Preto, pobre e poeta – que puta azar, hein, Adão Ventura? Por Sebastiao Nunes

Colagem do autor sobre foto de Adão Ventura


 

Por Sebastiao Nunes

Vezes sem conta palmilhei, tarde da noite, as ruas do Santo Antônio, bairro de classe média branca de Belo Horizonte. Ao meu lado, o patético poeta negro perseguia inalcançáveis louras de olhos azuis ou verdes, entrevistas numa rua, numa loja, num bar, numa livraria – entrevistas entre sonhos e esperança.

Adão era preto e não sabia. Quase opaco de tão negro, tinha lábios grossos, pés esparramados e a inconsciência do negro recém-forro.

Adão era pobre e fazia de conta que não: bebericava nas mesas do Lucas com a mesma placidez dos brancos remediados e, na hora de pagar, sacava a eterna nota de Cr$100,00, afirmando não ter trocado. Nunca tinha. E nunca pagava.

Adão era poeta, dos bons, e sabia de seu talento para a música dos versos, tanto que publicava poemas surrealistas no vanguardista Suplemento Literário de Minas Gerais, dirigido pelo exigente contista Murilo Rubião.

Adão Ventura tinha muitos amigos no cinturão branco que era então a Zona Sul de Belo Horizonte. Vivíamos, em febre e timidez, a década caótica de 1960.

 

O BALANÇA MAS NÃO CAI

Algumas vezes – não tantas como exigiria a lenda – subi a pé os 12 andares do edifício da Tupis com Amazonas, no centro de BH. Condenado ao abandono por defeito estrutural que desconhecíamos, permanecia de portaria aberta dia e noite. Sem elevador, sem eletricidade, sem faxina, sem água, sem regras e sem lei – seus moradores eram os corajosos sem-teto daquela época: estudantes, balconistas, pequenos funcionários, camelôs das redondezas, mendigos ocasionais, que saíam de manhã para voltar de noite, nunca mais de uma subida e uma descida por dia que ninguém é de ferro. Só os afortunados, moradores do 4º andar para baixo, se atreviam a mais.

No Balança, Adão convivia com ratos, baratas e restos de comida jogados pelos cantos, ao lado de roupas manchadas, meias furadas, cuecas fedorentas. E muitos livros: Direito, poesia, ensaios e ficção, principalmente poesia, a maioria dos quais oriundos do Suplemento, depois de resenhados com boa (ou má) vontade por Jaime Prado Gouvêa, Humberto Werneck, Luís Gonzaga Vieira, Manoel Lobato, Laís Corrêa de Araújo e tantos outros, principiantes ou não.

No Balança Mas Não Cai Adão era rei como Zumbi em Palmares.

 

OS PRIMEIROS LIVROS

Em 1970 tive o privilégio de criar a capa do primeiro livro de Adão, de poemas surrealistas e título magnífico: “Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul”, título que valia um poema e até um livro inteiro.

Em 1976 tive mais uma vez o privilégio de desenhar a segunda capa para Adão, ainda de poemas surrealista e outro título magnífico, embora curto: “As musculaturas do Arco do Triunfo”.

Por que surrealistas?

Porque Adão era negro e não sabia. Tinha pai e mãe vivos, tinha irmãos, primos e sobrinhos, sabia que seus avós foram escravos – mas não sabia que era negro.

Ninguém hoje sabe o que foi ser intelectual negro na década de 1960 em Belo Horizonte. Orgulhosos de suas raízes, os negros de hoje sabem o que querem, de onde vieram e o que aspiram. Naquela época, não. Esmagado pela riqueza dos brancos, pela cultura dos brancos, pela segurança dos brancos, o negro enfiava o rabo entre as pernas e tentava o impossível: passar por branco.

Alguém chamaria tal postura de covarde? Hoje, talvez sim, porque ninguém sabe mais o que foi ser intelectual negro em BH (ou em São Paulo, ou em Curitiba ou em Florianópolis) na década de 1960: o massacre silencioso era completo.

 

A AVENIDA QUE DIVIDIA O MUNDO

Não será bem verdadeiro, mas talvez seja: a Avenida Afonso Pena, no centro de Belo Horizonte, praticamente cortava em duas a cidade centrífuga: dali para cima, rumo à Zona Sul, era a cidade dos brancos de classe média e dos ricos; dali para baixo, rumo aos bairros periféricos, a cidade de negros, pardos, mulatos e brancos pobres.

Claro: havia os bairros intermediários, fronteiriços, que permitiam e admitiam a miscigenação de cores e empregos ou ofícios de medianos para baixo: os que ganhavam pouco não podiam se dar ao luxo de discriminar, embora a maioria deles se desse ao gosto do preconceito e o exercesse com prazer.

Adão era um dos raros negros no baile cotidiano dos brancos. Por sorte, ou por azar, teve o privilégio da inteligência superior e outro privilégio quase mortífero: força de vontade acima da media, em busca de, como intelectual, se afirmar.

A junção desses dois fatores permitiu-lhe formar-se em Direito numa época em que os doutores de qualquer profissão eram, com raríssimas exceções, brancos.

Mas Adão quis mais: pretendeu se tornar poeta dos bons – como se replicasse, mais de meio século depois, a façanha de Cruz e Sousa na provinciana Desterro, atual Florianópolis, da qual foi salvo pelos amigos influentes e pelo Rio de Janeiro.

 

ADÃO VENTURA SE DESCOBRE NEGRO

Foram necessários quase 30 anos de confronto para que o beiçudo crioulinho mineiro, neto de escravos nascido em Santo Antônio do Itambé, soubesse que era negro.

E só descobriu porque passou um ano inteiro vivendo nos Estados Unidos.

Mas esse já é outro capítulo de uma velha história.

Sebastiao Nunes

7 Comentários

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  1. Azar aonde? Agora que eh
    Azar aonde? Agora que eh modinha usar preconceito como muleta pra se promover, azar aonde? Isso é sorte e oportunismo puro, td dia, td hora, uma salva de palmas pra alguem pq eh minoria

  2. Domingos

    Quantos Adão Ventura tivemos…  No bairro onde morava quando criança havia o bêbado e o doido. O bêbado, soube mais tarde era um homem de familia de classe média alta, que tinha sido casado e que o alcoolismo acabou por joga-lo na rua. Ou seria a familia? Ou a sociedade ? Ou o fracasso da construção humana? O “doidinho”, que recitava versos e andava sempre com um cachorrinho, era um negro, que ninguém soube de onde vinha. Ele não falava de sau vida. E apesar dos adultos nos dizerem para não nos aproximarmos muito do Domingos, nos gostavamos muito dele. Davamos a ele pão e ele nos dava versos… tinhas grandes e bonitos olhos tristes e belo sorriso. Morreu na rua e até hoje me lembro dos versinhos que fazia para nos e para seu cachorrinho. Era um cavalheiro. 

  3. Escrevia bonito, o rapaz!

    FAÇA SOL OU FAÇA TEMPESTADE

     

    faça sol ou faça tempestade,

    meu corpo é fechado

    por esta pele negra.

     

    faça sol ou faça tempestade

    meu corpo é cercado

    por estes muros altos,

    — currais

    onde ainda se coagula

    o sangue dos escravos.

     

    faça sol

    ou faça tempestade,

    meu corpo é fechado

    por esta pele negra.

     

    Mais poemas dele em

    http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/minas_gerais/adao_ventura.html

     

     

  4. Putz! que texto fila da puta,

    Putz! que texto fila da puta, muito foda! O cara viva cego, mas lá nos states, as coisas são bem mais claras…e bem mais escuras, as coisas lá não são morenas, nem mulatas…

  5. Poesia negra brasileira

    A poesia negra brasileira está completando dois séculos de existência e o rol de autores a serem resgatados e celebrados não é pequeno. Uns poucos exemplos (poemas extraídos do blogue Poesia contra a guerra):

    Xarapim eu bem estava (1826)

    Caldas Barbosa

     

    Xarapim eu bem estava

    Alegre nest’aleluia,

    Mas para fazer-me triste

    Veio Amor dar-me na cuia.

     

    Não sabe, meu Xarapim,

    O que amor me faz passar,

    Anda por dentro de mim

    De noite e dia a ralar.

     

    Meu Xarapim, já não posso

    Aturar mais tanta arenga,

    O meu gênio deu à casca

    Metido nesta moenga.

     

    Amor comigo é tirano,

    Mostra-me um modo bem cru,

    Tem-me mexido as entranhas

    Qu’estou todo feito angu.

     

    Se visse o meu coração

    Por força havia ter dó,

    Porque o Amor o tem posto

    Mais mole que quingombó.

     

    Tem nhanhá certo nhonhó,

    Não temo que me desbanque,

    Porque eu sou calda de açúcar

    E ele apenas mel do tanque.

     

    Nhanhá cheia de chulices,

    Que tantos quindins afeta,

    Queima tanto a quem a adora

    Como queima a malagueta.

     

    Xarapim tome o exemplo

    Dos casos que vê em mim,

    Que se amar há de lembrar-se

    Do que diz seu Xarapim.

     

    [Estribilho]

    Tenha compaixão

    Tenha dó de mim,

    Porqu’eu lho mereço

    Sou seu Xarapim.

     

    Coleirinho (1861)

    Luiz Gama

     

    Canta, canta Coleirinho,

    Canta, canta, o mal quebranta;

    Canta, afoga mágoa tanta

    N’essa voz de dor partida;

    Chora, escravo, na gaiola

    Terna esposa, o teu filhinho,

    Que, sem pai, no agreste ninho,

    Lá ficou sem ti, sem vida.

     

    Quando a roixa aurora vinha

    Manso e manso, além dos montes,

    De oiro orlando os horizontes,

    Matizando as crespas vagas,

    – Junto ao filho, à meiga esposa

    Docemente descantavas,

    E na luz do sol banhavas

    Finas penas – n’outras plagas.

     

    Hoje triste já não trinas,

    Como outr’ora nos palmares;

    Hoje, escravo, nos solares

    Não te embala a dúlia brisa;

    Nem se casa aos teus gorjeios

    O gemer das gotas alvas

    – Pelas negras rochas calvas –

    Da cascata que desliza.

     

    Não te beija o filho tenro,

    Não te inspira a fonte amena,

    Nem da lua a luz serena

    Vem teus ferros pratear.

    Só de sombras carregado,

    Da gaiola no poleiro

    Vem o tredo cativeiro,

    Mágoa e prantos acordar.

     

    Canta, canta Coleirinho,

    Canta, canta, o mal quebranta;

    Canta, afoga mágoa tanta

    N’essa voz de dor partida;

    Chora, escravo, na gaiola

    Terna esposa, o teu filhinho,

    Que sem pai, no agreste ninho,

    Lá ficou sem ti, sem vida.

     

    Retirada, esconsa e morta (1881)

    B. Lopes

     

    Retirada, esconsa e morta

    a casa de minha prima;

    floresce de baixo a cima

    o jasmineiro da porta.

     

    Mas os canários exorta

    o viço de um pé de lima,

    que, de pesado, se arrima

    aos moirões secos da horta.

     

    De tarde cose à janela

    para, às horas do costume,

    ver-me apontar na cancela…

     

    Guarda-me figos, ameixas;

    e, trescalando a perfume,

    o bogari das madeixas.

     

    Agonia do coração (1900)

    Auta de Souza

     

    Estrelas fulgem da noite em meio

    Lembrando círios louros a arder…

    E eu tenho a treva dentro do seio…

    Astros! velai-vos, que eu vou morrer!

     

    Ao longe cantam. São almas puras

    Cantando à hora do adormecer…

    E o eco triste sobe às alturas…

    Moças! não cantem, que eu vou morrer!

     

    As mães embalam o berço amigo,

    Doce esperança de seu viver…

    E eu vou sozinha para o jazigo…

    Chorai, crianças, que eu vou morrer!

     

    Pássaros tremem no ninho santo

    Pedindo a graça do alvorecer…

    Enquanto eu parto desfeita em pranto…

    Aves, suspirem, que eu vou morrer!

     

    De lá do campo cheio de rosas

    Vem um perfume de entontecer…

    Meu Deus! que mágoas tão dolorosas…

    Flores! Fechai-vos, que eu vou morrer!

     

    A primeira pedra (1913)

    Hermes Fontes

     

    – Corpo que se encontrou abandonado de alma,

    corpo que se não pôde à ação do ar decompor –

    uma pedra é uma vaga imóvel… É uma calma

    recordação do mar de que foi leito a estrada,

    uma vaga do mar dos Tempos, retardada,

    que por aí ficou sem sentidos, parada,

    adormecida por um íntimo torpor.

     

    É a Impossibilidade esculturada. Dorme.

    Secou-lhe o sangue, e não consegue apodrecer.

    Vive? É possível. Morre? É provável. Conforme

    a Vida e a Morte… A pedra é um ponto de partida.

    É o princípio da Morte, é o princípio da Vida…

    É um gesto contrariado, é uma força contida,

    É o Ser que adormeceu em caminho do Ser…

     

    Negro forro (1980)

    Adão Ventura

     

    minha carta de alforria

    não me deu fazendas,

    nem dinheiro no banco,

    nem bigodes retorcidos.

     

    minha carta de alforria

    costurou meus passos

    aos corredores da noite

    de minha pele.

     

    Encontrei minhas origens (1981)

    Oliveira Silveira

     

    Encontrei minhas origens

    em velhos arquivos

    … livros

    encontrei

    em malditos objetos

    troncos e grilhetas

    encontrei minhas origens

    no leste

    no mar em imundos tumbeiros

    encontrei

    em doces palavras

    … cantos

    em furiosos tambores

    … ritos

    encontrei minhas origens

    na cor da minha pele

    nos lanhos de minha alma

    em mim

    em minha gente escura

    em meus heróis altivos

    encontrei

    encontrei-as enfim

    me encontrei

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