Dos males que a modernidade líquida provoca, por Sebastiao Nunes

Minha vida sem meu celular ou: Dos males que a modernidade líquida provoca

Por Sebastiao Nunes

O cara encostou o berro na minha cara e disse:

        – O celular ou tá morto!

        – Tô morto – respondi pro cara, abrindo a camisa e exibindo o peito magro.

        Sem nem olhar pra minha cara, o cara mandou uma porrada na minha cabeça com o cabo do berro.

        Caí vendo estrelinhas, como mandavam os quadrinhos antigos. Estrebuchei, como relatam os BO da vida. Cumprido o ritual da babaquice, apaguei.

        Foi só acordar e tentei pegar o celular. Cadê?

        – Cadê meu celular? – gritei. – Quem tirou meu celular daqui?

        Então olhei em volta e estranhei: não estava na minha cama. Nem no meu quarto. Aquilo parecia uma enfermaria de hospital, nossa!

        – Que é que tô fazendo aqui? – berrei. – Que foi que aconteceu comigo?

        Tateei debaixo do travesseiro e nada da porra do celular. Comecei a tremer e a suar frio. Isso não podia estar acontecendo. Meu celular – cadê meu celular?

 

EXPLICANDO DIREITINHO

        – A polícia te deixou na portaria, cara – disse um cara que entrou correndo.

        Olhei o cara. Olhei meus braços. Nenhuma ferida. Sangue nenhum. Só barro.

        – Cadê meu celular, cara? – perguntei ao cara em pé do meu lado.

        – Não sei de celular nenhum, cara – disse o cara. – Você foi entregue desmaiado lá na portaria. Os guardas te deixaram lá. Eu sou só enfermeiro.

        – Sem meu celular, cara?

        – Parece que sim. Quando o plantonista mandou te internar não vi celular nenhum. Você não tinha nada, cara. Só a roupa do corpo. Nem sapato tinha, cara.

        – Mas eu não posso ficar sem meu celular, cara – eu disse pro cara. – Meu celular é minha vida. Preciso falar com as pessoas. Preciso saber das notícias. Preciso…

        – Mas eu não sei de nada, cara – disse o enfermeiro. Você entrou ontem de noite. Tá aqui a hora no boletim, ó: vinte e três e quarenta e cinco. Tinha um galo enorme na sua testa e um pouquinho de sangue seco. Fiz um curativo e te deixei dormindo.

        – Mas o que é que eu faço sem meu celular, cara? – perguntei de novo, suando frio e tremendo. – Tô passando mal. Tô muito doente.

        – O plantonista disse que foi só uma pancada. Fizeram um pacote de exames e não acharam nada. Cérebro perfeito. Crânio também. Você não tem nada, cara.

        – Mas estou passando mal, cara – disse eu. – Exijo meu celular. Preciso falar com as pessoas. Preciso saber das notícias. Devolve meu celular, cara!

 

LOUCO FURIOSO, CARA!

        Chegou o médico de plantão e parou do meu lado. Sorrindo.

        – E aí, cara? – perguntou ele. – Tudo bem com você?

        – Quero meu celular – respondi. – Tô passando mal. Preciso me comunicar com as pessoas. Preciso saber notícias do mundo. Não vê que tô muito doente?

        – Você não tem nada, cara – disse o médico, ainda sorrindo. – Te examinamos dos pés à cabeça. Fizemos todo exame de rotina. Você não tem nada.

        – Mas é claro que tenho, cara! – gritei, sentando na cama. – Ou devolvem meu celular ou quebro tudo aqui. Olha que eu quebro.

        O médico olhou o enfermeiro. O enfermeiro olhou o médico. Os dois ficaram um tempo olhando um pra cara do outro.

        Não aguentei mais e pulei da cama.

        – Quero meu celular agora! – gritei de novo. – Se não devolverem agora quebro tudo num instante e vou embora. Devolvam meu celular!

        – Você deve ter sido assaltado, cara – disse o médico. – Vamos te dar um sedativo pra você dormir mais um pouco. Quando acordar…

        Dei um soco na cara do médico e saí gritando entre as camas.

        – Roubaram meu celular! Devolvam meu celular! Estou muito doente e preciso falar com as pessoas! Estão querendo me matar de solidão aqui dentro!

        Dois caras enormes vieram correndo não sei de onde e me agarraram.

        – Me larga! – gritei tentando me livrar deles. – Devolvam meu celular agora!

        Os dois cara me derrubaram na cama e me viraram de bunda pra cima.

        – Parem com isso, seus ladrões! Devolvam meu celular!

        Senti a agulha me espetando a bunda e gritei mais alto.

        – Devolvam meu celular, seus ladrões! Exijo meu celular de volta. Estou passando muito mal. Vocês querem que eu morra aqui, é? Sem celular e sem comunicação?

       

ACORDANDO AOS POUCOS

        Abri os olhos e o mundo rodou. A cama, as paredes, o teto. Tudo rodou. Fechei os olhos. Enfiei a mão debaixo do travesseiro e levei um susto: cadê meu celular?

        – Cambada de ladrões! – gritei bem alto. – Cadê meu celular?

        Tentei me levantar mas não pude. Estava preso à cama. Amarrado. Olhei em volta. Das camas próximas uns caras me encaravam, meio que sorrindo.

        – Viram quem furtou meu celular? – Perguntei me virando para a direita e para a esquerda. – Estou muito doente mesmo. Vou acabar morrendo aqui. Vejam como tô tremendo e suando. Me ajudem pelo amor de Deus! Eu quero meu celular de volta.

        Os dois vizinhos olharam para o teto: nem aí para a minha desgraça.

        – Só tem ladrão neste hospital! – berrei de novo. – Devolvam meu celular, seus ladrões. Preciso falar com as pessoas. Preciso me comunicar com o mundo!

        Apaguei de novo. Os caras não deram a mínima.

Sebastiao Nunes

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