Na profunda madrugada, Machado de Assis e Lima Barreto recordam o passado

Por Sebastião Nunes

Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 2015. Lima Barreto bate na lápide de mármore que fecha o túmulo de Machado de Assis:

            – Machadinho, ô seu Machadinho, vem ver que lua bonita, sô!

            – Que diabo você quer, Liminha? Vê lá se estou interessado em lua! E logo agora que eu estava sonhando com Carolina quando era nova, novinha em folha.

            – E desde quando defunto sonha, homem de Deus?

            – Desde sempre, meu caro. Nasci sonhando, vivi sonhando; morto, continuo sonhando.

            Lima Barreto coçou a barbicha rala.

            – Engraçado. Faz um tempão que estou enterrado aqui e nunca sonhei.

            – É que você não tem imaginação. Escritor mais sem imaginação nunca vi. Você só sabia reclamar da vida, seu crioulo safado.

            – Não me ofende, Machadinho. Olha que te dou umas bolachas!

MÚSICOS NA RODA

            Machado, acostumado aos destemperos de Lima Barreto, seu companheiro de longos anos no cemitério, decidiu maneirar.

            – Não esquenta, Liminha. Estou só brincando. Esquece o crioulo safado também.

            – Beleza, meu chapa. A noite está tão bonita que me deu vontade de conversar fiado e tomar umas e outras.

            – E desde quando espírito enche a cara, homem de Deus?

            – Não me arremeda, Machadinho. Não sei se espírito bebe ou não. Só disse que me deu vontade. Ai, que saudade de uma cachacinha!

            – Você tem razão, Liminha. A lua está danada de bonita. Você fazia muita serenata?

            – Claro. Serenata é que não faltava no meu tempo. Fiz serenata até com Chiquinha Gonzaga. Eta mulherzinha da pá virada, sô! Deixava muito marmanjo no chinelo.

            – Pois eu nunca fiz. Era tímido demais, sério demais. Além disso, achava vulgar, coisa de suburbano pobre. Preferia a companhia de intelectuais. De músico só conheci bem Ernesto Nazareth e Carlos Gomes. Gente finíssima.

            – Por isso fundou a academia, eu sei. Até pra dissimular sua mulatice.

           

VIDA E LITERATURA

            – Você tem razão, Liminha. Eu tinha vergonha de ser mulato. Por isso me vestia na Rua do Ouvidor, me comportava tão bem e escolhia a dedo as companhias.

            – Deve ter sido bem chata a sua vida. Tendo de disfarçar, quero dizer. Já eu sempre fui pobre, rebelde e nunca escondi. Até que tentei melhorar de vida, mas a bebida, a doidice, sabe como é? Havia sempre um empecilho.

            – Pois eu melhorei. Devagar, por ter nascido pobre também, mas aos trancos e barrancos fui subindo. Eu era disciplinado, Liminha. Disciplinado e esforçado. Toda a vida quis ser importante, reconhecido. Batalhei muito por isso.

            – Meu caso foi diferente. Eu gostava mesmo era de briga. Contra o preconceito, contra a pobreza, contra os figurões. Passei metade da vida brigando.

            – E de que adiantou tanta briga? Você vivia bêbado ou doente ou no hospício. Nunca teve um pouco de tranquilidade, teve, Liminha?

            – Pra ser sincero, não tive não, Machadinho. Nem pra escrever minha literatura eu tive sossego. A briga era mais importante que o estilo. Ou como diriam uns críticos babacas mais tarde, o conteúdo, para mim, era mais importante do que a forma.

 

FORMA E CONTEÚDO

            – Sei como é, Liminha. Sabe que isso nunca me preocupou? Meu aprendizado literário foi longo e sofrido. Carolina muito me ajudou. Ela era mais culta do que eu, trouxe livros de Portugal como quem traz riquezas. A riqueza dela era a cultura.

            – Também não me preocupei, Machadinho, mas os tais críticos se importavam. Eram meus maiores inimigos. Os brancos, então… Disfarçaram o racismo dizendo horrores de meus livros. Só que nunca liguei. Escrevi o que quis e como quis. Azar deles.

            – Pois eu me preocupei bastante. Quando publiquei um dos primeiros poemas e fui hostilizado, passei três noites sem dormir. Tive pesadelos horríveis. Jurei nunca mais deixar o rabo de fora. Jurei ser o maior escritor do país.

            – E você conseguiu, Machadinho. Sei de muita gente que não gostava de seus livros, mas era por ignorância. Outros diziam que você só gostava de fofoca.

            – Escrevi o Brás Cubas como provocação. As memórias de um sujeito depois de morto tinham de causar rebuliço, como de fato causaram. Foi uma guinada que eu dei, um avanço no que escrevera até então. Botei pra quebrar.

 

PELO AVESSO

            Lima Barreto coçou a cabeça grisalha.

            – Sei disso, Machadinho. Fiquei quase maluco quando li o Brás Cubas. Pensei: “Que diabo o Machadinho está querendo com esse livro?” Só depois de reler os anteriores compreendi o salto que você estava dando na direção do realismo, por incrível que pareça. E logo com um livro que, aparentemente, nada tem de realista.

            – Foi o paradoxo que criei nessa época. Depois dele eu podia fazer qualquer coisa que quisesse que ninguém ia se espantar. Foi meu grito de independência literária.

            – Bem que eu gostaria de ter feito o mesmo, mas fiquei foi distribuindo socos e pontapés. Em quase tudo o que escrevi. Só no fim da vida percebi que brigar por causa de literatura era besteira. Um beco sem saída. Quem gosta de você, gosta. Quem não gosta, nunca vai gostar.

            – Tive mais amigos do que você, Liminha. Principalmente tive Carolina. Ela me dava a mão toda vez que eu vacilava, porque sempre fui um fraco, confesso. Se não fosse ela, não sei não. Talvez eu não tivesse chegado a lugar nenhum.

            – Eu pensei em tentar a academia, mas aí já era tarde. A cabeça não ajudava mais. Tinha crises tremendas. Delírios. Internações. Até pensei em te procurar, mas aí soube da sua morte. Sabe que fui ao enterro? Tinha gente que não acabava mais!

            – Acompanhei tudo, Liminha. Assisti minha morte, os preparativos, os discursos, a longa procissão, o enterro – e a noite escura, até que me acostumei.

            – Com o silêncio e os grilos, não foi? Grilos e silêncio.

            – Pois é. E quando acabei de morrer, pensei: “Que alívio ficar livre da vida! Que ótimo não ter mais de respirar! Como é bom olhar tudo de fora, e tudo compreender”. Engraçado, mas só depois de morto compreendi a vida. Literatura? Bah!

            – Olha lá, Machadinho, como a lua continua bonitona. Vamos fazer uma serenata?

            – Vamos, Liminha. Escolha a música e vamos cantar. Agora que compreendemos tudo, podemos cantar em paz. Quem sabe umas garotas bonitas vêm desafinar com a gente?

Sebastiao Nunes

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador