“O Diário Íntimo de Lima Barreto e a denúncia do racismo”, por José Carlos Ruy

Enviado por Gilberto Cruvinel

A ligação de Lima Barreto (1881-1922) com a luta do povo foi múltipla. Escritor que retratou a opressão cotidiana, simpatizou com o anarquismo e foi um dos propagandistas brasileiros da Revolução Russa de 1917. Escritor inquieto, sofreu e enfrentou o preconceito racial.

Lima Barreto foi um escritor e jornalista brasieliro

Por José Carlos Ruy

Do Portal Vermelho

Seu Diário Íntimo (publicado postumamente, em 1953) é um relato humano e sensível da consciência que tinha do absurdo que é separar os homens pela cor de sua pele, considerar inferiores aqueles de pele mais escura. E também uma comovente denúncia do racismo.

Leia trechos da obra:

Diário Íntimo

Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, mereceu-me reparo. Ia eu pelo corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado dirigiu-se a mim, inquirindo-me se era contínuo. Ora, sendo a terceira vez, a coisa feriu-me um tanto a vaidade, e foi preciso tomar-me de muito sangue frio para que não desmentisse com azedume. Eles, variada gente simples, insistem em tomar-me como tal, e nisso creio ver um formal desmentido ao professor Broca (de memória). Parece-me que esse homem afirma que a educação embeleza, dá, enfim, outro ar à fisionomia. Porque então essa gente continua a me querer contínuo, porque? Porque… o que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tomado por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-me-á grande. Era de perguntar se o Argolo, vestido assim como eu ando, não seria tomado por contínuo; seria, mas quem o tomasse teria razão, mesmo porque ele é branco. Quando me julgo — nada valho; quando me comparo, sou grande. Enorme consolo

Um escritor, um literato, apresenta ao público, ou dá publicidade a uma obra; até que ponto um crítico tem o direito de, a pretexto de crítica, injuria-lo?

Um crítico não tem absolutamente direito de injuriar o escritor a quem julgar.


Não se pode compreender no nosso tempo, em que as coisas do pensamento são mostradas como as mais meritórias, que um cidadão mereça injúrias, só porque publicou um livro. Seja o livro bom ou mau. Os maus livros fazem os bons, e um crítico sagaz não deve ignorar tão fecundo princípio.

Ao olhar do sábio, o vício e a virtude são uma mesma coisa, e ambos necessários à harmonia final da vida; ao olhar do crítico filósofo, os bons e maus livros se completam e são indispensáveis à formação de uma literatura.

Se o crítico tem razões particulares para não gostar do autor, cabe-lhe unicamente o direito de fazer, com a máxima serenidade, sob o ponto de vista literário, a crítica do livro.

Dizem que o amor faz grandes obras. O ódio também poderá faze-las; mas, para isso, como no caso do amor, é preciso conter-se. No domínio do pensamento, as paradas de sentimento são extraordinariamente fecundas.

Em geral, ao começar, o temperamento literário é delicado, é fraco, é semifeminino, diga-se, e ninguém poderá prever sob que aspecto, sob que forma, a injúria vai reagir nele.

Balzac, Lord Rhoone, se houvesse sido injuriado, chegaria a ser o Honoré de Balzac do Père Goriot?

Em resumo, se o crítico ama as coisas do pensamento, e sobretudo estas, deve ter sempre em mira a sua prosperidade; e, creio, a injúria não é o melhor meio para obtê-la.

Os negros fizeram a unidade do Brasil.

O negro é recente na terra. Os negros, quando ninguém se preocupava em arte no Brasil, eram os únicos (O. Duque, Arte Brasileira).

Os produtos intelectuais negros e mulatos, e brancos, não são extraordinários, mas se equivalem, quer os brancos venham de portugueses, quer de outros países.

Os negros diferenciam o Brasil e mantêm a sua independência, porquanto estão certos que em outro lugar não têm pátria.

Se um viajante, sábio etc. etc., sem saber a história do passado, fosse visitar os árabes atuais, negaria qualquer capacidade intelectual a eles.

A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori.

A energia só se tem revelado depois de lenta submissão (hunos, plebe romana, bárbaros em geral).

A coragem é da mesma maneira. O português, que é humilde entre nós, é um povo valente; o fim a que se propõe, obriga-o a curvar-se.

Discutindo a incapacidade mental desta ou aquela raça, temos o ar de dizer com o poeta grego — os bárbaros, gente vil que não ama a filosofia e ciências; ele se dirigia ao avô de Kant e ao tio de Descartes.

Se a feição, o peso, a forma do crânio nada denota quanto a inteligência e vigor mental entre indivíduos da raça branca, porque excomungará o negro?

Os árias, quando no plateau da Bactriana, nada valiam; emigrando, após séculos de fermentação, brilharam numa cultura superior; porque os negros, transportados de África pelo tráfico, não desenvolverão uma civilização ou concorram para ela? Esse fenômeno de mudança de habitat é importante para o estudo.
A ciência é um preconceito grego; é ideologia; não passa de uma forma acumulada de instinto de uma raça, de um povo e mesmo de um homem.

Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer em vida comum com eles, pelo menos com os que vivo, que, sem reconhecerem a minha superioridade, absolutamente não têm por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizesse obedecer cegamente. Entretanto, é por meu pai e, por assim ser, levarei a cruz ao Calvário, pois que, se meu pai fez tal coisa, foi por supor que nunca nos atingiria, mas a desgraça não quis e a coisa nos atingiu.

O filho da tal negra despediu-se do emprego em que o pus para ficar em casa escrevendo versos.

É o que se dá comigo e me faz dia e noite sangrar de dor.

Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal forma nuançosa a razão de ser disso, que para bem ser compreendido exigiria uma autobiografia, que nunca farei. Há coisas que, sentidas em nós, não podemos dizer. A minha melancolia, a mobilidade do meu espírito, o cepticismo que me corrói — cepticismo que, atingindo as coisas e pessoas estranhas a mim, alcançam também a minha própria entidade —, nasceu da minha adolescência feita nesse sentimento da minha vergonha doméstica, que também deu nascimento a minha única grande falta.

Hoje, pois, como não houvesse assunto, resolvi fazer dessa nota uma página íntima, tanto mais íntima que é de mim para mim, do Afonso de vinte e três anos para o Afonso de trinta, de quarenta, de cinquenta anos. Guardando-as, eu poderei fazer delas como pontos determinantes da trajetória da minha vida e do meu espírito, e outro não é o meu fito.

Aqui bem alto declaro que, se a morte me surpreender, não permitindo que as inutilize, peço a quem se servir delas que se sirva com o máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo eu poderia ter vergonha.

Veio-me à idéia, ou antes, registro aqui uma idéia que me está perseguindo. Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e maior sopro de epopeia. Animará um drama sombrio, trágico e misterioso, como os do tempo da escravidão.

Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira que esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra-prima, adiá-lo-ei para mais tarde.

Temo muito pôr em papel impresso a minha literatura. Essas ideias que me perseguem de pintar e fazer a vida escrava com os processos modernos do romance, e o grande amor que me inspira — pudera! — a gente negra, virá, eu prevejo, trazer-me amargos dissabores, descomposturas, que não sei se poderei me pôr acima delas. Enfim — “une grande vie est une pensée de la jeunesse réalisé par l’âge mür”, mas até lá, meu Deus!, que de amarguras!, que de decepções!

Ah! Se eu alcanço realizar essa ideia, que glória também! Enorme, extraordinária e — quem sabe? —uma fama europeia.

Dirão que é o negrismo, que é um novo indianismo, e a proximidade simplesmente aparente das coisas turbará todos os espíritos em meu desfavor; e eu, pobre, sem fortes auxílios, com fracas amizades, como poderei viver perseguido, amargurado, debicado?

Mas… e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça a que pertenço.

Tentarei e seguirei avante. “Alea jacta est”.

Se eu conseguir ler esta nota, daqui a vinte anos, satisfeito, terei orgulho de viver!

Deus me ajude!

É incrível a ignorância dos nossos literatos; a pretensão que eles possuem não é secundada por um grande esforço de estudos e reflexão. Presumidos de saber todas as literaturas, de conhecê-las a fundo, têm repetido ultimamente as maiores sandices sobre o Gorki, que anda encarcerado na Rússia, por motivo dos levantes populares lá havidos.

Há dias, conversando com o Tigre, ele me disse que esse Gorki nada valia — escrevera uns contos, coisas de fancaria socialistica. É incrível, mas é verdade.

Quando eu lhe disse que o Máximo tivera o Prêmio Nobel, ele se admirou — não sabia.

Entretanto, Tigre é uma das esperanças da geração moderna.

Domingos, bom rapaz, algo mais ilustrado que a maioria dos novéis literatos, cerebrino autor do Sê Feliz, vai fazer um discurso sobre o Bordalo Pinheiro.

Não acredito que essa coisa do Bordalo seja sincera. Como caricaturista, ele era um pesadão, a sua caricatura era alguma coisa barroca, com os motivos portugueses desgraciosos, folhas de parra, pipas de vinho, suínos, etc. etc.

Desenhista, eu o não conheço. O que se salva nele é o ceramista, e esse só alcança a Portugal, com quem, eu penso, ele não há de querer repartir a glória. Sendo assim, é positivamente idiota e sem razão essa manifestação que lhe vão fazer.

Eu tenho notado nas rodas que hei frequentado, exceto a do Alcides, uma nefasta influência dos portugueses. Não é o Eça, que inegavelmente quem fala português não o pode ignorar, são figuras subalternas: Fialho e menores.

Ajeita-se o modo de escrever deles, copiam-se-lhes os cacoetes, a estrutura da frase, não há dentre eles um que conscienciosamente procure escrever como o seu meio o pede e o requer, pressentindo isso na tradição dos escritores passados, embora inferiores. É uma literatura de concetti, uma literatura de clube, imbecil, de palavrinhas, de coisinhas, não há neles um grande sopro humano, uma grandeza de análise, um vendaval de epopéia, o cicio lírico que há neles é mal encaminhado para a literatura estreitamente pessoal, no que de pessoal há de inferior e banal: amores ricos, mortes de parentes e coisas assim. A pouco e pouco, vou deixando de os freqüentar, abomino-lhes a ignorância deles, a maldade intencional, a lassidão, a covardia dos seus ataques.

Fui ontem a São Gonçalo. É um município limítrofe ao de Niterói. Fui à casa do Uzeda. Uzeda é um segundo oficial da Secretaria da Guerra, casado com uma professora pública do lugar.

Embarquei às oito e meia no Largo do Paço; fazia uma manhã quente e feia, ensombrada denuvens. Encontrei o Pinho, um meu antigo colega da Escola Politécnica. Vinha de exercícios práticos.

Soberbamente insuportável. Indagando da produção do município, não me soube informar com simplicidade. Atribuiu a falta da lavoura à indolência do povo. Tive vontade de perguntar se ele, engenheiro, tendo estudado a química, física e história natural, dava um exemplo salutar, cultivando o sítio onde morava. Calei-me, e foi dizendo bobagens. Fez uma crítica severa às tarifas do Tramway Rural Fluminense. É isto uma pequena estrada de ferro, com carros abertos ao jeito de bondes, que liga as Neves ao município de São Gonçalo. E uma coisa tosca, necessariamente exigindo para a sua manutenção uma série de medidas empíricas, que a prática dita; o idiota do Pinho quer que ela se guie pelos princípios tarifários que regem os fretes das grandes vias-férreas. Disse-me coisas proveitosas, que, por exemplo — o esforço da tração era o mesmo na descida que na subida. É profundo.

As Neves não tiveram, para os meus olhos, nada de notável. Têm o aspecto comum dos nossos postos afastados e edificados. Casas baixas, pintadas de azul, de oca; janelas quadradas; espessas escadas de tijolos e pedras, que dão acesso a portas baixas; fisionomias indolentes de homens pelas portas das vendas; mulheres: negras, brancas e mulatas — tristes, de longos olhares, em que há desejos de volúpias e sonhos de festas, de bailes, fantásticos, de envolvedoras agitações de todo o corpo, capazes de as fazerem esquecer e quebrar a monotonia daquela vida pobre e triste que levam, tão parecida ainda com a senzala, em que o chicote disciplinador de outrora ficou transformado na dureza, na pressão, na dificuldade do pão nosso de cada dia.

Tomei o tramway. Fui vendo o caminho. A linha é construída sobre a velha estrada de rodagem. Em breve, deixamos toda a atmosfera urbana, para ver a rural. Há casas novas, os chalets, mas há também as velhas casas de colunas heterodoxas e varanda de parapeito, a lembrar a escravatura e o sistema da antiga lavoura. Corre o caminho por entre colinas, há pouca mata, laranjeiras muitas, algumas mangueiras.

Eu, olhando aquelas casas e aqueles caminhos, lembrei-me da minha vida, dos meus avós escravos e, não sei como, lembrei-me de algumas frases ouvidas no meu âmbito familiar, que me davam vagas notícias das origens da minha avó materna, Geraldina . Era de São Gonçalo, de Cubandê, onde eram lavradores os Pereiras de Carvalho, de quem era ela cria.

Lembrando-me disso, eu olhei as árvores da estrada com mais simpatia. Eram muito novas; nenhuma delas teria visto minha avó passar, caminho da corte, quando os seus senhores vieram estabelecer-se na cidade. Isso devia ter sido por 1840, ou antes, e nenhuma delas tinha a venerável idade de setenta anos. Entretanto, eu não pude deixar de procurar nos traços de um molequinho que me cortou o caminho, algumas vagas semelhanças com os meus. Quem sabe se eu não tinha parentes, quem sabe se não havia gente do meu sangue naqueles párias que passavam cheios de melancolia, passivos e indiferentes, como fragmentos de uma poderosa nau que as grandes forças da natureza desfizeram e cujos pedaços vão pelo oceano afora, sem consciência do seu destino e de sua força interior.

Entretanto, embora enchesse-me de tristeza o seu estado, eu não pude deixar de lembrar-me, sem algum orgulho, que o meu sangue, parente do seu, depois de volta de três quartos de século, voltava àquelas paragens radiante de mocidade, saturado de noções superiores, sonhando grandes destinos, para ser recebido em casa de pessoas que, se não foram senhores dele, durante algum tempo, tinha-o sido de outrem da mesma origem que o meu.

Eu vi também pelo caminho uma grande casa solarenga, em meio de um grande terreno, murado com um forte muro de pedra e cal. Estava em abandono, grandes panos do muro caídos e as aberturas fechadas com frágeis cercas de bambus. Eu me lembrei que a grande família de cuja escravatura saíra minha avó, tinha se extinguido, e que deles, diretamente, pelos laços de sangue e de adoção, só restavam um punhado de mulatos, muitos, trinta ou mais, de várias condições, e eu era o que mais prometia e o que mais ambições tinha.

Ela fora mais caipora do que aquele muro sólido, porque extinguira-se, caíra de todo e não deixara da sua linha direta nenhum rastro.

Cheguei à casa do Uzeda.

Antes vi a vila. Há uma grande rua principal, com uma imensa matriz a cavaleiro dela, e toscas casas que a arruam. O trem passa embaixo e, junto ao paço municipal, é macadamizada. A câmara municipal é um caixão ignóbil. Não sei porque nós não sabemos fazer esses edifícios com o gosto que os arquitetos da Idade Média faziam os dos seus burgos. Que infâmia é a que vi! Entretanto, é moderna, tem menos de vinte anos. A capela tem o acabamento das torres em pirâmide; é sem gosto e soturna; não há uma casa com sentimento, e a gente tem o que ver, apenas nas das colunas, em que a escravidão pôs seus sofrimentos e as suas recordações.

A mulher do Uzeda é rapariga anêmica, dessas nossas que a mocidade sabe dar um brilho singular com a sua fragilidade, mas que a maternidade e o tempo empanam e estiolam de modo lastimável. É morena, de curtos cabelos. Rosto em V, bom, para um rapaz inteligente, e que nela, com seus hábitos de paciência que o professorado dá, empresta uma singular fisionomia de freira, que o olho direito mais estreito faz quebrar com certa canalhice.

Redação

15 Comentários

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  1. Lima Barreto, meu broche de cristal

    Adoro seus textos. Já escrevi que Clara dos Anjos é meu preferido. Mas gosto de tudo: seus contos e crônicas são histórias que me provocam profundo prazer:ácido, doce, crítico, analítico, mordaz e sofrido. Enfim …. do melhor sabor”

  2. Salve, Lima Barreto. Salve,José Carlos Ruy

    Ótima recuperação do Diário De Lima Barreto por José Carlos Ruy, intelectual comunista e editor do Vermelho.

    Do Diário destaco a frase que Lima Barreto cita: “une grande vie est une pensée de la jeunesse réalisé par l’âge mür”,

    Beleza ímpar. Eu não a conhecia nas palavras acima, mas ela vem sendo um norte para os personagens no romance que  escrevo. 

  3. Na mesma época em que Lima

    Na mesma época em que Lima Barreto se julgava vitima de racismo outro mulato como ele, Nilo Peçanha, ascendia à Presidencia da Republica.

    1. Mas que diferença

      Mas que diferença do papel que tiveram na sociedade da época. Lima Barreto fez da literatura e do jornalismo uma frente de combate contra a sociedade de classes.

      Mais: não é possíevl que o relato autobiográfico seja uma invenção maluca.  

    2. Lima Barreto ousou enfrentar o establisment

      André,

      Lima Barreto comprou uma briga frontal com o poderoso Correio da Manhã quando escreveu o romance “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, no qual o jornal e seu diretor são retratados de maneira impiedosa e Lima Barreto tem então seu nome proscrito da imprensa carioca. Acrescente-se a isso o evidente racismo que graçava naquela sociedade de escravidão recém abolida.

      Portanto, um negro que ousou afrontar o establishment e a mídia da época. Se hoje, somos testemunhas oculares do que ocorre com aqueles que ousam ir contra a ditadura do pensamento único de nossa mídia, imagina o que era isso no início do século XX. Não consta que Nilo Peçanha tenha sido um crítico dos costumes e da imprensa.

      1. E porque atacou o Correio da

        E porque atacou o Correio da Manhã, jornal liberal e menos conservador do que outros, tanto que foi fechado após o movimento de 1964, se ele comprava briga é claro que deveria prever as consequencias. Na mesma época outro mulato chegava ao topo da carreira no Itamaraty, Domicio da Gama (nascido Domingos Forneiro), ex-Embaixador em Washington era nomeado Ministro das Relações Exteriores, logo na Casa de Rio Branco, epicentro da aristocracia.

  4. Dois casos de racismo no Banco do Brasil

    Dois casos de racismo no Banco do Brasil

    1.                            1975-1977 – Na CACEX – Carteira de Comércio Exterior da agência de Ponta Porã (MS) havia um cargo de  Correspondente em Línguas Estrangeiras, ocupado pelo M., mineiro de Santos Dumont, negro, casado com uma negra, 3 filhos pequenos. Possuidor de uma sólida cultura, conversar com ele era um deleite, ia de filosofia ao esoterismo, de uma educação e gentileza desconcertantes. Era da maçonaria, Rotary, Lions e da Ordem Rosa Cruz. Apesar de todos os predicados, não era nem de longe um reacionário, muito pelo contrário. Sua função era traduzir as mensagens (telex) e correspondências que chegavam em  inglês ou outro idioma. Em 1978, concorre ao cargo de Supervisor  indicando várias agências pelo país afora, e, desavisadamente, algumas na região Sul do Brasil. Foi nomeado para uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul que hoje conta com 21 mil habitantes, na região denominada de Alto Uruguai.

    Chegou no começo da semana, descarregou a mudança na casa previamente alugada por telefone, e foi trabalhar. Na primeira sexta-feira, como era hábito em cidades pequenas, os colegas todos e as famílias se reuniam na AABB. Ele chegou com a família, acomodou-se em uma mesa e começou a perceber um estranho movimento. Paulatinamente as pessoas ao lado começaram a se afastar e a mudar de mesa, todos se concentraram no canto oposto onde ele se encontrava com a família. O constrangimento era evidente. Ali o M. percebeu que tinha cometido um erro, um grande erro, talvez o maior da sua vida. Nenhum colega ou familiar de colega se aproximou para cumprimentar e dar as boas vindas, a alemãozada olhava para aquela família como se fossem extraterrestres. Até que entra em cena uma pessoa que não se conformava com o que estava presenciando, o grande e inesquecível o Caixa Executivo Flávio Roberto da Silva (Fleko), uma criatura humana como poucas neste mundo. Catou a então noiva pelo braço e sentou-se junto com o M. e ali ficou toda a noite, e tornou-se o grande amigo e referência para a família do M.  

    O M. ficou lá os dois anos regulamentares, era obrigado, do contrário teria de reembolsar o Banco das despesas com a mudança e a ajuda de custo recebida. Exatos dois anos após, M. , como supervisor, soltou a concorrência para Subgerente, só que desta vez foi precavido: de Minas Gerais para cima. Foi nomeado Subgerente para a agência em instalação em Ubatã (BA), e, num  gesto de reconhecimento e gratidão, indicou o nome do Fleko para o cargo de Supervisor na agência nova. A cena foi hilária. A Diretoria de  Funcionalismo liga de Brasília para o futuro Subgerente e consulta se ele não tem ninguém para indicar Supervisor, pois ninguém concorria para lá. Ele pediu um momento e perguntou para o amigo, dentro do caixa ocupado com o fechamento: “Flávio, você quer ser Supervisor em Ubatã, na Bahia? Sem se virar, o Flávio responde que sim, claro, e julgou tratar-se de brincadeira, não deu importância. Final do expediente, Flávio está indo embora, M. o chama e cumprimenta: “Parabéns, acabei de receber a confirmação de que vc foi nomeado”. E o Flávio, inocentemente “…mas eu pensei que fosse brincadeira!”. Tarde demais, recém-casado, o negócio agora era explicar em casa que iriam mudar-se para a remota Ubatã, onde cheguei dois antes da inauguração, 25.01.1980, na condição de adido, e dou de cara com o M. na Subgerência. Ele sabia que eu vinha, eu não sabia que ele estava lá.

    Entre um chimarrão e uma cerveja Polar, o Fleko foi me atualizando sobre os acontecimentos, afinal havia trabalhado com o M. entre 75/77, em Ponta Porã, e por puro acaso estávamos de novo trabalhando juntos. Dizia o Fleko, “…Juncal, o negão passou maus momentos lá no Sul, discriminado nas ruas, os filhos na escola, ele não via a hora de sair de lá, foi duro pra ele e a família”.

    A condição de negro do Maurício e família numa cidade eminentemente negra do interior da Bahia não foi nenhuma novidade. Curiosamente, a novidade na cidade passou a ser o gaúcho, o Fleko era ruivo, bem ruivo mesmo, barba grande, óculos grandes  fundo de garrafa, chamava a atenção onde passava. Mais uma cena hilária. Todos os dias ele saía para almoçar e passava no Correio, ou para postar cartas para os familiares, ou retirar encomendas. Sempre era seguido por um bando de molequinhos, todos negrinhos, virou a atração da cidade. Um dia, um daqueles que o seguia por toda parte, entrou no Correio e postou-se ao seu lado. E ele olhava de soslaio para o moleque. Aí o moleque não aguentou e cutucou: “moço, moço”. O que foi, moleque? E o moleque: “O senhor é brasileiro?”

     

    2.     Novamente Ponta Porã, entre 1978 e 1980. O Paraguai, país vizinho separado por uma faixa de terra de uns 80/100 metros, era um país paupérrimo, debaixo de uma ditadura feroz do Stroesner. Era comum os pais pegarem os filhos recém-nascidos e registrar do outro lado, no Brasil, em Ponta Porã. Era comum também se fazer a tradução do sobrenome, assim um Sosa virava Souza, um Fariña virava Farinha, e assim por diante. Era uma maneira de tentar um futuro melhor para os filhos, na condição de “brasileiros”. “Nascidos” no Brasil, mas criados do lado paraguaio da fronteira. Tínhamos um colega assim, de sobrenome traduzido, era um típico fronteiriço, pai e mãe paraguaios, o que se chamava de bugre, uma mistura de índio e negro. Não tinha nada de diferente, bastava uma volta pelas ruas e os traços indígenas iguais aos do colega saltavam para todos os lados. Campo Grande, a futura capital do novo Estado que iria surgir, era assim. O bugre era um sinônimo do futuro Estado do Mato Grosso do Sul. Além disso, era um baita amigo, aquele que, nascido e criado na fronteira, orientava os incautos e jovens paulistas a não entrar em roubadas na noite, e principalmente, nas madrugadas dos cabarés. Conhecia todos caminhos, vai por aqui, não vai por ali que é fria. Exímio futebolista, um craque, reforçava o fortíssimo time da AABB local. E boa praça, boa gente ao extremo, inteligente e tremendamente mulherengo.

    Até que um dia, R. decidiu aventurar-se pelo mundo. Cansou daquela vida na fronteira, nunca tinha morado em outro lugar e decidiu aventurar-se por outras paragens. A idéia (vou continuar acentuando até o dia do Juízo Final) era boa, o destino é que não foi dos mais felizes. Pediu transferência, a seco, para a aprazível cidade de Blumenau (SC). Por que não, pensou ele? Falam tão bem do Sul do Brasil, que é isso e aquilo outro, vou lá conferir. Raciocinou assim, tenho curso de Caixa Executivo, desgraçadamente entro no rodízio e trabalho no Caixa uns 15 dias por mês e assim, com o salário normal mais a comissão de caixa, dá para equilibrar as finanças, enquanto conheço o Brasil, começando por Blumenau. O que poderia dar errado no plano dele? Simples, não era louro e não tinha olhos azuis. Terrível engano.

    Meses depois, o colega Tião, que me passou o serviço quando cheguei em Ponta Porã, em 1975, está trabalhando, adido, no interior do Acre. E recebe uma ligação de Blumenau. Uma ligação sofrida, um apelo. Do outro lado da linha, o amigo bugre (os dois formavam uma dupla marcante na cidade) faz o relato da situação. Chegou em Blumenau e, de cara, foi rejeitado pelos colegas da agência. E também excluído do rodízio de caixa, o que o deixava exclusivamente com o salário, sem o acréscimo da comissão pela função de caixa substituto, foi discriminado com todas as letras. E mais, ninguém queria alugar casa para ele, conseguiu um barraco, barraco mesmo, no subúrbio do subúrbio do subúrbio de Blumenau. E caro, muito caro. Estava quebrado, passando necessidades, e pior, muito pior, não conseguia transferência para nenhum outro lugar para fugir daquele inferno que se tornara Blumenau, tinha feito uma besteira na vida. Claro que o Tião ajudou.

    Entre 94/95, na AABB de Ribeirão Preto, ente uma cerveja e outra, o colega Tião pergunta: “Lembra do nosso amigo bugre?” Claro, o que é que tem? E contou da infeliz ideia que um dia um mestiço de índio com negro teve de ir morar em Blumenau.

     

    O caminho é longo, falta muito ainda, mas não podemos jamais esquecer os notáveis avanços, apesar de sempre aparecerem umas tentativas de retrocesso. Os fatos acima aconteceram há mais de 30 anos, acho (tomara) que seriam impensáveis hoje, quero crer nisso. Moro ao lado do Mackenzie, cujo CA é presidido pela negra Tamires Gomes Sampaio, estudante de Direito e, como se fosse pouco, vice-presidente da UNE. Vejo ela passar direto vindo do Metrô República, ou caminhando pela rua Maria Antonia. Estou devendo a ela um abraço e de agradecer pelo trabalho político que ela desenvolve pela igualdade de direitos e contra o extermínio sistemático do povo preto e pobre das periferias. 

    1. Parabéns, Fernando J.

      Parabéns, Fernando. Relato vivo e vivido. Sobre o Banco do Brasil, acrescento mais uma: na Direção Geral em Brasília, à medida que os andares subiam, mudavam-se as pessoas, cores e raças. Isso na década de 90. Era o tempo em que Alexandre Garcia acumulava uam sinecura de cargo comissioando no banco, e não dava sequer as 6 horas regulamentares. Quando era visto. Dizia ele, cínico: “o que os outros fazem em 6, eu faço em duas”. 

      Cabra bom….

      1. exatamente, caro Urariano.

        exatamente, caro Urariano. quando estava em Ribeirão Preto tinha acesso irrestrito aos sistemas do Banco e vi coisas, inclusive a ficha do Alexandre Garcia 

  5. Grande Lima Barreto! Tão

    Grande Lima Barreto! Tão sofrido e tão genial quanto Machado de Assis, e tão menos reconhecido. Mas sem Fla-Flu, por favor!

    Pelas redes atuais, essa frase dele deveria ser divulgada, inclusive entre os comentaristas de blogues de esquerda e alternativos em geral:

    “Um crítico não tem absolutamente direito de injuriar o escritor a quem julgar.”

    E além do escritor: o compositor, cantor, pintor, desenhista, cineasta, etc…

     

  6. Há dias, conversando com o

    Há dias, conversando com o Tigre, ele me disse que esse Gorki nada valia — escrevera uns contos, coisas de fancaria socialistica. É incrível, mas é verdade.
    Quando eu lhe disse que o Máximo tivera o Prêmio Nobel, ele se admirou — não sabia.
    Entretanto, Tigre é uma das esperanças da geração moderna.

     

    Gente, isso foi escrito ontem! 

     

     

     

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