O país dos canalhas – Capítulo 12 – O Rio de Janeiro continua lindo, por Sebastião Nunes

Intervenção sobre foto de criança negra

 

Por Sebastião Nunes

– Qual é o problema desta vez? – perguntou irritado Maigret quando liguei pela segunda vez. – Você não se dá conta de que o Brasil é um país em guerra?

– Desculpe, meu velho – respondi hesitante. – Mas é que…

Uma explosão terrível cortou minha voz, não me deixou falar.

– Que barulho foi esse? – espantou-se o comissário. – Parece uma bomba.

– Bomba nenhuma – respondi apressado. – Foi apenas um helicóptero da polícia derrubado pelos traficantes.

– Não sabia que você estava no Rio, Marlowe.

– Cheguei agorinha mesmo, não faz nem…

Uma série de metálicos tac-tac-tac-tac-tac me interrompeu.

– E agora? – inquietou-se Maigret.

– Nada de sério. Apenas a polícia metralhando alguns suspeitos.

 

O INFERNO NÃO É AQUI

– De novo? – indagou o comissário, ouvindo barulho de vidros quebrados.

– Nada de grave – respondi com toda a calma do mundo – Só uma bala perdida que destroçou uma janela atrás de mim.

– Tem certeza de que está tudo bem, Marlowe? – insistiu Maigret.

– Claro que tenho – afirmei corajosamente. – O Rio de Janeiro nem ao menos consta da lista de cidades mais violentas do mundo.

– Verdade? – espantou-se o comissário. – Sempre pensei que…

Nova explosão, que abalou o hotel em que eu acabava de me instalar.

– Absoluta – fiz questão de acentuar. – Se quiser posso te dizer quais são as cidades mais violentas do mundo e até do Brasil. Aliás, vamos esquecer as explosões e os tiroteios, ou este telefonema vai durar horas.

(Façamos o mesmo, amável leitor: embora o diálogo se passe entre Rio e Paris, não haverá mais tiroteios e explosões neste relato.)

– Gostaria de saber – disse Maigret. – Serão sempre informações úteis.

– Então lá vai – disse eu. – Agora que podemos conversar sem interrupção…

 

O SILÊNCIO DOS ESPAÇOS INFINITOS

– … posso te relatar sobre as 50 cidades mais violentas do mundo, 19 delas no Brasil – e nenhuma é o Rio.

– Você está brincando – murmurou o comissário, soltando uma baforada do seu terceiro cachimbo deste diálogo.

– Quer, pra começar, uma relação das 19 mais violentas do Brasil?

– Manda.

– Primeirona, Natal, quem diria, hein? Tão catitazinha! Segundona, Belém, a metrópole da Amazônia, a São Paulo do Norte. Terceirona, Aracaju, mais uma deliciosa cidadezinha nordestina. Seguem na lista mais duas do Nordeste, Feira de Santana, na Bahia, e Vitória da Conquista, idem. Quebrando a sequência, e pertinho daqui, Campos dos Goytacazes, de nome tão sugestivo.

– Mas o Rio não aparece nunca? E a guerra civil? E a mortandade?

– Não tem guerra civil nenhuma, meu caro – respondi complacente. – e se tem, no Nordeste tem muito mais, pois a lista continua assim: Salvador, Maceió, Recife, João Pessoa, São Luís, Fortaleza, Teresina, Cuiabá, Goiânia, Macapá, Manaus, Vitória e – fechando a gloriosa lista das 19 cidades mais violentas do Brasil – Curitiba, logo ela, quem imaginaria, tão cantada em prosa e verso como modelo de urbanismo e, vá lá uma mentirinha, de urbanidade.

– Estou tão espantado que até deixei cair o cachimbo – disse de lá, da distante e primeiro-mundista Paris, meu amigo Maigret. – Sempre incluí o Rio na lista e até proibi a senhora Maigret de programar nossas férias nesse inferno urbano.

– Culpa da imprensa internacional – respondi modestamente. – São os seus jornais que difamam o Rio, com inveja de suas belezas naturais.

 

A MÚSICA DAS ESFERAS

– Talvez você esteja certo – concordou Maigret. – Mas aqui entre nós, você não acha excessivo o Brasil ter 19 entre as 50 cidades mais violentas do mundo?

– Acho. Mais umas poucas e seria metade. Desconfio de que alguma coisa esteja errada nessa lista.

– Vamos investigar. As estatísticas são feitas a partir do número de homicídios por 100 mil habitantes, não é isso?

– Certo – concordei sem compreender onde queria chegar.

– A estatística explica o percentual dos homicídios solucionados? Em outras palavras, quantos casos são resolvidos e quantos assassinos são presos?

– Explica sim – dei uma olhada na lista. – Aqui está: no Brasil, 92% dos crimes ficam sem solução.

– Espantoso, não é? – sugeriu o Comissário. Só 8% de homicídios solucionados e posso apostar que a maioria são crimes passionais, brigas domésticas entre familiares, portanto fáceis de esclarecer, quando o assassino se entrega ou fica bestando na rua.

– O mais espantoso, Maigret, continua sendo o Rio não estar na lista. Tentarei saber por outras fontes qual a posição da, digamos assim, cidade maravilhosa.

– Acho que sei a razão, caro Marlowe – pontificou meu amigo, certamente com o cachimbo entre os beiços.

– E pode me dizer?

– Claro. A imensa maioria de mortos no Rio é de pobres e pretos, não é mesmo? Garotas e garotos de favela, meninos de periferia, gente descartável, em suma.

– Correto – respondi. – Segundo o noticiário é isso mesmo.

– Então está explicado, meu caro Marlowe – Pretos e pobres não contam na sua lista. E se pretos e pobres não contam, o Rio tem índice baixíssimo de homicídios.

 

(Continua na próxima semana)

Sebastiao Nunes

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