Os paradoxos da riqueza mal adquirida, por Sebastião Nunes

por Sebastião Nunes

A professora, exibindo generoso decote que deixava a molecada de boca aberta e olhos arregalados, entrou na sala e cantarolou: “Bom dia, queridos!”.

        A molecada, de olhos arregalados e boca aberta, emitiu profundo suspiro e entoou com voz esperançosa: “Bom dia, fessora!”.

 

PAUSA CRISTÃ

        A escola estava acampada numa das incontáveis desconstruções espalhadas pelos morros, bairros, alagados e suburbs do Rio de Janeiro, aquela metrópole que Cristo abençoa de braços abertos, mas só abençoa por exigência de Deus Pai, que Lhe ordenou que o fizesse.

        – Mas não adianta nada, Meu Pai – dizia Jesus. – Aquela cidade não tem jeito. Por que não entroniza Satanás no meu lugar?

        Irritado, Deus Pai mandou que os franceses doassem ao Rio de Janeiro uma estátua enorme do Cristo Redentor, em troca de certas regalias no Paraíso (que não me foram reveladas), o que foi feito até com certa presteza. Desde então, portanto, é essa estátua que fica lá em cima do morro, de braços abertos, fingindo abençoar a cidade. Em Sua bondade infinita, e para que o pseudo-Cristo não se entediasse, dotou a estátua do poder de ver e ouvir, de modo que ela possa se distrair durante as 24 horas do dia com os constantes tiroteios e as intermináveis perseguições polícia-traficante-milícia (e vice-versa) morro acima e morro abaixo.

 

QUEM ERA O QUÊ

        Distraídos, obtusos, impertinentes e sujos, os moleques daquela turma seriam capazes de infernizar a vida do mais empedernido dos demônios, alocado no mais profundo dos círculos infernais. Tal turma era bem representativa de seu país, que ocupava uma das últimas colocações nas pesquisas internacionais de educação, digamos, o antepenúltimo lugar, atrás apenas das Ilhas Estupradas (nas antípodas das Ilhas Virgens) e de um ou dois dentre os mais pobres, infelizes e estuprados países da África e da Ásia. Estuprados, naturalmente, pelos EUA, pelos europeus e por suas ultramegamultinacionais, de imensas goelas insaciáveis.

 

VOLTA ÀS AULAS

        Acalmados os suspiros e feita a eternamente inútil chamada, a professora propôs aos alunos o seguinte problema:

        – Se um homem tivesse furtado R$ 1.000,00 na sua mocidade e houvesse usado esse dinheiro para acumular uma enorme fortuna, quanto ele seria obrigado a devolver, no caso de ser condenado pelo furto?

        a) Os R$ 1.000,00 que havia furtado.

        b) Os R$ 1.000,00 que havia furtado mais os juros compostos sobre esse valor.

        c) Toda a sua enorme fortuna.

        A professora perguntou aos alunos se tinham entendido bem a questão. Todos responderam que sim, embora não fosse verdade. A professora abriu a bolsa, verificou se o revólver 38 estava carregado, e saiu da sala fechando a porta.

        Os alunos teriam duas horas para pensar na resposta, pois a professora tinha brigado com o namorado e precisava ir ao trabalho dele para fazer as pazes. E daria a ele o direito de escolher entre a paz do namoro reatado ou a paz do cemitério.

 

OUVINDO A RESPOSTA                         

        Quando a professora voltou, e logo que abriu a porta, notou que Joãozinho, o mais astuto, sacana, dissimulado, ladino e pervertido de seus alunos estava de dedo em pé.

        Que fazer? Nada além de dar-lhe a palavra e ouvir as consequências.

        – Diga lá, Joãozinho. Qual é a sua conclusão?

        – Muito simples, fessora. O homem não teria de devolver nada. Aliás, nem houve prova de que tenha furtado, conforme demonstraram sobejamente seus dez advogados. Além do mais, tratava-se de cidadão honestíssimo, incorruptível, guardião das leis e cumpridor de seus deveres, acima, portanto, de qualquer suspeita. Personagem de escol, descendia de uma das 3.000 famílias nobres que, na comitiva de Dom João VI, vieram honrar com sua altanaria as praias e escolas de samba do Rio de Janeiro.

        De queixo caído ficou a professora. Sem dúvida alguma chegaria Joãozinho a Ministro das Relações Exteriores, ou a Ministro do Supremo Tribunal Federal, ou a Presidente da República – qualquer coisa do tipo. E deu-se por satisfeita, premiando a turma com uma prolongada e merecida folga de três dias.

 

Notas:

        1) Do encontro da professora com o namorado, nada ficamos sabendo, pois nada foi noticiado até agora.

        2) Ao contrário do que pensava a professora, Joãozinho teria de suar horrores se pretendesse ocupar altos cargos na República ou mesmo no Rio de Janeiro, diante da brutal concorrência de homens (e mulheres) honestíssimos, incorruptíveis, guardiães das leis e cumpridores de seus deveres que abundam na Cidade Maravilhosa.

        3) A questão proposta pela professora foi sugerida pela releitura do romance “Retrato do artista quando jovem”, do irlandês James Joyce, publicado em 1916.

Sebastiao Nunes

1 Comentário

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  1. Excelente

    Crônica notável de uma cidade que, tirando a estátua magestosa, poderia ser a crônica de qualquer grande cidade do nosso país e de seu sofrido, esmagado e mal tratado povo onde as crianças pobres são ignoradas pelos que ali vivem nababescamente como se não existissem. Detalhe: os cães nestas imensas cidades tem mordomias que essas crianças jamais sonhariam ter..

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