Os três reis magos por Guimarães Rosa

Enviado por Miriam L.

Pelo Dia de Reis:

De stella et adventu magorum

Por Guimarães Rosa

No presépio, onde tudo se perfazia estático – simultâneo repetir-se de matérias
belas, retidas em arte de pequena eternidade – os Três Reis introduziam o
tempo. O mais parava ali, desde a véspera da Noite, sob o fïno brilho suspenso
das bolas de côres e ao vivo cheiro de ananás, musgo, cêra nobre e serragens:
o Menino na manjedoura, José e a Virgem, o burrinho e o boi, os pastôres com seus
surrões, dentro da gruta; e avêssa gente e objetos, confusas faunas, floras,
provendo a muitíssima paisagem, geografia miudamente construída, que deslumbrava,
à alma, os olhos do menino míope.
Em coisa alguma podia tocar-se, que Vovó Chiquinha, de coração exato e austera, e Chiquitinha, mamãe, proibiam. Eles, porém, regulavam-se à parte, com a duração
de personagens; o idoso e em barbas Melchior, Gaspar menos avelhado e ruivo,
Baltasar o preto – diversos mesmo naquele extraordinário orbe, com túnicas e
turbantes e sobraçando as dádivas – um atrás do outro. Dia em dia, deviam avançar
um tanto, em sua estrada, branca na montanha. Cada um de nós, pequenos, queria o
direito de pegar neles e mudá-los dos quotidianos centímetros; a tarefa tinha
de ser repartida. Então, à uma, preferíamos todos o Negro, ou o ancião Brechó,
ou el-rei Galgalaad ; preferíamos era a briga. Mas Vovó Chiquinha ralhava que não
nós, por nossas mãos, os mexíamos, senão a luz da estrela, o cometa ignoto ou
milagroso meteoro, rastro sideral dos movimentos de Deus. E Chiquitinha, para
restituir-nos à paz dos homens concordiosos, mostrava a fita coma frase em douradas
letras – Gloria in excelsis… – clara de campainhas no latim assurdado e umbroso.
No prazo de seu dia, à Lapinha iam chegar, o que nos alvoroçava, como todas as
chegadas – escalas para o último enfim, a que se aspira. Mas, de repente, muito
antes, apareciam e eram outros, com acompanhamento de vozes em falsete:

Boa noite, oh de casa,
a quem nesta casa mora…

A Folia-de-Reis – bando exótico de homens, que sempre se apresentavam
engraçadamente sérios e excessivamente magros, tinham o imprevisto decoro dos
pedintes das estradas, a impressiva hombridade esmoler. Alguns traziam instrumentos:
rabecas, sanfona, caixa-de-bater, violas. Entrava, mantinham-se de pé, em roda,
unidos, mais altos, não atentavam para as pessoas, mas apenas à sua função,
de venerar em festa o Menino-Deus. Pareciam-me todos cegos. Será, só êles veriam
ainda a Estrela? Porém, no centro, para nossa raptada admiração, dançavam os dois
Máscaras, vestidos de alegria e pompa, ao enquanto das vozes dos companheiros vindos
só para cantar:

Eis chegados a esta casa
os Três Reis do Oriente…

De onde – oásis de Arábia, Pérsia de Zaratustra, Caldeia astrológica – da parte
do Oriente ficava sua pátria incerta, além Jordão, descambado o morro do Bento
Velho, por cujo caminho, banda de cá, costumavam descer os viajantes do Araçá e
da Lagoa, e, sobre, na vista-alegre a gente se divertia com inteiros arco-íris,
no espaço das chuvas, seduzidamente, conforme vinham, balançando-se em seus camelos,
para adorar o Rei dos Judeus, fantasiados assim, e Herodes a Belém os enviava:
o Guarda-Mor e o Bastião.
Dois, só? Respondiam: que por estilos de virtude, porque, os Magos, mesmo,
não remedavam de ser. E por que os chamavam, com respeito embora, de “os palhaços”?
Bastião, o acólito, de feriada roupa vermelha, gorro, espelho na testa, e que
bazofiava, curvando-se para os lados, fazendo sempre símias e facécias,
representasse de sandeu. Mas o “mascarado velho”, o Guarda-Mor, esse trajava de truz,
seu capacete na cabeça era de papelão preto, imponente, e sérios o enorme nariz e
o bigode de pêlos de cauda de boi. Dele, a gente, a gente teria até medo.
Pulavam, batendo no chão os bastões enfeitados de fitas e com rodelas de lata, de
grave chocalhar. Um dos outros homens alteava o pau com a bandeira, estampa em pano.
Entoavam: . . . “A lapinha era pequena, não cabiam todos três… Cada um por sua
vez, adoraram todos três…” Prestigiava-se ao irreal o presépio, à grossa e humana
homenagem, velas acesas; a dança e música e canto rezando mesmo por nós, forçoso
demais, em fé acima da nossa vontade ; pasmavam-nos.
Depois, recebiam uma espórtula, fino recantando agradeciam :
“Deus lhe pague a bela esmola…” – e saíam, saudando sem prosa, só o sagrado
visitavam. Mas a gente queria acompanhá-los era para poder ver o que se contava
tanto – que, onde não lhes dessem entrada, então, de fora, bradavam cantoria torta,
a de amaldiçoar: “Esta casa fede a breu…” – e, que dentro dela morava incréu,
a zangação continuava. Em vão, porém, esperava-se turra de violências. Avisados por
um anjo, voltavam por outro caminho, seguiam se alontanando.
Se às vêzes chegavam outras, folias de maiores distâncias, sucedia-se o em tudo
por tudo. Só que, os homens, mais desconhecidos, sempre, diferentes mesma dos iguais.
Nem paravam – no vindo, ido e referido. Duas folias se encontrassem, deviam
disputar o uso desafio : a vencedora, de mais arte em luzimento, ganhando em paz,
da outra, a sacola com o dinheiro. Os estúrdios, que agora no sertão navegavam!
A gente repetia de os esquecer.
Celebrava-se o dia 6, Vovó Chiquinha desmanchava o presépio, estiava o tempo
em veranico entes do São Sebastião frechado. Por quanto, tornavam a falar nos
foliões, dêles não sendo boas, nem de casta lembrança, as notícias aportadas.
Sabia-se que, por adiante, facilitavam aos poucos de receber no grupo
aparasitados e vadios, pegavam desrumo, o Canto sacro dava mais praça a poracé e
lundu, perdiam o conselho. Já mal podiam trocar as fardas, vez em quando, desfeitos
do suor e das poeiras e chuvaradas. Passavam fome, quando não entravam em
pantagruomérico comer, dormiam irrepousadamente, bebiam do tonel das danadas;
pintavam o caneco. Nem honravam mais as praxes de preceito. Uma folia topava outra,
e, sem nem um mal-entendimento, em vez de avença desapoderavam-se logo, à acossa,
enfrentemente: batiam à fôrça aberta, a bastão, a pau de bandeira, a cacête,
espatifavam-se nas cabeças os tampos de rabecas e violas.
Só que não podiam tão cedo parar, no ímpeto de zelo, e iam, iam, à conta inteira,
de lugar em lugar, fazenda em fazenda, ultrapassavam seu prazo de cessação,
a Epifania, queriam os tantos quantos são nos presépios e os meninos-de-jesus
do mundo. Mas, era como se, ao passo com que se distanciavam da Natal, no tempo,
fossem perdendo sua mágica realidade e a eficácia devota, o furor de fervor
não dava para tanta lonjura, e de tão esticado se estragava. Assim naufragavam
por aí, espandongados, adoentados, exaustos, caindo abaixo de sono, em pé mesmo se
dormiam. Derrotados, recuavam então, retornando, debandando – se coitados, se
danados – não raro sob ameaça e apupos, num remate da santa desordem, na matéria
merencória.

A gente se entristecia, de saber, receávamos não voltassem, mais nunca,
não houvesse a valente Festa de Reis, beleza de piedade, com o Bastião truão e
o Guarda-Mor destronado.
– “Mas, sim, êles voltam. Para o ano, se Deus quiser, todos voltam. Sempre, mesmo.
Hão de recomeçar…” Os meninos se sorriam.-“…Eles são homens de boa-vontade…” –
repetia Chiquitinha.

Ave, Palavra – Nova Fronteira, 5ª edição, p.105/109)

Redação

2 Comentários

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  1. Folia dos Reis Magos

    Sabor de infância, que saudade! Só o Mestre Rosa para nos contar com tantos detalhes essa parte da tradição da Festa e da Folia de Reis!

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