No dia em que Xantipa, diante de Sócrates, detonou “A República” de Platão
por Sebastião Nunes
Xantipa estava fritando uma omelete de capim-gordura quando Sócrates, todo serelepe, entrou na cozinha com um desconhecido de ombros largos.
– Xana, amor da minha vida, veja só quem é meu novo discípulo!
Sorridente, o novo discípulo se curvou e beijou a mão engordurada de Xantipa, que não gostava de frescura e torceu o nariz.
– Encantado, minha senhora – disse o de ombros largos. – O professor Sócrates sempre elogia a senhora, principalmente na cozinha.
– Só na cozinha não, Xana, te elogio também na cama, na horta, na filosofia e até quando fica brava e me dá umas vassouradas.
– Na filosofia também? – estranhou o recém-chegado. – Não sabia que a senhora era filósofa.
– E filósofa das boas – intrometeu-se Sócrates. – Se dou mole ela me passa para trás. Precisava ver ela discutindo a quadratura do círculo com Diógenes.
Os dois se abancaram, Sócrates serviu uma taça de cicuta para cada um, Xantipa tirou a omelete do fogo e serviu três pratos, acompanhados por um guisado de abóbora de porco, um pouco de sopa negra espartana e pão de centeio de Tebas.
– Espero que gostem – disse ela, emborcando sua taça de cicuta e imediatamente enchendo outra. – Sócrates não me avisou que tinha convidado.
– Bobagem, querida Xana, aqui meu amigo Platão é nobre, mas não é luxento.
Sem mais delongas, emborcaram as taças de cicuta e atacaram as omeletes.
FALANDO SÉRIO
– Saiba, minha querida Xana, que Platão é bem mais do que um discípulo – disse Sócrates de boca cheia. – Posso assegurar que é um filósofo de muito futuro.
– Ora, não exagera, mestre – disse modestamente Platão, emborcando sua taça de cicuta e servindo-se outra. – Sou apenas um ouvinte atento.
– Além de aristocrata é cheio da grana – continuou Sócrates, emborcando a cicuta e servindo-se outra taça. – E acaba de terminar os dez livros de sua grande obra “A República”, que irá revolucionar a filosofia ateniense.
Xantipa engoliu um pedaço de omelete, mordeu um pedaço de pão, virou a taça de cicuta e serviu-se outra. Sem dizer uma palavra. Só assuntando.
– Imagine que, nesse livro pretensioso e brilhante, Platão analisa praticamente tudo relacionado com os estados modernos, de leis a ética, passando pelos bons e maus regimes políticos, que discute em profundidade e com agudeza, e ainda vai mais longe, propondo detalhadamente novos métodos de educação e governo.
– Bobagem – resmungou Xantipa. – Pretensioso, pode ser, mas nada vejo nele de brilhante.
Platão arregalou os olhos, espantado, mas Sócrates não se deixou levar.
– Ora, minha adorada Xana – argumentou Sócrates –, como pode negar ao livro todo o brilhantismo que certamente terá, se nada conhece dele?
– Claro que conheço, maridão – ripostou na bucha Xantipa. – Ou será que você decidiu ignorar meus conhecimentos?
REVELANDO O IRREVELADO
Sócrates emborcou sua taça de cicuta, servindo-se imediatamente outra. Coçou a cabeça e virou-se para Platão, que também emborcou sua taça e serviu-se outra.
– Talvez ela tenha razão – concordou Sócrates, mastigando a sopa negra, dura que nem rapadura. – Xana estudou adivinhação com Tirésias, sabe quem é?
– Sei – respondeu prontamente Platão, emborcando sua taça e servindo-se outra. – Tirésias foi um famoso profeta cego da Odisseia, de Homero. Mas até onde sei, está morto e enterrado há séculos.
– Aí é que está! – explodiu Sócrates. – Não está morto nem enterrado, está mais vivo do que eu ou você. E dando aulas, cara, e arrebanhando discípulos!
– Mas o que é que ele ensina? – indagou Platão, mordendo um naco de pão.
Calada até então, Xantipa resolveu intervir:
– Ensina tudo, se você quer saber. Ensina a ler o futuro, a prever o futuro e até a saber como exatamente será o futuro.
– E daí? – indagou Platão, emborcando sua taça, mastigando um pedaço de omelete e servindo-se outra dose.
– Daí que seu livro, Platão, que se tornará famosíssimo, será utilizado como base para milhares de outros, de filosofia, política, sociologia, história, o diabo a quatro.
Sócrates emborcou sua taça e serviu-se outra.
Platão emborcou sua taça e serviu-se outra.
Xantipa emborcou sua taça, serviu-se outra, e continuou arengando:
– Ilusão de vocês se acham que a filosofia mudará o mundo. Querem um exemplo? Dentro de dois mil e setecentos anos, mais ou menos, e durante pelo menos duzentos anos, o mundo estará mais perdido do que peido em ventania.
Em silêncio, todos emborcaram suas taças e serviram-se outras.
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