Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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O espelho da mulher nos dias, por Maíra Vasconcelos

Arte Jeremy Mann

O espelho da mulher nos dias, por Maíra Vasconcelos

Os olhos ficam um pouco caídos e dormentes diante do espelho. É um horror. O espelho até se parece a um objeto importantíssimo. Mas não é. Há uma certa distorção na aparência de todas as coisas que rodeiam o corpo da mulher quando está se virando. De novo, as constatações da minha vizinha, nos dias de sangue pisado. Todos os olhares frente ao espelho imprimem cansaço. Todos. Parece até maldade. Mas não é. É apenas o sangue pisado circulando alvoroço para além dos órgãos que corresponde.

Minha vizinha me contou que em casa retira todos os espelhos do lugar, e acha isso normal. Apenas para não esbarrar, sequer, consigo mesma. Depois, quando o sangue pisado vai embora, é como se nunca tivesse visto um sorriso refletido. Mal acredita, fica boba bambinha.

Estou prestes a anunciar que cada mulher constrói o próprio espelho nos dias de sangue pisado, isso que ninguém consegue ver, e que tampouco está refletido no espelho, não está: é apenas o olhar-da-mulher desenhando uma face dentro dela mesma. Uma nova face, um pouco real, um pouco fictícia. Não mostra nada nadinha de coerente nem de sensato. É tudo muito desviado e muito íntimo. Como se ousasse ter mais mais espelhos. Os espelhos vão se quebrando para caber um-dentro-do-outro. Entenderam?

É assim. Nos dias de sangue pisado, minha vizinha não suporta a face humana, nem a voz. Ela não olha nem fala em frente ao espelho. Também se recusa a subir-e-descer os degraus do prédio. Não suporta ver o outro que é ela mesma. Minha vizinha diz que sempre há um pedaço que é nosso vagando no outro. Sempre. Mas tem gente que se finge de cego. Ela finge que ficou presa no apartamento. Mas não é. Fica lá porque está funda de tanto cansaço, igual boi afundado no barro. E é apenas o peso do sangue pisado.

Ah. Depois ela irá dizer: não desça os degraus do prédio querendo conversar sobre filmes de arte, pior ainda se é aquele russo. Isso é minha vizinha, cansada, torcendo os ouvidos. Vão dizer que você está falando para ninguém. Não é bom falar demais sobre filmes de arte, espelhos e o tempo. Irão dizer que você não quer se comunicar.

É assim que minha vizinha implora pelo silêncio. O silêncio que pode ser visto no espanto-abafado das horas em frente ao espelho. Mas não em qualquer hora e nem todos os dias.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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