Ó noites infernais da minha vida!, por Sousândrade

Enviado por Felipe A. P. L. Costa

Ó noites infernais da minha vida!

Por Sousândrade [1]

 

Ó noites infernais da minha vida!

– Desespero e descrença os céus e a terra!

Lá não ouço uma voz que diga – esp’rança;

Não vejo aqui sorrir que diga – amor!

 

Uma lua cansada sempre e morta

Dormindo pelos cumes das montanhas;

Uma hipérbole bruta, uns pirilampos

Na abóbada celeste pendurados –

 

Áridos mudos campos misteriosos,

Não vejo a aurora mais do que um semblante

D’escarnio à humanidade, e o feio ocaso

Que os olhos a fechar só lembra a morte!

 

A terra faz-se em homens – vivos sonhos

Do cérebro dormente: algumas horas

O espectro zumbe; e vai-se desfazendo,

Sonho qual é, que não viveu – sonhava.

 

Passou-se tudo! os sonhos mais felizes

Todos me abandonaram! Os céus abertos,

Ouvi – eu te amo! – Foi mentira. O inferno

Hoje m’envolve, me envolvendo o amor!

 

De esperança em esperança corre a vida –

Existir é esperar: porque eu morri

Desde que as velas d’alma erguendo a acaso

O meu canto entoei desta desgraça!

 

Mar sem praias! – seus ventos me diziam:

Não vês lá no horizonte os verdes cumes

Juntos ao céu? – Andei! fagueiro e ledo:

E tão cansado, e sem chegar mais nunca,

 

Vi caindo a verdade! Eis porque eu morro:

Vive quem dorme e sonha. À dor me uivando

Eu quis aniquilar minha existência,

Que era fantasma o ser, mentira a vida!

 

E os ecos delirantes retumbaram

Nest’alma às próprias chamas consumida,

Em vão!… Quero viver – vem, vem, ó noite,

Banhar-me do teu sono! Eu durmo, eu vivo.

 

Demônio da alma, ceticismo horrendo,

Filosofia cega, oh, vai-te! vaite!

Das opressoras escarnadas garras

Solta-me – aos vales da obscura crença –

 

Esquece-te de mim; fechem-se as asas

Sinistras de sombrio noitibó!

Eu quero amar a Deus e amar os homens:

Vai-te, deixa-me em paz – feliz eu sou!

 

Consumiste minha alma enegrecida;

Tu disseste, que um Deus não me acompanha;

Que é vã fumaça esta alma, que o meu corpo

Em cinzas perderá, passando o vento.

 

Negaste-me um repouso na amizade;

E nem pude mais crer no amor da virgem:

E murcho e frio me recolho às sombras

Da minha vida a me abraçar co’a morte.

 

Olhei… os dias meus do sol caindo;

Escutei… os meus lábios estalando

Em maldições ao ser desta existência,

E ao Ser que sobre o sol conta os meus dias!

 

E eu, que me assentava ao pé da serra,

Vendo as estrelas como ninfas d’oiro

Subindo lá do fundo da corrente,

Começando-se a noite a encher de sombras;

 

Esperando que a lua atravessasse

No vale, por saudá-la dos dois nomes

“De Ana e de minha mãe” – achei só túmulos:

Pálido o amor, pálida a amizade!

 

Achei a minha vida ser tão longa

Como o passar da eternidade! Em tanto

Dormia as horas… e nas dores de hoje

Meus dias de depois eu descontei.

*

Nota

[1] Joaquim Manuel de Sousa Andrade, ‘Sousândrade’ (1832-1902), Poema – publicado em livro em 1857 – extraído da coletânea Poesia contra a guerra (2015).

Redação

2 Comentários

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  1. D’escarnio à humanidade, e o

    D’escarnio à humanidade, e o feio ocaso

    Que os olhos a fechar só lembra a morte!

    (parece que o poeta resume o horror de um ‘futuro’ político insano)

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