Maria Dmítrievna acaba de morrer e seu viúvo continua na miséria, por Sebastião Nunes

Andam brincando demais com a velha Terra, inclusive o imperialista Biden, que insiste em chamar de América o que não passa de um país grande, formado por estados desunidos.

Maria Dmítrievna acaba de morrer e seu viúvo continua na miséria

por Sebastião Nunes

Apollinária Súslova era uma garota da pá virada de 23 anos. Escritora como Fiódor, certo dia apareceu na revista “A Época”, dos irmãos Dostoiévski.

– Trouxe alguns textos pra vocês publicarem – disse ela, de nariz empinado.       

Mikhail estava ocupado em fazer contas e organizar a contabilidade, de modo que coube a Fiódor receber a novata.

A jovem Súslova era, como disse um desses europeus enxeridos que visitavam a Rússia de vez em quando, “a criatura mais bela que meus olhos já viram”.

Dostô se apaixonou imediatamente. Mesmo com a mulher debaixo dos sete palmos, devorada nas últimas semanas por uma tuberculose irremediável, não teve como não se apaixonar.

A cena literária russa era, no momento, absolutamente confusa. Em primeiro lugar, escritores e editores dependiam, como sempre, da censura. Nenhum texto ou revista podia ser publicado sem aprovação dos censores. Mesmo para a fundação de qualquer órgão, era indispensável essa aprovação.

Por outro lado, era nas revistas e auditórios que aconteciam os debates que agitavam a vida em Petersburgo e, por tabela, em Moscou. Pois alguém duvidava de que em Petersburgo se agrupavam os intelectuais, se compunham os grupos, se debatiam as ideias, e se travavam os duelos e as intermináveis contendas entre os ocidentalistas e os eslavófilos?

UM ESCRITOR EMBASBACADO

– Trouxe alguns textos pra vocês publicarem – repetiu a garota. – Ou vocês já têm originais em excesso?

Dostô engoliu a saliva, fechou a boca e tentou sorrir, enquanto seus olhos continuavam esbugalhados diante daquele monumento faiscante.

– Não, não – acordou. – Faça o favor de sentar-se.

Como nas novelas de TV e nos romances de segunda linha, apressou-se a limpar de livros, papéis e cinzeiros a cadeira mais próxima. A jovem Súslova sentou, cruzou as pernas (o que não era conveniente para uma senhorita educada), tirou de uma cigarreira de ouro um longo cigarro dourado, enfiou-o na boca e se inclinou na direção de Dostô.

– Mas eu não tenho fósforos – murmurou o basbaque.

– Então descubra quem tem.

Sem perceber que estava bancando o idiota, o escritor ainda principiante, embora já fosse quarentão (43 anos para ser exato), conseguiu que Mikhail, concentrado em suas contas, extraísse uma caixa de fósforos do bolso direito do sobretudo, que trazia abotoado até o queixo, pois o tempo em Petersburgo estava pior do que horrível.

– A jovem Súslova não estava nem aí. Na sua idade, com o fogo do desejo a lhe sair pelos poros e a preencher cada milímetro do corpo, tudo o que sonhava era deitar e rolar não importava com quem.

UM ESCRITOR CONFUSO

A revista “A Época” alcançara no último mês 500 assinantes, mais do que suficientes para manter os irmãos e pagar os colaboradores. Só a intromissão da censura tzarista permanente, cortando, acrescentando, distorcendo e retardando a liberação dos textos que lhe pareciam suspeitos, botava um gota de fel na felicidade dos fundadores. Fazer o quê? Nada além de tentar antecipar as intervenções, seguindo o mais rigidamente possível as regras do jogo. Quem estava no fogo corria o risco de se queimar. Quem não arrisca não petisca. Etc.

A garota Súslova soprou pela boca um grosso rolo de fumaça perfumada que chegou às narinas de Dostô e o deixou quase maluco de tesão. Além disso, a jovem fez um brusco movimento que lhe deixou à mostra, graciosa e intencionalmente, a ponta da botina marrom de couro de búfalo, que deveria ter custado os tubos. Recém-viúvo, o quarentão lutou para não se ajoelhar e beijar aquela botina. Como foi difícil!

– Então, vai ou não vai examinar meus textos? – perguntou, com a voz sensual com que Deus prodigamente a dotara, a deusa fumarenta e sensualíssima.

– Claro, claro – declarou o perplexo Dostô. – Se puder deixar os originais e voltar amanhã, terei a resposta na ponta da língua.

E, imaginando transmitir-lhe um pouco de seu fogo, exibiu uma ponta de língua vermelha e dura, que ficou apontada na direção da deliciosa garota, vinte anos mais nova, e que viria a ser, a despeito da recente viuvez e das eventuais aventuras em becos, ruelas e hotéis baratos, a grande paixão erótica de sua vida.

Para você ver como são bobos os escritores, mesmo os maiores deles.

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“Quando se tornaram maus [os homens], começaram a falar em fraternidade e humanidade e entenderam essas ideias. Quando se tornaram criminosos, conceberam a justiça e prescreveram para si mesmos códigos inteiros para mantê-la; e, para garantir os códigos, instalaram a forca.” (Dostoiéivski)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Sebastiao Nunes

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