“O Medo dos Bárbaros”, resenha do livro de Tzvetan Todorov

A morte do autor sugere uma releitura de sua obra.

Ontem publiquei aqui mesmo a resenha do livro “O Império e os Novos Bárbaros”. Hoje divulgarei a resenha de um livro mais recente que faz o contra ponto à obra de Jean-Christophe Rufin. Refiro-me, evidentemente, ao livro “O Medo dos Bárbaros” (La peur des barbares), de Tzvetan Todorov, editora Vozes.

Todorov procura desfazer vários equívocos e mitos que foram criados, nos últimos anos, em torno dos vocábulos “barbárie”, “civilização” e “cultura” e acerca das expressões “tradição ocidental”, “conflito de civilização” e “fundamentalismo islâmico” por autores como Samuel Huntington, Oriana Fallaci, Élie Barnavi, Alain Finkielkraut e, de certa maneira, Jean-Christophe Rufin. A crítica dos conceitos formulados pelos autores mencionados é muito detalhada, as definições propostas por Todorov são requintadas e complexas. “O Medo dos Bárbaros” evita o maniqueísmo.

“A barbárie resulta de uma característica do ser humano; aparentemente, seria ilusório esperar que, um dia, ela possa ser definitivamente eliminada. Portanto, para nós, a barbárie não corresponde a um período específico da história da humanidade, antiga ou moderna, nem a qualquer população que ocupasse uma região particular do Planeta: ela está em nós, assim como nos outros; nenhum povo, nem indivíduo, está imunizado contra a possibilidade de executar atos bárbaros.”

A existência e o respeito às normas gerais abstratas (às leis) há muito tem sido considerado um indicativo de civilidade. Fora da Lei só há barbárie disseram quase todos os juristas antigos, medievais e modernos. As sociedades civilizadas, porém, também fazem guerras. Por isto, o ápice da civilização seria o convívio pacífico das nações sob uma única Lei Internacional. Este objetivo foi conseguido com a criação da ONU. Desgraçadamente a própria ONU está sendo destruída neste momento.

A Lei Internacional negociada e aprovada pelas nações garante a soberania dos Estados membros da ONU e o sigilo das comunicações dos seus governantes e cidadãos. Esta regra geral e abstrata não tem sido respeitada pelos EUA, país que se colocou acima dos seus pares (e da própria Lei Internacional que seus diplomatas negociaram e ajudaram a redigir) quando escolheu usar a internet para espionar e vigiar todo mundo em todos os países. As revelações feitas por Edward Joseph  Snowden comprovam que, a propósito de manter sua segurança doméstica, os norte-americanos fizeram o mundo retroagir ao tempo da barbárie. Votamos ao império da lei do mais forte, ao regime da guerra de todos contra todos (ou da guerra de um país contra todos os outros, para ser mais exato).  

A incivilizada política de espionagem indiscriminada adotada pelos EUA, que motivou e motiva reprimendas diplomáticas ao redor do planeta (e neste momento especialmente na Europa) renova o interesse pela obra O MEDO DOS BÁRBAROS. Afinal, o governo dos EUA não somente presume que os norte-americanos são os únicos seres humanos civilizados, como passou a tratar todos os outros povos como se fossem bárbaros independentemente de seu nível de desenvolvimento econômico, tecnológico, cultural e humanístico.

No capitulo “identidades coletivas” Todorov procura demonstrar como e porque as culturas não estão isoladas, mas compartilham zonas de contato que as enriquecem e que permitem aos seres humanos terem diversas identidades.

“Não existem culturas puras; pelo contrário, todas elas são mistas (ou ‘hibridas’ ou ‘mestiças’). Os contatos entre grupos humanos recuam ás origens da espécie e deixam vestígios na maneira como os membros de cada grupo se comunicam entre si. Por mais longe que recuemos na história de um país, tal como, a França, acabamos sempre por identificar um encontro de várias populações, portanto, várias culturas: gauleses, francos, romanos e muitos outros povos.”

Mais importante. As culturas não são permanentes e estáticas, são mutáveis e dinâmicas.

“Outro traço das culturas, também fácil de identificar, é que elas estão em perpétua transformação. Todas as culturas passam por mudanças, mesmo admitindo que as alterações nas chamadas ‘tradicionais’ ocorram de forma menos natural e menos rápida que naquelas designadas por ‘modernas’. Tais modificações têm múltiplas razões: uma vez que cada cultura engloba várias outras, ou é a interseção com outras, seus diferentes ingredientes formam um equilíbrio instável.”

Cada um de nós tem ou pode ter várias identidades coletivas e cada uma delas está sujeita ás transformações de nossa cultura. A submissão de nossa pluralidade de identidades a uma só (nacional, religiosa ou política) e o congelamento da cultura no tempo serve apenas aos projetos de hegemonia política de líderes radicais tanto no Ocidente quanto no Oriente.

Lendo Todorov podemos concluir que, de certa maneira, a guerra em curso entre Ocidente e Islamismo  (e entre os EUA e todos os outros países que os norte-americanos espionaram e espionam indiscriminadamente) é produto do maniqueísmo que tem sido fomentado no próprio Ocidente (e, sem dúvida alguma, em alguns círculos do poder nos EUA). Pois no Oriente a guerra é fruto menos do maniqueísmo do que do ressentimento causado pelas ocupações militares que o Ocidente patrocinou e patrocina em nome da “civilização”.

“As guerras são motivadas pela necessidade de apoderar-se das riquezas dos vizinhos, de exercer o poder, de proteger-se de ameaças reais ou imaginárias; em suma, elas têm, como já foi dito, razões políticas, sociais, econômicas e demográficas. Não há necessidade de evocar o islã ou o choque de civilizações para explicar o motivo pelo qual os afegãos ou os iraquianos resistem às forças militares ocidentais que ocupam seus territórios; nem de falar de antijudaísmo ou de antissemitismo para compreender as razões pelas quais os palestinos não se regozijam com a ocupação israelita de suas terras; nem de citar os versículos do Alcorão para conferir um sentido às reações dos libaneses que, em 2006, ofereceram resistência à destruição das infraestruturas do país.”

Um dos pontos fortes do livro é discussão que o autor faz sobre a tortura e sua justificação jurídica e jornalística na última década. Tzvetan é impiedoso:

“A tortura institucional é ainda pior que a tortura individual por subverter qualquer idéia de justiça e de direito. Se o próprio Estado se torna torturador como acreditar na ordem que ele pretende construir ou caucionar? A tortura legal estende sua ação destrutiva para além do carrasco e da vítima, atingindo todos os outros membros da sociedade por saberem que essa prática faz-se em nome deles; no entanto, eles tentam eximir-se de qualquer responsabilidade, evitando tomar providências para suspendê-la. Em geral, os cidadãos das democracias liberais denunciam e condenam, sem qualquer hesitação, as práticas violentas dos Estados que a toleram e, com maior força de razão, dos Estados que a sistematizam, por exemplo, os regimes ditatoriais. Atualmente, descobrimos que essas mesmas democracias, sem qualquer alteração de sua estrutura global, podem adotar atitudes totalitárias.”

O mesmo pode ser dito neste momento sobre a espionagem massiva e ilegal realizada pelos EUA contra governantes, empresários e cidadãos de países membros da ONU. A reprimenda do Secretário Geral da ONU à conduta norte-americana foi inequívoca. “Estados devem respeitar lei internacional”, disse Ban Ki-moon. Fora da Lei só há barbárie  poderia ele ter dito se quisesse ser mais didático.

Ao contrário de Ban Ki-moon, bastante reticente quando se trata de criticar os EUA, Todorov não poupou ninguém. Nem os jornais que publicaram as charges do Profeta Maomé, nem o Papa que disse que o islamismo é uma religião irracional.

“Segundo um dos doze desenhadores ‘desde o início a única pretensão do jornal era a provocação’; tal é também a apreciação manifestada pelos outros grandes cotidianos dinamarqueses.”

“O cristianismo é uma religião com aspirações universais que valorizou o amor humano; nem por isso, a criação divina do mundo, ou o advento do homem-deus ou a Imaculada Conceição, ou a Trindade, ou a transubstanciação, ou a ressurreição, são crenças fundadas na razão.”

No Brasil a reação a publicação das charges do Profeta Maomé não ocorreu. Aqui a mídia tratou o episódio como um conflito entre a “liberdade de imprensa” x “intolerância islâmica”. Todorov afirma, entretanto, que este tipo de análise reducionista é a verdadeira fonte de muitos dos problemas ocidentais (problemas que nós brasileiros podemos vir a ter no futuro). Os jornalistas brasileiros deveriam prestar muita atenção às palavras de Todorov:

“Desde que alguém exerce responsabilidades públicas, já não basta reivindicar unicamente suas convicções e o direito de exprimi-las; deve-se acrescentar a exigência de exercer suas funções como indivíduo responsável que leva em consideração as conseqüências previsíveis dos seus atos. Essa responsabilidade é diferenciada para cada um e aumenta à medida que cresce o poder de que se dispõe. Um papel decisivo incumbe, portanto, a todos aqueles que participam da organização da esfera social. Além dos políticos, talvez, incluem-se sobretudo aqueles que estão encarregados da função de gerenciar e de orientar a mídia de mais ampla difusão: editores e redatores das redes de televisão e das estações de rádio, jornais e magazines.”

O livro “O Medo dos Bárbaros” parece bastante equilibrado e recomendável. Todavia, Tzvetan Todorov também escorregou feio.

“Até uma época recente, a questão européia esteve situada sempre no âmago de um quadro mais amplo, o do Ocidente, entidade formada pela Europa Ocidental e a América do Norte, mais especificamente, os Estados Unidos. Com efeito, os estadunidenses estão associados, por sua origem, à herança européia e os ‘pais fundadores’ dessa nação inspiraram-se diretamente do espírito do Século das Luzes: sua identidade política e cultural integra períodos inteiros da história européia.”

Estas palavras coriscaram como relâmpago na minha consciência. Todorov parece ignorar que a América Latina foi colonizada por espanhóis e portugueses. No limite ele parece acreditar que estes dois povos não são verdadeiramente europeus. O autor de “O Medo dos Bárbaros” ignora que milhares de brasileiros também morreram nos campos de batalha europeus para libertar o velho continente das garras do nazismo? Não sabe que o Brasil realizou Copa do Mundo de 1950 porque a Europa estava devastada e não podia realizar o torneio? Esqueceu-se que os latino-americanos ajudaram a criar a ONU e participam ativamente da comunidade das nações desde então? Não só isto.

Neste momento, o critério empregado por Todorov para igualar Europa Ocidental e América do Norte caiu em desuso. Afinal, através das denúncias feitas por Edward Joseph  Snowden o mundo inteiro ficou sabendo que os norte-americanos espionaram e espionam líderes, empresários e cidadãos alemães e franceses como se eles fossem brasileiros, argentinos e bolivianos.

Todorov parece incorrer no mesmo problema que os autores que criticou. Como Samuel Huntington, Oriana Fallaci, Élie Barnavi, Alain Finkielkraut e, de certa maneira, Jean-Christophe Rufin, numa só penada o autor de “O Medo dos Bárbaros”  excluiu do mundo conceitual 570 milhões de pessoas que ocupam uma área de 21.069.501 Km2. Os latino-americanos, que tem sua história cultural e lingüística ligada indissociavelmente à Europa, segundo Todorov não estão nem no Ocidente nem no Oriente (muito embora os EUA, neste momento, esteja tratando os orgulhosos europeus incensados por Tzvetan Todorov como se fossem latino-americanos).

O autor de “O Medo dos Bárbaros” é um humanista. Sua obra é ou pretende ser um instrumento de renovação da tradição humanista ocidental. Em razão da mesma excluir a América Latina do Ocidente é impossível não fazer a Tzvetan Todorov a mesma pergunta dolorosa que Edward W. Said fez a outros pseudo-humanistas europeus e norte-americanos:

“Será que uma crença no humanismo como um ideal educacional e cultural deve se necessariamente acompanhada por milhões de exclusões segundo a lista de itens a serem purgados, o predomínio de uma classe minúscula de autores e leitores selecionados e aprovados, e um tom de rejeição de espírito mesquinho? Eu diria que não, pois compreender o humanismo, para nós cidadãos desta república peculiar, é compreendê-lo como democrático, aberto a todas as classes e formações, e como um processo de incessante revelação, descoberta, autocrítica e liberação.”

Fábio de Oliveira Ribeiro

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