O infinito das águas, por Roberto Tardelli

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Do Justificando

O Grande Rio impressiona, é uma cena vista em sonhos desde criança. Um dia pareceu tão real que acordei com sons de pássaros, alguns que já vira cantar em Ribeirão Preto, outros que inventei, que inventava, mas que jamais imaginei pudesse ser real, que inventaria se não existissem; uma hiper-jungle de onde saíam seres de todas as formas, uns ferozes, outros desesperados, alguns atônitos e outros, com ar de superioridade, com o ar blasé dos felinos. Aves enormes multicoloridas se atiravam nas águas e capturavam peixes enormes, um duelo no espaço, sempre e sempre vencido pelo mais faminto.

O Grande Rio nos reduz a um ponto sobre o Nada e em suas águas passam milênios, milhões de anos de rochas lambidas, que vão depositando parte do queixo da evolução planetária, deixando aqui e ali uma escultura que lembra uma mulher ou um sentimento; suas águas são estranhamente escuras e limpas, não diria potáveis, mas águas livres de sedimentos humanos civilizados, caucasianos, que não conseguem entender de onde veio o Grande Rio, que na geografia onírica pode muito bem ter nascido em algum Grande Lago, misterioso, desconhecido, oculto, clandestinamente vivendo no meio de uma mata que cruzasse o Equador e o Trópico de Capricórnio.

O barco vence a correnteza do Grande Rio, uma estrada fluvial que muda seus sentidos e suas direções com a vontade dos deuses da floresta, silenciosos e vigilantes. O barco é o automóvel. O barco desliza sobre a mesa de águas escuras.  A floresta é real. Verde-Floresta. Floresta. Um peixe cor de rosa pula ao longe, quase em uma dimensão pictórica. Salta de novo e mais uma vez. A natureza o pintou: ele é verdadeiramente cinzento, o sol nas águas cristalinamente escuras produz uma cor nova, uma cor que desmaterializa o arco-íris e recria um quadro de Monet.

Quadro de Monet/Arquivo Pessoal

Quadro de Monet/Arquivo Pessoal

O Grande Rio tem seus tapetes, uma flor enorme o guarnece e perto dela, nas margens, doninhas brincam em um parque de diversões, tornando incontível a vontade ou necessidade de chorar.

Estamos próximos de algum lugar. O barco desacelera e um índio menino-homem vestindo camisa de time de futebol nos acena como se fôssemos velhos amigos. O Grande Rio é sua casa. Como os peixes, ali é sua sala de estar e seu quarto de dormir. Um sagui se enrola naquele que poderia ser o irmão do menino, ainda mais menino. São ambos muito fortes e cada um tem seu celular. Falam pelo celular. Vem chuva grossa e o Grande Rio pode mudar completamente seu desenho. Do norte do mundo, o Grande Rio tem endereço certo e missão determinada que é a de transformar-se em mar, o mar que eu vi separado por uma linha de rios que se encontram. O infinito está nas águas.

Caímos nas águas.

Infinito das águas/Arquivo Pessoal

Infinito das águas/Arquivo Pessoal

O boto/ Arquivo Pessoal

O menino brinca com uma isca de peixe. Agita o peixe em suas mãos e ri de uma felicidade intensa, tão intensa quanto desafiadora. No quieto das águas, aquele peixe gigante se aproxima de nós e nada conosco, brinca com o menino, são velhos e bons amigos. Tem nome, cada um dos milhares que chegariam tem nome. Aquele um trouxe outro peixe enorme. Botos. Passam por entre as pernas, tocam nossos corpos como quem nos tirasse para dançar.

Eles vêm e vão. Existem de verdade e soltos, livres, voltam porque os amigos índios os chamam para brincar. Não suportam o odor dos protetores solares, nem eles nem os botos, enorme de mais de duzentos quilos. O boto. Ele existe e eu o toquei. Vi de perto seus olhos e seu bico, mergulhei, tentando enxergar alguma coisa que as águas do Grande Rio mostrassem, mas somente ele, no escuro-chá da correnteza sabia mesmo para onde ir.

O boto. O boto. Sair de lá foi ter a sensação de que toquei alguma coisa além do boto.

Toquei com minhas mãos o infinito das águas.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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