O poeta Carlos Drummond de Andrade se despede da filha morta

Sentados lado a lado, na soturna madrugada do salão funéreo, dois velhinhos examinam minuciosamente o perfil da defunta. Os meses sombrios do câncer terminal roeram-lhe a antiga vitalidade: restava osso frágil coberto de cera amarelada.

            – Quer um café, Carlos? – pergunta Dolores. – Se quiser, eu mesma busco na cantina. Aproveito e tomo um também.

            O poeta não responde.  “Prefiro um enfarte fulminante”, pensa, amargurado.      

            Eram apenas dois velhos numa atemporal cerimônia fúnebre, dois velhinhos tristes, enrugados e cabisbaixos. Ele, 85 anos. Ela, 88. Mãos trêmulas e gestos inúteis.

            Vejo-te morta. As brancas mãos pendentes.

            Delas agora, sem querer, libertas

            a alma dos gestos e, dos lábios quentes

            ainda, as frases pensadas só em certas

 

            tardes perdidas. Sob as entreabertas

            pálpebras, sinto, em teu olhar presentes,

            mundos de imagens que, às regiões desertas

            da morte, levarás, que a morte sentes

 

            fria diante de todos os apelos.

            Vejo-te morta. Viva, a cabeleira,

            teus cabelos voando! ah! teus cabelos!

 

            Gesto de desespero e despedida,

            para ficares de qualquer maneira

            pelos fios castanhos presa à vida.

 

            “Como uma prece. Verdadeiro poema de amor post mortem. Como pode a memória armazenar tanto?”, pensa confusamente. Ele a havia decorado, essa elegia do poeta Mauro Mota à mulher morta. “As brancas mãos pendentes”. De Julieta só o rosto era visível. Todo o resto soterrado sob um ridículo amontoado de flores enjoativas amenizando o fedorento trabalho dos incansáveis vermes.

            “Eu devia ter morrido antes dela”, pensa o velho, lembrando o enfarte recente, quando passou 12 dias internado. “Mas quis continuar. Para que essa ânsia de se eternizar? Do meu passado só restam mortos. Estão todos em volta de mim, à espera. Ali no canto, sorrindo com os dentes pontudos, Manu. Um pouco mais longe, a careca brilhando, Mário. Quase escondido nas sombras, o doce Emílio com o cigarrinho de palha. E foram, como eu, meninos encapetados, rapazes esperançosos – de quê?”

            “Até que finalmente tudo passou – e nada. Grandes ilusões rastejam entre lagartixas”, compusera outro poeta, esse, mineiro, num momento de inspiração amarga diante do túmulo do pai.

            – Lagartixas ou calangos – pensa ele em voz alta.

            – Que é que você disse? – pergunta Dolores, sem entender.

            – Nada – e quase riu. – Não disse nada. Apenas pensei nuns bichinhos que costumava apedrejar quando era menino antigo e malvado.

            Do outro lado, sentada numa cadeira escura, velava Lygia, a namorada de tantos anos. É muito tarde. Ou muito cedo. O alvorecer insinua tímidas luzes no céu escuro. Quatro, cinco horas? Nenhum relógio se apresenta. O tempo parou.

 

CAMPO DE FLORES

            O poeta encara Lygia, 60 anos, quase outra velha, cabisbaixa. “Terá valido a pena? O poema era dela, fora composto para ela, num rompante, em êxtase. Dolores saberia? Quase com certeza. Apenas fingia não saber.”

 

            Deus me deu um amor no tempo de madureza,

            quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.

            Deus – ou foi talvez o Diabo – deu-me este amor maduro,

            e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

 

            “Sim, doce Lygia, valeu a pena, Dolores que me perdoe.” Mas para além de toda a alegria dos encontros secretos, do prazer intenso da transgressão, sempre aquele sentimento difuso de culpa dos tímidos e dos inseguros:

 

            Seu grão de angústia amor já me oferece

            na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia

            os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura

            e o mistério que além faz os seres preciosos

            à visão extasiada.

 

MANGUEIRA, TEU CENÁRIO…

            Em fevereiro, no carnaval, o poeta fora homenageado com o samba enredo “No reino das palavras”:

 

            Mangueira

            De mãos dadas com a poesia

            Traz para os braços do povo

            Este poeta genial.

 

            “Bobagem”, pensa mais uma vez o velho, dedos cruzados entre as pernas apertadas, magras de dar dó. Muxiba e osso. “Cadáver adiado que nem ao menos procria. Genial só a morte, que é o fim de todos os milagres, não é Manu?”

            “E o filho morto?”, continua pensando. “Carlos Flávio, apenas um nome e meia hora de vida. Antes de Julieta, e tanta esperança!”

 

            Nascer para não viver

            só para ocupar

            estrito espaço numerado

            ao sol-e-chuva

            que meticulosamente vai delindo

            o número

            enquanto o nome vai-se autocorroendo

            na terra, nos arquivos

            na mente volúvel ou cansada

            até que um dia

            trilhões de milênios antes do Juízo Final

            não reste em qualquer átomo

            nada de uma hipótese de existência.

 

            “Tornou-se apenas um poema ruim”, rumina o velho poeta. “Bem ruinzinho. Onde em mim a grandeza elegíaca e estranha de Augusto dos Anjos?”

 

            Agregado infeliz de sangue e cal,

            Fruto rubro de carne agonizante,

            Filho da grande força fecundante

            De minha brônzea trama neuronial,

 

            Que poder embriológico fatal

            Destruiu, com a sinergia de um gigante,

            Em tua morfogênese de infante,

            A minha morfogênese ancestral?!

 

            Porção de minha plásmica substância,

            Em que lugar irás passar a infância,

            Tragicamente anônimo, a feder?!…

 

            Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,

            Panteisticamente dissolvido

            Na noumenalidade do NÃO SER!

 

            “Esse sequer teve nome, apenas um feto disforme. Nenhuma piedade no poeta. A dor nua e crua, tremenda. E o nojo da própria carne.”

            Lá fora, através do vidro das janelas, o dia levanta seu alarido de vida, movimento, ansiedade e esperança. O velhinho, que nada mais espera, suspira fundo, torce as mãos e fecha os olhos.

 

A VIDA PASSADA A LIMPO

            Acorda do breve cochilo com leve toque nas costas.

            – Vovô? – entoa uma voz bem conhecida.

            Levanta a cabeça. Ali estão seus três netos, homens feitos, tentando sorrir, confortá-lo, de tanto que parecia perdido no desamparo da velhice.

            Então o velho poeta sacode a cabeça e a poeira. Dá a volta por cima. Volta-lhe à memória o poema “A flor e a náusea”, em que uma flor nasce na rua:

 

            Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

            e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

            Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

            Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

            É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

 

            Sim. Apesar de tudo a vida continua. Olhando os netos que o encaram com ternura, olha também para Dolores que sorri para eles. Julieta se foi mas vida continua. Sua batalha também está perto do fim, não tem mais idade ou vigor para a luta. Mas sua poesia permanece e lutará por ele. Como em “Nosso tempo”:

 

            O poeta

            declina de toda responsabilidade

            na marcha do mundo capitalista

            e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas

            promete ajudar a destruí-lo

            como uma pedreira, uma floresta,

            um verme.      

 

            Ri por dentro e acaricia com os olhos os netos. Hoje não escreveria “uma floresta”, teria de encontrar algum substituto. Mesmo assim, o restante continua válido. E sorri de novo. E se levanta. Então vai, com os netos, de mãos dadas com Dolores, tomar um café na cantina. Em silêncio, Lygia caminha atrás deles.

Sebastiao Nunes

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