Textos inéditos de Fernando Pessoa são encontrados na África do Sul

Jornal GGN – Pesquisadores encontraram mais de dois mil documentos que pertenceram ao poeta Fernando Pessoa. Entre eles, diversas carta e poemas. 

A caixa com os papéis estava em uma garagem em uma casa na África do Sul, onde o poeta português viveu quando era criança.

O acervo foi transferido para a Universidade Brown nos EUA, que possui um centro de estudos da literatura portuguesa.

Da Folha de S. Paulo

Caixa com textos inéditos de Fernando Pessoa é encontrada na África do Sul

Por Maurício Meireles

Criança, Fernando Pessoa gostava de pegadinhas. Metia-se em fantasias horripilantes para assustar os empregados e, já então um fingidor, recrutava os irmãos para pequenas peças em casa. Mas sentia um medo danado de trovão. Por isso, escondia-se em locais escuros, cobrindo a cabeça para não ouvir o barulho.

O relato sobre a infância do poeta está em uma carta inédita de Teca, sua meia-irmã, enviada nos anos 1970 ao pesquisador britânico Hubert Jennings, um dos primeiros biógrafos do poeta.

O poeta português Fernando Pessoa

O manuscrito compõe um conjunto de 2.000 documentos encontrados por um grupo de pesquisadores, após passar décadas em uma garagem na África do Sul, onde o poeta viveu criança.

A descoberta foi feita em julho, quando os filhos de Jennings procuravam um local para o espólio do pai, morto há 23 anos, e tratada com discrição até agora. O conjunto de documentos de e sobre Pessoa foi transferido para a Universidade Brown nos EUA, que conta com um importante centro de estudos da literatura portuguesa.

Ainda é cedo para dizer com exatidão tudo que há no espólio -mas um primeiro olhar acaba de aparecer na “Pessoa Plural”, revista de estudos pessoanos publicada por Brown.

Há transcrições de documentos do espólio de Pessoa –que Jennings visitou nos anos 1950, muito antes de o acervo ir para a BNP (Biblioteca Nacional de Portugal).

Como a caligrafia do poeta é difícil de entender –às vezes, não dá para saber nem em que língua os textos foram escritos-, o trabalho de Jennings serve de atalho.

O inglês chegou a fazer um inventário do espólio pessoano, que deve ser confrontado com o da instituição portuguesa, a fim de saber que documentos podem ter se perdido.

CARTAS PERDIDAS

A esperança de haver materiais que nunca seriam conhecidos tem um motivo: foi encontrada a transcrição uma carta de Pessoa a seu meio-irmão John, de 28 de fevereiro de 1934. O documento não está na BNP e, até onde se sabe, tampouco entre os papéis que a família do poeta ainda tem consigo em Portugal.

Também foi achado na caixa o livro inédito “The Poet of Many Faces”, uma compilação, reunida por Jennings, de poemas em inglês escritos por Pessoa. Tivesse saído, o pesquisador teria sido um dos primeiros a publicar a poesia inglesa de Pessoa.

Como homenagem ao trabalho de Jennings, o pesquisador argentino Patrício Ferrari, especialista na obra inglesa e francesa do português, publica na “Pessoa Plural” 25 poemas inéditos do autor –dois dos quais já haviam sido transcritos por Jennings. O material já está disponível na versão on-line do periódico.

O poeta aos 13 anos, em 1901, época em que morava na África do Sul

“A vida e a obra d Pessoa são um quebra-cabeça. Sabemos que há milhares de documentos que não foram publicados. O acervo do Jennings ajuda a montar esse quebra-cabeça”, diz o brasileiro Carlos Pittella-Leite, pesquisador bolsista da Universidade de Lisboa que foi o primeiro, junto a Patrício Ferrari, a consultar a papelada.

Pitella-Leite, editor convidado da “Pessoa Plural”, que ajudou na transferência do acervo para Brown, calcula que ainda deve demorar um ano para a instituição fazer todo o inventário dos papéis. Só então se terá uma ideia mais exata de tudo de inédito que há no espólio de Jennings.

Mesmo que a caixa não tivesse documentos desconhecidos de Fernando Pessoa, a descoberta ainda assim seria valiosa, por trazer as pesquisas de Jennings sobre o autor português e as impressões do britânico sobre Portugal.

Um diário do intelectual, por exemplo, conta o dia a dia em Portugal em 1968 -ano em que o ditador António Salazar caiu. O documento ajuda a reconstruir a rotina portuguesa nos meses que antecederam a derrocada do ditador.

A descoberta dos documentos também permitiu determinar a autoria de um ensaio sobre os heterônimos pessoanos em poder Manuela Nogueira, sobrinha do poeta lusitano. Uma carta de Michael, outro meio-irmão de Pessoa, no qual ele dá dicas a Jennings sobre um livro, sugere que o próprio pesquisador seja o autor do ensaio.

O britânico é mais um caso notório de estrangeiro que se desenvolveu uma relação profunda com a obra de Fernando Pessoa, ao lado do mexicano Octavio Paz e do italiano Antonio Tabucchi.

Jennings -que, como Camões, perdeu um olho em batalha, ao lutar na Primeira Guerra Mundial- descobriu o poeta, aos 70 anos, ao escrever a história da Durban High School, escola na África do Sul onde Pessoa estudou na infância, entre 1899 e 1904. Mudou-se para Portugal a fim de estudar a obra do autor.

ÁFRICA DO SUL

A caixa com seus documentos estava na garagem de sua sobrinha, na África do Sul. Os papéis foram encontrados quando ela se mudou de Joanesburgo para a Cidade do Cabo. Como os filhos de Jennings queriam escrever a história da família, eles os enviaram ao escritor americano Matthew Hart em Nova York.

Hart procurou a Universidade de Brown para entender a importância dos documentos. A instituição, por sua vez, foi atrás do colombiano Jerónimo Pizarro, hoje uma das principais autoridades na obra pessoana. Pizarro pediu para Carlos Pittella-Leite e Patrício Ferrari viajarem a Nova York para avaliar os documentos.

“Esses papéis ficaram fora de circulação por 23 anos. Fiquei surpreso ao ver como era volumosa a quantidade de escritos sobre Pessoa, traduções, contos e as memórias do meu pai”, afirma o geólogo Christopher Jennings, filho do intelectual.

POEMAS INÉDITOS

Poema inédito de Pessoa traduzido por Hubert Jennings

Às vezes, repentinamente olhando pra cima, acho
Ter compreendido a forma vazia das coisas
Outro aspecto que o absurdo
Toma-me um repentino terror
Havia olhos em tudo -onde estão as coisas agora?
Havia um mal misterioso na sem vida das Presenças…
Tudo era mais Deus, mais Vida, do que é agora.
Onde está o ouvir deste sempre amanhecer
_[quando olhei para cima demasiado repentinamente?_
O que está escondido de mim que é tudo?
A mão que repentinamente nublou quando olhei o que continha?
Ou podem os homens virar a esquina do Ver e do Ouvir
E buscar o mistério das coisas?
(Tradução de Patricio Ferrari)

Transcrição de poema de Pessoa

O que há de errado com o que há de certo em meu coração é outra
Coisa bem diferente de (…)
Minha dor não é por não ser pai
Minha dor é mesmo por não poder ser mãe
Apenas ser mãe preencheria sem perder uma gota
O copo de doçura que aguarda em mim

LEIA CARTAS DESCOBERTAS

Carta de Michael, meio-irmão de Pessoa, a Hubbert Jennings

Em carta enviada a Hubert Jennings, Luiz Miguel Nogueira Rosa, o Michael, irmão do poeta, comenta poemas ingleses inéditos de Pessoa que tinha enviado ao intelectual -e discute um possível livro de Jennings. O documento permitiu traçar a autoria de um texto anônimo no acervo de Manuela Nogueira, sobrinha de Pessoa, como sendo do próprio Jennings. Na carta, Michael reclama de “Obra e Vida de Fernando Pessoa”, de José Gaspar Simões, por este dizer que o poeta era um bêbado. “É verdade que ele bebia muito, mas nunca foi visto bêbado”, escreve Michael.

Carta de Teca, meia-irmã de Pessoa

Em carta, Henriqueta Madalena Nogueira dos Santos Rosa, a Teca, conta a Hubert Jennings a infância do poeta logo depois de a família voltar da África do Sul para Lisboa. Fica-se sabendo que Fernando Pessoa morria de medo de trovões e costumava se esconder em lugares escuros durante tempestades. Também era amado pelas crianças, por deixar a sobrinha encher sua cara de espuma para barbeá-lo. Teca relata ainda que amigos reclamavam do isolamento do autor. “Era ele que escolhia a reclusão, mesmo vivendo com outros”, escreve.

Redação

9 Comentários

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  1. Conceitos

    O homem de sensibilidade justa e reta razão

    Fernando Pessoa

    Foto: Trey Ratcliff

    Todo o dia, em toda a sua desolação de nuvens leves e mornas, foi ocupado pelas informações de que havia revolução.

    Estas notícias, falsas ou certas, enchem-me sempre de um desconforto especial, misto de desdém e de náusea física. Dói-me na inteligência que alguém julgue que altera  alguma coisa agitando-se. A violência, seja qual for, foi sempre para mim uma forma esbugalhada de estupidez humana. Depois, todos os revolucionários são estúpidos, como, em grau menor, porque menos incómodo, o são todos os reformadores.

    Revolucionário ou reformador — o erro é o mesmo. Impotente para dominar e reformar a sua própria atitude para com a vida, que é tudo, ou o seu próprio ser, que é quase tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador, é um evadido. Combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emenda   possível.

    [video:https://youtu.be/OgEZfn84j-Y width:600]

    O homem de sensibilidade justa e reta razão, se se acha preocupado com o mal e a injustiça do mundo, busca naturalmente emendá-la, primeiro, naquilo em que ela mais perto se manifesta; e encontrará isso no seu próprio ser. Levar-lhe-á essa obra toda a vida.

    Tudo para nós está no nosso conceito do mundo; modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós, isto é, é modificar o mundo, pois ele nunca será, para nós, senão o que é para nós. Aquela justiça íntima pela qual escrevemos uma página fluente e bela, aquela reformação verdadeira, pela qual tornamos viva a nossa sensibilidade morta — essas coisas são a verdade, a nossa verdade, a única verdade. O mais que há no mundo é paisagem, molduras que enquadram sensações nossas, encadernações do que pensamos. E é-o quer seja a paisagem colorida das coisas e dos seres — os campos, as casas, os cartazes e os trajos — quer seja a paisagem incolor das almas monótonas, subindo um momento à superfície em palavras velhas e  gestos gastos, descendo outra vez ao fundo na estupidez fundamental da expressão humana.

    [video:https://youtu.be/woOHbbaj6fM width:600]

    Revolução? Mudança? O que eu quero deveras, com toda a intimidade da minha alma, é que cessem as nuvens átonas que ensaboam cinzentamente o céu; o que eu quero é ver o azul começar a surgir de entre elas, verdade certa e clara porque nada é nem quer.

    Fernando Pessoa – Livro do Desassossego

    1. Pessoa era politicamente equivocado…

      … e conformado com a ordem das coisas. Centrado em suas sensações  – mas sobretudo em si-mesmo – enche o saco a quantidede poemas em que  repete a ladainha de sonho, vazio, ausência de sentido, o seu Nada e o seu não-ser.  Há naturalmente grandes poemas, mas sucumbe  com seu misticismo ao  mundo da representação –  ao Herme(s)tismo que busca ‘atrás das estrelas’ explicar a ordem das coisas dizendo que  “o que está em cima, está embaixo”, o que só pode resultar em passividade, , reação às mudanças e glosas do tipo  “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Não Fernando, nem tudo vale a pena.

  2. regra geral nesse………………….”mundo incompreensível”

    para ser poupado de qualquer sofrimento, sendo mais uma outra pessoa apenas, invente um resgate para si mesmo,

    ou torna compreensíveis aos outros as que não existem como outras

  3. impressionante…

    como quase tudo que foi escrito, assim foi da mesma forma que a compreensão se desenvolvia

    sistemas escritos que se desenvolvem como na ciência do universo, calculados

    mas sempre após observações

  4. A Plácida Face Anónima de um Morto

    A plácida face anónima de um morto. 

    Assim os antigos marinheiros portugueses, 
    Que temeram, seguindo contudo, o mar grande do Fim, 
    Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos, 
    Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda. 

    O que é que os taipais do mundo escondem nas montras de Deus? 

    Álvaro de Campos, in “Poemas” 
    Heterónimo de Fernando Pessoa 

     15/10/1890

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