Para onde deve viajar um judeu, se não quiser morrer na terra devastada?, por Sebastião Nunes

Nós mesmos, os seres humanos, vamos nos encarregar de destruir a vida na Terra. Já vivi o suficiente para saber que a hipótese é cada dia mais possível, e a guerra atual é a maior prova disso. Este texto é o espelho fiel do que penso.

Writer Philip Roth at his home in Manhattan. Roth, an American novelist, has been writing award-winning fiction since 1959.

Para onde deve viajar um judeu, se não quiser morrer na terra devastada?

por Sebastião Nunes

Philip Roth atravessou o saguão do aeroporto JFK, em Nova Iorque, e ergueu o pescoço até apontar o nariz para o quadro de chegadas e partidas. O aeroporto estava em ruínas. Ninguém nos guichês de vidros quebrados e máquinas desligadas. O quadro de avisos mostrava raras alternativas, se é que estava atualizado.

Gastara o resto da gasolina do apartamento em Manhattan até ali. Sua derradeira esperança. Depois, só a pé, pois não havia mais postos de gasolina.

Com ele estavam a primeira ex-esposa real, porém defunta, Margaret Martinson e algumas personagens femininas de romances: Dawn Levov (A pastoral americana), Drenka (O teatro de Sabbath), e três de um único livro: Nancy, filha; Phoebe, segunda esposa; e Maureen, enfermeira, o trio central de O homem comum, um livro sobre fracasso, decadência e morte.

98% dos voos cancelados. Para nenhuma cidade grande ou média da Europa, para nenhuma cidade grande ou média dos Estados Unidos. Nada de voos para África, Ásia, América do Sul e Central. Austrália e Nova Zelândia ofereciam alguns voos. Mas quem se atreveria a permanecer 30 horas dentro de um alvo móvel, no ar, com mísseis cruzando os céus em todas as direções?

– Temos pouca escolha – disse afinal. – O que preferem vocês?

Margaret tomou a frente:

– Como sou a única de carne e osso aqui, embora de carne comida por vermes e ossos esburacados, creio que tenho o direito de opinar antes das outras.

– Vá em frente – disse Roth. – Embora, em minha opinião, a Drenka de Sabbath, apesar de personagem, esteja mais viva do que você. Pelo menos ela nunca me exibiu amostras falsas de gravidez pra me obrigar a casar.

Margie ignorou a ofensa.

– Entre Austrália e Nova Zelândia, escolho Nova Zelândia. Sempre detestei a Austrália, com todos aqueles coelhos e cangurus.

Como judeu estadunidense, nascido e criado em Newark, ali coladinho, Roth sabia o que era ter ascendência judaica num país imperialista totalmente controlado por góis. Mas precisava saber a opinião dos outros.

EM CENA OS PERSONAGENS

A madura Drenka, que enlouquecia Sabbath com a exibição dos seios fartos, era croata e cometeu o absurdo de morrer deixando o velho sátiro de pau na mão.

– Prefiro ir para a Croácia – disse ela.

– Mas não há voos para a Croácia – explicou Roth. – A guerra começou lá perto.

– Sou uma personagem e, portanto, imaterial, lembra-se? – contrapôs Drenka. – Posso ir voando, ou pairando, ou flutuando, como você preferir. Numa boa.

Dawn Levov, mulher belíssima, ex-miss New Jersey e concorrente derrotada a Miss Estados Unidos 1949, era casada com o bonitão e bem-sucedido Sueco, mãe de Merry, uma garota feiosa e gorda com oscilações maníaco-depressivas, que atormentava a vida dos pais. Criadora de vacas de raça, foi a segunda a opinar:

– Gostaria de ir para Roraima, no Brasil. Compraremos uma fazenda enorme por uma ninharia.

– E se for reserva indígena? – argumentou Roth, geograficamente atualizado.

– A gente expulsa – foi taxativa a fazendeira. – Chamamos o exército brasileiro e expulsamos os selvagens. O Brasil de Bolsonaro é um país sem leis. Já li a respeito.

Roth olhou as luzes acesas. Nenhuma indicava qualquer lugar no Brasil.

– Sem chance – disse ele. – Nancy?

Nesse momento as luzes dos aeroportos da Austrália e Nova Zelândia apagaram. Não restava um único lugar do mundo para onde fugir.

– Nenhum aeroporto tem luz acesa – disse Nancy, piscando intensamente.

– Não importa, meus queridos – murmurou Phoebe, quase transparente em sua absoluta magreza. – Iremos para qualquer lugar. Juntos, estaremos bem.

– Concordo – aprovou a exuberante Maureen, que lembrava bem das longas tardes no apartamento do Homem comum, quando a terceira esposa, a modelo dinamarquesa 26 anos mais nova que o marido, saía para fazer compras. “Ah”, suspirou ela. “Como era bom!”.

Roth sentou numa mala e esticou as pernas compridas. Apontou novamente o narigão para o quadro de avisos. Nada, para lugar nenhum. Olhou para Margie, sua ex-esposa verdadeira; olhou para as personagens, que amava com paixão e/ou ternura ou os dois sentimentos misturados. Fechou os olhos e fez o que talvez fosse o último discurso de sua vida.

– Minhas queridas. Estamos no mato sem cachorro. Podemos ficar aqui ou sair andando sem rumo. Tanto faz. Imagino que este seja o fim da linha para a espécie humana, judeus ou góis. Quem sabe chegou o tempo de dar uma chance a espécies mais sábias e criativas do que nós? Pensem em como a Terra é bonita. Pensem na infinidade de espécies de animais e vegetais que extinguimos com nossa vontade de poder. Pensem que, sem nós, aos poucos, devagarinho, a natureza será capaz de se regenerar e criar alguma coisa de mais belo, sensato e duradouro. De minha parte estou de acordo. De minha parte estou pronto para deixar a Terra em paz.

Ergueu a cabeça e olhou em volta. Todos o olharam de volta, sorrindo, exceto a carrancuda Margie. Ninguém disse nada. Ninguém tinha nada para dizer.

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“Ignorante em relação ao governo, à história, à ciência, à filosofia e à arte, incapaz de expressar ou reconhecer sutilezas ou nuances, destituído de toda decência e possuidor de um vocabulário de setenta e sete palavras que deveria ser chamado de babaquês, em vez de inglês.” (Philip Roth a respeito de Donald Trump. Mudando a última palavra para português, a carapuça cabe perfeitamente em Jair Bolsonaro, admirador e cúmplice de Trump.)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Sebastiao Nunes

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