O último encontro de Lenin com um amigo dadaísta em Zurique, por Sebastião Nunes

Entre as duas revoluções possíveis, qual será mais eficaz a curto, médio e longo prazo?

O último encontro de Lenin com um amigo dadaísta em Zurique

 Sebastião Nunes

Fim de tarde, 14 de março de 1917. Minúsculas gotas de chuva formavam uma cortina esbranquiçada e fantasmagórica diante dos postes de iluminação pública. Numa mesa discreta do Cabaré Voltaire, frequentado por operários, prostitutas e artistas pobres, dois homens bebiam conhaque barato. Poderiam ser pai e filho. O mais velho, careca, barbudo e tenso, tinha 46 anos. O mais novo, de cabelos escuros, cara raspada e gestos excessivos, apenas 20. Tinham se conhecido um ano antes, ali mesmo, no amplo salão dos fundos, quando um grupo de jovens lançara com estardalhaço o movimento dadaísta, de propósitos revolucionários. O anúncio do espetáculo atraíra o mais velho, Vladimir Ilitch Ulianov, que morava nas proximidades com a mulher, Nadejda Konstantnovna Krupskaia. Foram juntos. Nadia torceu o nariz para as representações, que qualificou de delírio pequeno-burguês. Vladimir divertiu-se com o entusiasmo e as extravagâncias do grupo. Ao cumprimentar, no final, os promotores do espetáculo, Hugo Ball e Tristan Tzara, Vladimir indagou, entre curioso e paternal:

– O que vocês pretendem com esse movimento de nome esquisito, DADA?

– Ridicularizar a burguesia – respondeu Tzara. – Revolucionar a linguagem. Detonar a ética do capitalismo.

– Só isso? – espantou-se Vladimir. E soltou uma gargalhada, de que andava muito necessitado. – Pelo visto, vocês querem mais do que eu.

– E o que pretende o senhor? – indagou respeitoso e desconfiado Hugo Ball.

– Revolucionar a Rússia.

IDEIAS EM MOVIMENTO

Dos líderes do dadaísmo em Zurique, restara apenas Tzara. Era o pau para toda obra do Cabaré Voltaire, misto de galeria de arte e sala de espetáculos. Ali promovia encontros de dança, música, declamação de poemas e leitura de manifestos.

Vladimir morava numa pensão e gostava dela, entre outras coisas porque o café era servido numa xícara de asa quebrada e comiam na cozinha. Tinha pouquíssimo dinheiro e seus nervos estavam arrasados. Apesar de gostarem da pensão, passavam a maior parte do tempo na biblioteca, por causa do cheiro horrível que vinha da fábrica de salsichas do outro lado da rua.

Aqueles momentos no Cabaré Voltaire, com o “anarquista” Tzara, eram um oásis em suas preocupações. O jovem de 20 anos, cheio de ideias malucas e atirando para todos os lados, representava uma lufada de ar fresco em sua vida de trabalho intenso e vigilância incessante.

– Muitas vezes penso que morrerei sem ver a revolução triunfar – disse Vladimir com tristeza, repetindo o que dissera numa conferência para jovens, em 22 de janeiro: “Nós, que pertencemos à geração mais velha, talvez não vivamos o suficiente para ver as batalhas decisivas da revolução”.

– Bem que me esforço – acrescentou –, para suportar a situação, para viver com o mínimo e trabalhar o máximo, mas às vezes me sinto esgotado. Sei que estou envelhecendo, e fico imaginando se revolução não é tarefa para jovens como você.

– Tenho minhas dúvidas – respondeu Tzara, encarando Vladimir. – Talvez você esteja simplesmente querendo demais. Revolucionar as artes, tudo bem. Não somos os primeiros nem seremos os últimos. Mas um país inteiro?

– Esse é o problema central – confirmou Vladimir. De boas intenções o inferno está cheio, não é assim que se diz? Escute só: “Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional…” etc. “Art. 1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. Que tal? Está na Declaração de 1789, que só serviu para a consolidação do capitalismo. Ou isto: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade” etc. Está na declaração de independência dos Estados Unidos. E virou aquela merda.

LINGUAGEM E AÇÃO

– Retórica pura – disse Tzara. – Nossas declarações no Manifesto Canibal Dada são melhores e não tão sérias: “Morre-se como herói ou como idiota, o que é a mesma coisa”. Ou então: “Somente o dinheiro é que não morre, ele apenas sai de viagem”. E escute esta obra-prima: “A honra se compra e se vende como o rabo”.

– Brincadeira de desocupado – respondeu Vladimir rindo. – Vocês estão apenas brincando com as palavras e pensam estar revolucionando o mundo.

– Pensando só, não: estamos revolucionando – reafirmou Tzara. – Para revolucionar o mundo é preciso revolucionar a linguagem. Não se faz revolução com pensamentos burgueses. Veja este poema: “Para fazer uma poesia dadaísta:/ Pegue um jornal./ Pegue uma tesoura./ Escolha no jornal um artigo que tenha o comprimento que você deseja dar à sua poesia./ Recorte o artigo./ Corte de novo…

Vladimir soltou uma gargalhada e ficou olhando para Tzara:

– Esse eu já conhecia. E sabe por que vou aguentar? Enquanto houver um palhaço como você por perto, jamais perderei o bom humor.

Tzara, satisfeito, bebericou um pouco de conhaque e estalou a língua.

– O problema de vocês, Vladimir, é a seriedade. Se vencerem e sua revolução se instalar na Rússia, sabe o que acontecerá?

– Sei – disse Vladimir. – Acabaremos com a nobreza e com a fome, educaremos as massas, daremos condições decentes de vida a todos…

– Sem mudar as mentalidades? Sem destruir a lógica burguesa do pensamento? – espantou-se o rapaz. – Duvide-o-dó. Vocês se matarão uns aos outros. – Fez uma pausa e continuou. – Sabe que meu nome real é Sami Rosenstock, não sabe? E que meu nome de guerra é Tristan Tzara. Sabe o que significa Tristan Tzara?

– Sim, você me contou: “Triste país” – respondeu Vladimir. E sei por quê.

– E quantas pessoas, além de nós dois, conhecem esse pseudônimo, sua origem e seu objetivo? Quase ninguém. Por ser uma ideia séria. Lembra-se de Marcel Duchamp, que te apresentei faz algum tempo?

– Aquele esnobe? Lembro. O que fez ele?

– Ainda não fez, mas vai fazer. Está pensando em pegar um urinol desses comuns de parede, botar de cabeça para baixo, escrever nele a palavra “fonte” e mandar para um salão de arte. Aposto que fará o maior sucesso. Ou causará um bruto escândalo. Faz parte de nossa revolução pela linguagem.

Vladimir riu de novo. Normalmente, falava muito pouco de suas ideias com Tzara, preferindo se divertir com as maluquices dadaístas. Mas às vezes se deixava levar por pensamentos sombrios.

 

A DESPEDIDA

– Quando eu tinha 16 anos meu irmão foi enforcado – disse Vladimir. – Ele tinha 17, três a menos que você. Quase um menino, mas não se considerava assim.

– Desde os 13 não me considero um menino.

– Na Revolução Francesa havia “quase garotos”. Poucos eram mais velhos do que eu sou hoje, e esses eram os piores militantes, os mais medrosos. Talvez, de fato, revolução seja coisa para garotos. Depois de certa idade a gente pensa em desistir.

– Mas você não desiste. Morre, mas não desiste.

– Não. Não desisto. Não só porque não tenho alternativa, mas principalmente porque dediquei toda a minha vida a este sonho. Eu e Nádia.

– Como está ela? Os olhos melhoraram? E a gota? E o coração?

– Ela aguenta. Se existe uma mulher forte em sua fraqueza, é ela. Sabe que a apelidam de “lampreia”, “peixe” e “bacalhau velho” e nunca se queixa. Mas também nunca ri. Não é uma mulher alegre, nem poderia ser.

Estava na hora. Levantaram e pagaram a conta. Quando se despediram, como velhos camaradas, nem imaginavam que jamais se veriam de novo. No dia seguinte, Vladimir soube que a revolução começara.

 

 

Ilustração: Intervenção com dadaístas sobre “A fonte”, ready-made de Marcel Duchamp

Legenda:

Entre as duas revoluções possíveis, qual será mais eficaz a curto, médio e longo prazo?

Sebastiao Nunes

2 Comentários

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  1. este encontro eu sei que aconteceu

    não sei das firulas gerais, mas o Lenin viveu no mesmo espaço que estes dadaístas, bagunceiros da arte.

    romério

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