Salvando o domingo da cacofonia, por F. Ponce de León


Foto: Divulgação

Enviado por Felipe A. P. L. Costa

Salvando o domingo da cacofonia

Por F. Ponce de León

Do blog Poesia contra a guerra

O fim de semana carece de saneamento. Deveríamos evitar o futebol, as baratinhas alopradas e o telecatch; deveríamos, sobretudo, nos livrar do lixo tóxico oferecido pela TV e pela internet.

As manhãs de domingo, por exemplo, poderiam ser reservadas à poesia. Trata-se de um universo prontamente acessível, embora, ouso dizer, permaneça ignorado pela maioria dos brasileiros. (Quando alguém levanta o dedo e evoca um poema, muitos de nós ainda pensamos tão somente em frases rimadas, modinhas folclóricas ou letras de canções.)

Exercício mental. Feche os olhos por um instante e pense: o que faço aqui, diante da TV ligada, assistindo ao desafio da rampa gigante? Ou espionando a casa de alguma dessas celebridades de palha que povoam o mundo de hoje? Tais baboseiras – ‘atrações’, no jargão publicitário –, criadas para vender apólices de seguro, cervejas ou desodorantes, ou qualquer outra coisa da qual você não precisa, estão apenas a preencher hoje o vazio existencial que cavaram ontem.

Por que não estou lá fora, sob a sombra de uma árvore, no quintal da casa de um amigo ou em uma praça pública, lendo alguma coisa que faça o meu cérebro ‘borbulhar’? Quer experimentar? Pois então vamos juntos…

Em 1923, o poeta estadunidense Wallace Stevens (1879-1955) publicou em livro o poema ‘Sunday morning’. Eis uma versão em português [1]:

 

Manhã de domingo

Wallace Stevens

 

i.

Complacência de penhoar, café

E laranjas ao sol das onze horas,

Verde indolência de uma cacatua

No tapete – isso ajuda a dissipar

O santo silêncio do sacrifício.

Mas ela sonha, e sente aproximar-se,

Escura e lenta, a catástrofe antiga,

Como o descer da noite sobre as águas.

O odor das frutas, o brilho de asas verdes

Virão talvez da procissão dos mortos,

Que atravessa as águas, silenciosa.

Aquietou-se para dar passagem

A seus pés sonhadores sobre os mares

A Terra Santa de sangue e sepulcro.

 

ii.

Por que legar aos mortos o que é seu?

O que é o divino, se se manifesta

Somente em sonhos, sombras silenciosas?

Por que não encontrar prazer no sol,

No odor das frutas, brilho de asas verdes,

Em qualquer outro bálsamo terreno,

Tão caro quanto o próprio paraíso?

É nela que o divino há de viver:

Paixões chuvosas, cismas de nevascas,

Negras solidões, gozos incontidos

Quando a floresta se abre em flor; lufadas

De emoção em noites frescas de outono;

Toda dor e delícia; gordos ramos

De verão, galhos desnudos de inverno.

Estes, os ritmos próprios de sua alma.

 

iii.

Nas nuvens nasceu Jove, o não-humano,

Que mãe não aleitou, e em relva fresca

Com passos divinais jamais pisou.

Caminhou entre nós, um rei absorto,

Magnífico, portento entre os humildes,

Até que sangue humano e virginal

Mesclou-se ao céu, anseio tão intenso

Que o viram os mais humildes, numa estrela.

Quem sabe nosso sangue ainda virá

A ser do paraíso? Será a terra

O único paraíso possível?

O céu ainda será nosso aliado,

Na dor e no cansaço, quase igual

Em glória ao próprio amor imorredouro,

Não mais um muro indiferente e azul.

 

iv.

Diz ela: “Quando os pássaros questionam

Com cantos matinais a realidade

Dos campos enevoados, sou feliz;

Mas quando vão-se embora, e vai-se junto

Toda a paisagem, onde o paraíso?”.

Não há nenhuma negra profecia,

Não há quimera sepulcral tampouco,

Nem ilha melodiosa, habitada

Por espíritos, nem doce eldorado

No sul, nem palmeira em longínqua névoa

De outeiro no céu, que perdure mais

Do que o verdor da primavera, mais

Que a lembrança de uma manhã com pássaros,

Ou um desejo de tarde de verão

Consumada em asas de andorinhas.

 

v.

Diz ela: “Ainda assim, sei que preciso

De alguma alegria imperecível”.

A morte é a mãe do belo, e só a morte

Satisfaz nossos sonhos e desejos.

Ainda que ela espalhe as folhas secas

Do aniquilamento a nossa frente

Pelo caminho da dor, pelos muitos

Caminhos onde exultou a vitória,

Ou onde o amor sussurrou sua ternura,

Faz o salgueiro estremecer ao sol,

Para moças que antes sonhavam na relva

E agora se levantam. Faz rapazes

Juntarem maçãs e ameixas novas

Num prato esquecido. As moças provam,

E apaixonadas andam sobre folhas.

 

vi.

Não haverá morte no paraíso?

Não cairá a fruta madura? Os galhos

Hão de ficar para sempre carregados

Naquele céu perfeito e imutável,

E ao mesmo tempo semelhante ao mundo

Mortal, com rios que buscam sempre mares

Que nunca hão de tocar com lábios mudos?

De que servem as maças nessas margens?

Por que adoçar com ameixas aquelas praias?

Que triste, lá brilharem nossas cores,

Tecer-se a seda de nossas manhãs,

Soarem nossos violões insípidos!

A morte é a mãe de todo o belo, mística,

E no seu seio cálido sonhamos

A mãe terrena, insone, a nossa espera.

 

vii.

Homens ágeis e alegres, de mãos dadas,

Numa manhã de verão, em plena orgia,

Hão de cantar em devoção ao sol,

Não como deus, mas como um deus seria,

Nu entre eles, uma fonte bárbara.

E seu canto há de ser paradisíaco,

Saído do seu sangue para o céu;

E em seu canto entrará, em cada voz,

O lago que deleita o seu senhor,

As árvores seráficas, e os montes

Por muito tempo a repetir sua música.

Conhecerão a sagrada irmandade

De homens mortais e estivais manhãs.

E de onde vieram, e para onde irão,

O orvalho em seu pés indicará.

 

viii.

Ela ouve, nas águas silenciosas,

Uma voz gritar: “O Santo Sepulcro

Não é alpendre onde repousem espíritos,

É o túmulo onde jazeu Jesus”.

Vivemos nesse velho caos de sol,

Ou velha servidão de noite e dia,

Ou solidão de ilha, livre e solta,

De águas silenciosas e implacáveis.

Cervos andam pelos montes; codornas

Assobiam, espontâneas; e nas matas

Amoras silvestres amadurecem.

E, no isolamento do azul,

Ao entardecer, pombas revoam a esmo,

Fazendo ondulações ambíguas, vagas,

Em direção à sombra, com suas asas.

 

Meio século depois, o poeta brasileiro Jorge Wanderley (1938-1999) publicou em livro a seguinte homenagem [2]:

 

À manha de domingo de Wallace Stevens

Jorge Wanderley

 

Manhã, claro jardim de antiga renda vegetal

mantida em grades de onde outrora o mar se via;

manhã filtrada nos cabelos de tua mulher,

ô meu poeta,

que deitada sobre um passado grego ainda não sabe

se vai, se jamais foi

à missa.

 

Tudo é manhã no teu poema de inverno

onde o sol é apenas uma memória de sol,

saudade dele;

os canários verdes; o robe

entreaberto, por onde uma cadência de pernas

ressoa em acordes mornoquentes.

 

Tua imaginação ou tua vizinha,

eis que no corpo dela algo ainda dorme

na manhã alta.

 

Não em ti, que a vês ou pensas

e de tua velhice desperta descobres o amor

entre duas ou três invenções

sonolentas

e jovens:

a tumba no vale e seu antagonista, o cômoro,

a complacência do robe e umas lembranças de Deus.

 

Gostou? Pois a boa notícia é que há muito mais por aí. Procure. Explore. (E não se preocupe: não será necessário quebrar a TV; mantê-la desligada já será o suficiente.)

 

Notas

[1] Mantive a grafia original. A tradução é de Paulo Henriques Britto e foi extraída da coletânea Poemas (Companhia das Letras, 1987), que traz ainda o original em inglês. Há um verbete sobre WS na Wikipedia; ver aqui.

[2] Extraído de Jorge Wanderley: Antologia poética (Ateliê, 2001), organizado por Márcia Wanderley. Não consegui localizar um verbete sobre JW na Wikipedia.

Redação

1 Comentário

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  1. Salvando o domingo da cacofonia

    Sem sombra de dúvidas, não só o domingo está comprometido com reacionários empresários da FIESP e de organismos de comunicação em massa, mas toda a semana. O que salva são alguns canais da rede de mídias, que resistem ao massacre da poesia e da arte laicas.

    Há algum tempo vivemos o terror da usurpação e entreguismo, no desmonte de tudo que levamos muitos anos e guerras para conquistar.

    À Luta… Filhos da Pátria!

    Exigimos o fim da depravação midiática.

    Quando se assume corrupta, a pessoa limita possibilidades poéticas…

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