Nicodemos Nunes: o resgate de um soldado desconhecido da Segunda Guerra Mundial, por Sebastião Nunes

por Sebastião Nunes

          O Brasil rompeu relações diplomáticas com os países do Eixo em janeiro de 1942. Em agosto, declarou-lhes guerra. Em 6 de dezembro, o general Mascarenhas de Moraes visitou a Itália e o norte da África. Em 31 de março e 24 de maio do ano seguinte, as tropas desfilaram, sob comovente apoio popular, pelas ruas do Rio de Janeiro. Em julho de 1944, partiram para a Europa os primeiros combatentes. Em fevereiro de 1945, seguiram os últimos. Em agosto, voltaram vitoriosos os expedicionários, desfilando sob delirante aclamação popular. O balanço da participação brasileira mostra que morreram 454 pracinhas, 14 de identidade desconhecida. Extraviaram-se – e nunca foram encontrados – 23 praças. Um dos soldados, por motivos desconhecidos, suicidou-se no acampamento de Lucky Strike, em Saint-Valéry, França, enfiando na boca o cano do fuzil e disparando o gatilho com o dedão do pé direito. Foi reconhecido pelos documentos de combate e por uma carta de despedida à mulher. Tinha 21 anos e chamava-se Nicodemos Nunes.

            Partira Nicodemos no último escalão, torto varapau de um metro e oitenta e cinco, tão magro como o fuzil que empunhava, tão triste quanto a cor do patriótico uniforme.

            Chegou à Itália no dia 22 de fevereiro e casou-se por procuração 12 dias depois da chegada, enfiando na manhã seguinte o fuzil na boca, quando patrulhava um pouco além das linhas brasileiras. Deram-lhe uma cruz e um túmulo, mas nunca houve nada dentro do caixão, exceto pedacinhos de pano sujos de terra e sangue, pois o capelão se opôs ao enterro cristão do desfigurado cadáver, que ocupou um buraco cavado às pressas na encosta de uma colina coberta de capim-de-burro.

            – Não, ninguém percebeu nada. – disse o sargento de seu pelotão. – Ele era fechadão, mas todo mineiro é assim mesmo, não é? – concluiu o sargento, que era carioca.

            Nicodemos era alto e magro, ela era mediana e gostosa, formando os dois até que um par legal, pelo que comentavam a vaga voz os vizinhos mexeriqueiros. E diziam de esfregações, ergueres de saias e anáguas, brilhos de coxas, vislumbres de seios, o possível e o impossível naqueles tempos pré-pré-liberação sexual.

            – Batia muita punheta. – disse o cozinheiro pernambucano do regimento, que dormia perto dele. E acrescentou, rindo:

            – Era a única coisa que fazia com verdadeiro prazer.

            Chamado a defender uma pátria de cuja existência mal se lembrava, Nicodemos partiu e por lá, em sua primeira e última viagem de turismo, sumiu. Ficou ela viúva perante a lei. Depois a guerra acabou, o povo esqueceu a guerra, os historiadores peneiraram as pepitas maiores, deixando escapar as pequenas e a simples poeira, e ela, a viúva-virgem, se casou com o dono do armazém da esquina.

            – Era bonitão. – disse a mulher gorda, visivelmente contrafeita, um cigarro no canto da boca e dois meninos pelados agarrados à saia.

 

**********

 

            Enfiado numa ampla túnica branca fora de moda, Sebunes Nastião instalou-se na posição de Lótus, apertou um baseado também fora de moda, botou no vídeo uma irritante ópera minimanimal de Philip Glass e concentrou-se, no vão esforço de desvendar os mistérios últimos do Universo.

            Como quem não quer nada e andando de costas, surgiu das águas turvas do passado a figura alta e magra de Nicodemos Nunes, vestido em uniforme de campanha, com o cano do fuzil enfiado na boca.

            – Alto lá, meu chapa! – bradou Sebunes. – Quem nasceu pra cucurbitácea nunca chega a umbelífera!

            Nicodemos, decepcionado com a fria e olericultural recepção do sobrinho, apertou o gatilho e desapareceu na explosão, ficando o tampo de seu crânio a girar no espaço, como se fosse um disco voador. Na sonitelífera, uma mulher gordíssima se contorcia dos pés à cabeça, cacarejando em êxtase, enquanto a orquestra repetia com estridência as mesmas três ou quatro notas. Sebunes terminou o baseado, trocou a ópera fina por um concerto grosso do velho Vivaldi, e voltou à posição clássica dos budas, gordos ou magros.

            Densa neblina se formou na sala. Aos poucos, a imagem de uma caravela apontou no horizonte, a mais ou menos duas léguas dali. Sebunes piscou. Foi o bastante: num vapt-vupt de causar inveja à luz, surgiu diante dele, imponente e com jeito de valentão, o destemido Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, um de seus mais ilustres antepassados. Passeando arrogante pela coberta, o herói da família atirou-lhe velhíssimo alfarrábio, onde Nastião, sob os olhos despeitados de Nicodemos, que voltara para recuperar a calota craniana, pôde ler o seguinte, traduzido em português moderno:   “Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, descobridor, governador e aventureiro (Jerez, 1500 – Sevilha, 1560), era homem de família aristocrática”.

            Nesse ponto Nicodemos tossiu discretamente, como que aprovando as próprias origens, sendo Sebunes obrigado a silenciá-lo com um beliscão.

            Tendo participado da desastrada expedição à Flórida (1527-1536), foi um dos quatro sobreviventes dos quatrocentos homens que a compunham. Sua “Relação da expedição” (1542) criou na Espanha a noção da riqueza do Novo México. Retornou à Espanha em 1537 e em dezembro de 1540 partiu para Cádiz, desembarcando na ilha de Santa Catarina em março de 1541. Seguiu por terra até Assunção do Paraguai em março de 1542.

            Cabeza de Vaca vinha como adelantado ou governador da Província do Rio da Prata. Foi destituído e aprisionado em consequência de um motim, durante um ano. Em março de 1545 foi enviado à Espanha, processado, condenado, desterrado para Orã, indultado e nomeado Juiz em Sevilha, onde terminou seus dias.

            Com estrepitoso minuto de silêncio, Nicodemos e Nastião homenagearam, quatrocentos e tantos anos depois, o notável ancestral, honra e glória – embora um tanto diluídas – dos Nunes brasilianos.

 

Notas:

            1) Verbete requentado da minha “História do Brasil – novos estudos sobre guerrilha cultural e estética de provocaçam”, publicada pela Editora Altana em 2000.

         2) Intervenção sobre dois dos inúmeros monumentos ao Soldado Desconhecido, esse ilustre e miserável defunto anônimo que passeia, de madrugada, pelas ruas desertas do mundo.

Sebastiao Nunes

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador