Procura da Poesia, por Carlos Drummond de Andrade

14 de março, dia da poesia

Inspiração do Poeta (c.1630) de Nicolas Poussin (1594-1665) – Acervo do Museu do Louvre, Paris.

Enviado por Gilberto Cruvinel

Procura da Poesia
Carlos Drummond de Andrade.

 

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a 
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. 
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito 
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

…………………………………………………………………………………….

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião; 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1971.

 

Procura Da Poesia, Drummond – Antologia Poética (1977)

 

Redação

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O erro de outro poeta
    O sujeito (e o objeto) da poesia
    não está na trama
    de um único poeta.  Cada poeta é uma poesia
    inconclusa
    que em cada verso
    denuncia o poeta que virá.
    O erro de outro poeta  Cada poeta que define a poesia
    o faz de acordo com seu verso
    e se limita a política
    do fardão acadêmico que desde então
    enverga.  Ousar dizer ao poeta
    que seu verso erra ao definir a poesia
    é ousar fazer poesia
    quando o verso erra ao definir
    o erro de outrro poeta.

     

  2. Os ombros suportam o mundo

    Ouvir a voz de Carlos Drummond me traz um certo reconforto. Que bom ainda existir poesia e poetas para traduzir o que sentimos e vivemos.

    Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. 
    Tempo de absoluta depuração. 
    Tempo em que não se diz mais: meu amor.
    Porque o amor resultou inútil. 
    E os olhos não choram. 
    E as mãos tecem apenas o rude trabalho. 
    E o coração está seco.

    Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
    Ficaste sozinho, a luz apagou-se, 
    mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
    És todo certeza, já não sabes sofrer. 
    E nada esperas de teus amigos.

    Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? 

    Teus ombros suportam o mundo 
    e ele não pesa mais que a mão de uma criança. 
    As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios 
    provam apenas que a vida prossegue 
    e nem todos se libertaram ainda.

    Alguns, achando bárbaro o espetáculo, 
    prefeririam (os delicados) morrer.
    Chegou um tempo em que não adianta morrer. 
    Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. 
    A vida apenas, sem mistificação.

  3. trouxeste a chave para

    trouxeste a chave para penetrar surdamente no reino as palavras???…

    bravíssimo drummpond, nosso maior e mais digno poeta…

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador