Na Flip, um debate sobre a forma como ocupamos os espaços urbanos

Tatiane Correia
Repórter do GGN desde 2019. Graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), MBA em Derivativos e Informações Econômico-Financeiras pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Com passagens pela revista Executivos Financeiros e Agência Dinheiro Vivo.
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Enviado por MiriamL
 
 
 
A favela é hoje vista como poética?
Isabel Coutinho (em Paraty), d’O Público
 
 
 
O arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha e o historiador e crítico de arquitectura italiano Francesco dal Co foram até agora os protagonistas da sessão mais interessante da FLIP, que termina no domingo. Uma lição de história da humanidade e de como habitamos as cidades.
 
Paulo Mendes da Rocha em Paraty FLIP
 
 
Quando estava quase no fim a sessão que reuniu na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), na quinta-feira à noite, o arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha e o crítico de arquitectura italiano Francesco dal Co, o prémio Pritzker 2006 pediu para contar uma história “rapidinho”.
 
Contou que um dos seus ex-alunos em São Paulo, depois de se ter formado, foi morar para o Rio e trabalha no serviço de reurbanização de favelas. Um dia, quando Mendes da Rocha foi à cidade dar uma conferência, procurou-o e quis mostrar-lhe “uma coisa”, se o professor tivesse tempo. Ele foi. 
 
“Ele queria me mostrar uma velhinha que morava sozinha numa casinha. A favela possui pedreiros, operários que se ajudam. E ela pediu ajuda de um mestre de obras que habitava a favela e ele fez o que ela estava pedindo. Ela tinha visto, num terreno baldio, uma geladeira Consul vermelha, com aquele brasãozinho que é uma coroa dourada na porta. E ela pediu a ele que botasse a porta da geladeira vermelha com a coroa dourada como entrada da casa dela. E ele fez, reduziu o socalco da porta, corrigiu a fechadura da porta para ela não ficar trancada e a porta de entrada do minúsculo barraco da casa dessa senhora por projecto dela, com o lixo da cidade, era vermelha esmaltada com o brasão dourado Consul. E se entrava como quem passa num navio de um sítio para o outro e bate a porta: ‘Bom dia, por favor, esteja em casa.’ Essa história é maravilhosa”, fez rir a audiência o arquitecto.
 
Esta história surgiu-lhe depois de ter acabado de ouvir as perguntas vindas da plateia. Uma delas afirmava que “a favela é hoje vista até como poética” e que “o asfalto quer resolver a questão da favela sem conflito”. E perguntava: “Mas se a favela é conflito, como integrá-la verdadeiramente na cidade?” 
 
Para Paulo Mendes da Rocha, a imagem suscitada por esta pergunta é monumental. “A urbanização rapidíssima, a verticalização de bairros como Copacabana no Rio, fez com que aparecessem as favelas e os morros logo ali atrás por algumas razões muito interessantes de considerar do ponto de vista da inteligência ou da intriga humana ou das forças que fazem a cidade. Uma delas é a conivência daqueles que vão habitar os apartamentos, que muito desejavam porque estavam em frente ao mar, e que sem babá das crianças, porteiro, quem trate do lixo, sem a senzala, aquilo não seria possível. E permitiu a criação da favela que foi um pacto consentido.” 
 
No entanto, as favelas existem no mundo inteiro. O arquitecto lembrou que há meia dúzia de anos, numa viagem que fez de comboio para Berlim, viu favelas e barracos ao longo da linha de comboio. Mas no Rio de Janeiro, por causa da sua morfologia de montanhas, aconteceu que quem especula no mercado imobiliário preferiu construir na horizontal, porque é mais fácil. “As favelas antes de mais nada exprimem uma força de consciência da população sobre a necessidade da urbanização e de habitar uma cidade seja como for. Tanto daqueles que carregam o lixo e constroem aquela favela, como daqueles que o consentem, porque é uma forma de, na urgência, deixarem que se afastem para ali numa solução completamente conflituosa, mas criativa e maravilhosa”, disse o arquitecto, que é o autor no Brasil, por exemplo, do Museu Brasileiro da Escultura, em São Paulo, e em Lisboa do novo Museu dos Coches.
 
Paulo Mendes da Rocha no Museu dos Coches em Lisboa (Bruno Simões Castanheira/Arquivo)
 
Como os bilhetes para esta sessão dedicada à arquitectura, que desde 2013 ganhou lugar fixo na programação, estavam esgotadíssimos, muitos assistiram à palestra nos auditórios ao ar livre que este ano rodeiam a Tenda dos Autores, onde há ecrãs com a transmissão e tradução em directo. Todas as sessões estão também a ser transmitidas em streaming no site oficial da FLIP para todo o mundo. 
 
Logo no início da conversa cujo tema era A Paraty, Veneza no Atlântico Sul, o historiador e crítico de arquitectura Francesco dal Co disse que não estavam ali a falar de arquitectura, mas de uma ideia de construir e de habitar o mundo e que não conhecia “nenhum arquitecto que tivesse a capacidade de se expressar como Paulo Mendes da Rocha” sobre o nosso tempo. Quando entraram no palco, foram apresentados pelo moderador, o arquitecto Guilherme Wisnik, como dois “gigantes da arquitectura”, e foram aplaudidos de pé. 
 
O professor no Instituto de Arquitectura na Universidade de Veneza, que foi director e curador da Bienal de Arquitectura de Veneza durante anos, contou que, quando Mendes da Rocha recebeu o Prémio Pritzker em Istambul, ele também estava lá. E lembra-se de que, na cerimónia, a mulher do primeiro-ministro da Turquia estava a usar o véu. Isso serviu-lhe de metáfora para a arquitectura do amigo: “O Paulo nunca terá algo a cobrir-lhe o rosto, nunca terá um véu a esconder-lhe um rosto. É um arquitecto do nosso tempo que não tem medo de mostrá-lo.” 
 
Para falar da cidade onde vive, lembrou um verso do poeta italiano Petrarca, em que este descreve Veneza como “o impossível nascido da impossibilidade”. Isto é Veneza, disse, uma cidade impossível nascida num sítio impossível, construída sobre a impossibilidade. 
 
“O mais terrível neste nosso mundo de turismo de massas é que as pessoas vão a Veneza como num sonho. Não a vêem como uma cidade que é feita de conflitos. Mas todas as cidades são feitas de conflitos, conflitos de interesses, de comércio, de poderes. Essa é a vida das cidades.”
 
E ainda que à primeira vista, quando se olha para Paraty, isso possa não ser evidente, o historiador lembrou o seu passado, o papel da escravatura e o comércio, para lembrar que, mesmo que a sua forma seja moderna, há sempre conflitos. 
 
Veneza, 23 milhões de turistas
 
“Devemos hoje saber conviver com os conflitos e não pensar que a civilização destrói os conflitos. Os conflitos geram. Nenhum filho é gerado por um amor pacífico. Os filhos nascem de um confronto, tal como as cidades. E por isso são esses lugares magníficos. A cidade produz-se através de um combate. É isto um projecto de arquitectura.” 
 
Lembrou que em Veneza há 23 milhões de turistas por ano. O que é que eles vêem? “Se não forem educados, se a nossa sociedade continuar a pensar que o passado é só um espectáculo… É só um monumento da nossa nostalgia.” E falou da célebre pirâmide do Museu do Louvre que para ele é a coisa mais idiota que já se fez. “Só um presidente megalómano [François Mitterrand] e um arquitecto ignorante americano [I. M. Pei] para terem pensado naquilo, numa pirâmide de vidro [em frente ao Louvre, onde está a Vitória de Samotrácia].”
 
Paulo Mendes da Rocha costuma dar como exemplo para a sua visão das cidades uma canção de Tom Jobim, O Corcovado, e um famoso verso: “Da janela vê-se o Corcovado, o redentor, que lindo!” Para o arquitecto, “maravilha é a janela”, lembrou o moderador. “As pessoas que estão a ver aquela maravilha da natureza só o estão a fazer porque estão no seu apartamento, no 15.º andar de Copacabana, onde tudo está a funcionar para que vejam essa maravilha”, acrescentou Guilherme Wisnik. “A ideia estimulante do caso é a questão do conflito. Nossas cidades sofrem por razão de muitos erros. O conhecimento, as técnicas, os desejos, a literatura nos dão sempre uma certeza do que não se deve fazer. O que vai ser feito é sempre uma experimentação na direcção que parecer mais conveniente, fazendo com que surjam novos conflitos”, concluiu o prémio Pritzker 2006.
Tatiane Correia

Repórter do GGN desde 2019. Graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), MBA em Derivativos e Informações Econômico-Financeiras pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Com passagens pela revista Executivos Financeiros e Agência Dinheiro Vivo.

1 Comentário

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  1. A “favela” alemã que o grande
    A “favela” alemã que o grande arquiteto cita na verdade é o Kleingartenverein, um conjunto de pequenos lotes com construções simples para guardar ferramentas. Nesses lotes, as famílias plantam hortas, flores e belos jardins. No inverno parecem favelas, eu tive essa mesma impressão. Basta ver na primavera para entender o real significado. As famílias se reunem para plantar, conviver, aproveitar o clima.

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