida do seu talento crítico e dos seus dotes de escritora.

Ela sabe dizer muito numa frase curta. Por exemplo: “Encostava-se, sem abraçar.” Capítulo admirável é aquele em que ela analisa os romances A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia, mostrando que eles representam o debate que Machado de Assis travou com a sua consciência para justificar a seus próprios olhos o abandono de Maria Inês. Esse capítulo é uma aquisição nova e definitiva para a crítica.

Virada a última página do livro, que impressão se guarda do biografado? Hum… ruinzinha! Em vão Lúcia Miguel Pereira temperou a sua solidez intelectual com a simpatia e carinho que demonstra pelo grande
esquizóide.

O abandono de Maria Inês, a ocultação da epilepsia a Carolina são nódoas irreparáveis. Machado de Assis venceu em toda a linha. Mas foi uma vitória que lhe envenenou as fontes do pensamento. O seu pessimismo não me parece ingênuo. Sendo o egoísmo a linha mestra da sua vida, teve, para não se desprezar a si próprio, de desprezar os homens em bloco, de atribuir sempre aos atos humanos um móvel egoísta. E é horrível pensar-se a que mesquinho ideal Maria Inês foi sacrificada – o bem-estar burguês, a tranqüilidade burguesa. Pouco importa que dentro desse repouso o romancista tenha criado uma grande obra. Essa obra nos enche de admiração mas deixa-nos no coração um sentimento amargo.

Lúcia Miguel Pereira espanta-se que Machado de Assis, tendo assumido todas as exterioridades  burguesas, não se tenha aburguesado. Aqui é que não concordo com ela, pois me parece que Machado de Assis foi visceralmente um burguês, pelo seu amor ao conforto prudentemente mediano e pelo egoísmo feroz com que se aplicou a alcançá-lo. A aridez de sua obra foi o preço do seu triunfo.
1939

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Fontes:

1) Manuel Bandeira e Machado de Assis, “O Grande Esquizóide”, blog Rodrigo Gurgel Literatura e Escrita Criativa

2) Revista Piauí , edição 19, abril 2008

Redação

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  1. De novo, autor e vida

    Fico.

    Fecho com a obra.

    …………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………..

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=qni9uuWSd5s%5D

     

    “No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta (…), depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

     

    Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

    — Também por que diabo não era ela azul? disse comigo.
    E esta reflexão, — uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas, — me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: “Este é provavelmente o inventor das borboletas”. A idéia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

    Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última ideia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as providas formigas… Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.”

     

    Memórias Póstumas de Brás Cubas, Cap. XXXI, de Machado de Assis

  2. SUAVE MARI MAGNO

    SUAVE MARI MAGNO

    Lembra-me que, em certo dia, 

    Na rua, ao sol de verão, 

    Envenenado morria 
    Um pobre cão. 

    Arfava, espumava e ria, 
    De um riso espúrio e bufão, 
    Ventre e pernas sacudia 
    Na convulsão. 

    Nenhum, nenhum curioso 
    Passava, sem se deter, 
    Silencioso, 

    Junto ao cão que ia morrer, 
    Como se lhe desse gozo 
    Ver padecer. 

     

    Machado de Assis-

  3. Aridez?

    Manuel Bandeira falou, alguém explica?

    “…A aridez de sua obra foi o preço do seu triunfo.”

     

    Houaiss:ARIDEZ – “atecnia, esterilidade, improdutividade, infecundidade, infertilidade, inutilidade”

    1. “Aridez” no sentido de

      “Aridez” no sentido de “secura”, e até de “rispidez”. Esse é mesmo o estilo de Machado de Assis. Claro que a frase de MB pode levar a equívocos de interpretação, devido aos outros significados do termo. E também devido ao fato de o estilo machadiano também ser marcado pela ironia. Ou seja: tomá-lo ao pé da letra é equivocado. Ainda mais se confundindo a escrita e o escritor…

  4. Mais, da insubordinação de
    Mais, da insubordinação de Bandeira, sempre. Seu anarquismo emocional e rememorativo. Que a rotina emocional, imensa e pesada, do grande Joaquim Maria. Em todo caso, a pitada de surpresa ocorre sempre pelas mãos criativas da linguagem reinventada como personagem de literatura: do grande, lato vastíssimo Guimarães.

    Médico da alma brasileira.

  5. “Machado de Assis

    “Machado de Assis interrompeu-me:

    – A estrofe anterior!

    A memória traiu-me. Não houve meio de me lembrar da estrofe anterior! Fiquei desolado.”

     

    Maravilhoso o “A estrofe anterior” ….  Sacana e sarcástico.

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