Os inimigos ocultos, os dois minutos de ódio e a paranoia coletiva, por Sebastião Nunes

Vai o sétimo capítulo do "1984", transfigurado numa paródia adequada ao século XXI.

Os inimigos ocultos, os dois minutos de ódio e a paranoia coletiva

por Sebastião Nunes

Aconteceu o seguinte. Eram quase onze horas e, no departamento de arquivos do Miniver, onde Wilson trabalhava, levavam as cadeiras para o vestíbulo, diante de uma enorme macrotela, preparando o cenário para os “Dois Minutos de Ódio” diários.

Wilson acabara de ocupar seu lugar quando duas pessoas que conhecia de vista, mas com as quais nunca havia falado, se aproximaram. A primeira era uma garota. Frequentemente se cruzavam no corredor. Não sabia seu nome, apenas que trabalhava no departamento de ficção. Como às vezes a havia encontrado com as mãos sujas de graxa e levando uma chave inglesa, provavelmente fosse encarregada da manutenção das máquinas de escrever romances.

 

A MOÇA QUE AINDA NÃO ERA JÚLIA

Era uma garota de aspecto frívolo, de uns vinte e sete anos, cabelos pretos e espessos, rosto sardento, movimento ágeis e atléticos. Estreita faixa vermelha, símbolo da Liga Juvenil Antissexo, lhe apertava a cintura, por cima do macacão, ressaltando a sensualidade dos quadris. Wilson antipatizara com ela desde o primeiro momento. E sabia por quê. Pela aparência de quem frequentava quadras esportivas, saunas e caminhadas coletivas, com a mente descontraída e independente. Wilson sentia aversão por quase todas as mulheres, principalmente as jovens e bonitas.

Os membros mais fanáticos do Partido, os devoradores de slogans e palavras de ordem, os espiões amadores e os farejadores de heterodoxia eram quase sempre jovens. Porém essa garota, pelo seu jeito atrevido, parecia mais perigosa do que a maioria.

Numa ocasião em que se cruzaram no corredor, ela lhe havia lançado, de soslaio, um olhar penetrante, que o deixou aterrorizado. Chegou a pensar que fosse agente da Polícia do Pensamento. Contudo, não parecia provável, embora experimentasse uma inquietude estranha, misto de medo e hostilidade, toda vez que se encontravam. Ela mal o olhou e sentou-se duas filas à frente.

 

O QUASE SÓSIA DO GRANDE IRMÃO

A outra pessoa se chamava O’Brien, o mesmo sobrenome do Grande Irmão, era membro do Partido Interior e ocupava um posto tão importante quanto misterioso. Fez-se completo silêncio em torno quando ele surgiu metido no macacão negro que marcava as lideranças. Era um homenzarrão fornido, de pescoço grosso e rosto tosco e brutal, mas que, ao mesmo tempo demonstrava cordialidade. Wilson se lembrou imediatamente da figura do Grande Irmão nos cartazes, cujo rosto, embora tosco e brutal, também irradiava cordialidade. Apesar da imponência, os modos eram amáveis e O’Brien tinha uma maneira desajeitada e curiosamente civilizada de limpar os óculos, que desarmava. Era um gesto que, se alguém pensasse no assunto, poderia recordar um nobre do século XVIII oferecendo a caixa de rapé.

Wilson, que vira O’Brien apenas uma dezena de vezes em outros tantos anos, sentia estranha atração por ele, não só porque estranhava o contraste entre a urbanidade de seus modos e seu físico de boxeador, mas também porque Wilson abrigava a secreta convicção – ou talvez fosse só a esperança – de que a ortodoxia política de O’Brien não era perfeita. Havia algo em seus gestos que o sugeriam de uma maneira irresistível. Inclusive era provável que aquilo que mostrava no rosto não fosse ortodoxia, mas pura e simplesmente inteligência. De qualquer forma, tinha o aspecto de alguém com quem se podia conversar, ridicularizar a macrotela e até ficar sozinho com ele. Mas Wilson jamais havia feito o menor movimento em sua direção.

Enquanto Wilson se perdia nessas divagações, O’Brien consultou o relógio, viu que estava chegando a hora, e decidiu ficar por ali. Ocupou uma cadeira na mesma fila que Wilson, a dois assentos dele.

 

COMEÇAM OS DOIS MINUTOS DE ÓDIO

Quase imediatamente, a enorme macrotela emitiu um som estridente, como se fosse uma máquina grotesca, com areia em vez de graxa nas engrenagens. Era um ruído tão desagradável que fazia arrepiar o cabelo, trincar os dentes e quase explodir de dor os ouvidos. Como de costume, apareceu a imagem de um dos inúmeros “Coronaviridae”, responsáveis pelas múltiplas pandemias que devastavam a Terra Unificada desde 2022, matando centenas de milhares de pessoas todos os dias.

Não importava qual a cepa nem qual pandemia causava. Fosse qual fosse, era o atual Inimigo Nº 1, e precisava ser combatido. Contra ele, todas as forças da Terra se uniam em torno do Grande Irmão e do Partido Interior. Mas não bastava eliminar um, aquele que aparecia na macrotela. Era preciso liquidar todos eles o mais rapidamente possível.

Ouviram-se assobios agudos e gritos de pavor. Uma mulher ruiva, bem perto de Wilson, emitiu um guincho de nojo e de medo.

Os dois minutos de ódio tinham começado.

Sebastiao Nunes

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