Thich Quang Duc, o monge budista que acelerou o fim da Guerra do Vietnã por Sebastião Nunes

Segue uma nova, mais velha do que a serra. O importante é que confronta duas situações-limites de conflito, no Vietnã e no Brasil, comparando as canalhices.

Thich Quang Duc, o monge budista que acelerou o fim da Guerra do Vietnã

por Sebastião Nunes

Em 10 de junho de 1963, circulava em Saigon a notícia de que algo importante iria acontecer no dia seguinte, diante da embaixada do Camboja.

Em 11 de junho, cerca de 350 monges (o budismo contava então com cerca de 80% de praticantes ou simpatizantes entre a população local) começaram a protestar contra o governo de Ngo Dinh Diem, “presidente” imposto, anticomunista ferrenho (assassinou perto de 50 mil opositores e manteve presos outros 75 mil). Segundo fontes bem informadas, era pau-mandado dos Estados Unidos, quando estes assumiram o papel de “protetor” do Vietnã do Sul contra o Vietnã do Norte.

Diem, até ser assassinado pela CIA, descartado numa queima de arquivo depois de cumprir as ordens dos patrões norte-americanos, se destacou por virtudes tipicamente ditatoriais de autoritarismo, perseguição religiosa, nepotismo e corrupção. Lembrando o que se dá no Brasil com filhos e amigos de Bolsonaro, dois de seus irmãos comandavam exércitos privados e polícias secretas (leia-se milícias) no interior do país. Outro irmão foi nomeado embaixador nos EUA, enquanto o mais velho era arcebispo de Hué (cidade quase na fronteira entre o Vietnã do Norte e o do Sul). Paralelamente, o mais novo fazia e acontecia, contrabandeando arroz, explorando loterias, extorquindo negociantes de Saigon. Como resultado de tudo isso, tornou-se o homem mais rico do país. Como Diem era solteiro, a mulher desse riquíssimo irmão, Madame Nhu, tornou-se oficialmente a primeira-dama, dirigindo programas sociais, ideológicos e religiosos, com o objetivo de reformar a sociedade dentro dos padrões pró-católicos do fantoche Diem (como família a serviço dos próprios interesses, até parecem ancestrais do “nosso” Jair Messias).

 

A GUERRA VISTA DE LONGE

Philip Roth, no livro “Pastoral americana”, descreveu assim os acontecimentos que se seguiram, diante da embaixada do Camboja no dia 11:

“O monge tinha setenta e poucos anos, magro, cabeça raspada, e vestia um manto cor de açafrão. De pernas cruzadas e costas eretas, sentado com elegância diante de uma multidão de monges que se reuniram ali a fim de testemunhar o evento, como se fossem participar de um ritual religioso, o monge ergueu um grande vasilhame de plástico, derramou gasolina ou querosene, o que fosse, sobre si mesmo e encharcou o asfalto à sua volta. Depois riscou um fósforo e um nimbo de chamas enfurecidas subiu em ondas do seu corpo.”

“(…) e lá na rua de alguma cidade do Vietnã do Sul aquele monge de cabeça raspada de algum modo dava a impressão de que as chamas, em vez de o atacarem de fora, estavam disparando de dentro dele para o ar em volta, não apenas da boca, no entanto, mas em uma erupção instantânea do crânio careca, do rosto, do peito, do colo, das pernas, dos pés. Como ele permanecesse perfeitamente ereto, sem dar o menor o menor sinal de que se sentia ardendo em chamas, como não mexia sequer um músculo, muito menos gritasse, a princípio deu a impressão de que se tratava de um truque de circo, como se o que estava sendo consumido pelo fogo não fosse o monge, mas sim o ar; o monge teria ateado fogo ao ar e nenhum dano o afetaria. Sua postura permaneceu exemplar, a postura de alguém absolutamente longe dali, levando uma outra vida, um servo dedicado à contemplação abnegada, meditativa, serena, um mero elo na cadeia do ser, intocado pelo que pudesse estar lhe acontecendo diante dos olhos do mundo inteiro. Nenhum grito, nenhuma contorção, apenas sua calma no coração das labaredas – nenhuma dor registrada em ninguém sob o foco da câmera. (…)”

“De repente, despencando do nada bem no meio da sala, o nimbo de chamas, o monge impassível e a súbita liquefação, antes que ele tombasse de lado.”

 

A GUERRA VISTA DE PERTO

O repórter David Halberstam, do The New York Times, viu de maneira bem diferente os acontecimentos, conforme relatou em reportagem:

“Duc chegou de carro ao local, acompanhado de outros dois monges, um dos quais desembarcou com uma almofada nas mãos, que colocou no meio de um cruzamento, e outro que tirou um galão de gasolina do porta-malas do veículo.”

“Duc se sentou placidamente sobre a almofada e adotou a posição de lótus – usada para momentos de meditação – em meio à multidão. Em seguida, um dos monges despejou o conteúdo sobre a cabeça de Duc que, nesse momento, apenas se pôs a manipular as contas de oração que tinha nas mãos e a recitar uma prece. Então, diante dos olhos de todos, riscou um palito de fósforo e começou a queimar.” (A foto que mostra o monge em chamas foi captada pelo fotógrafo Malcolm Browne e colorizada por mim.)

“Duc não moveu um músculo sequer nem emitiu qualquer som. Permaneceu imóvel enquanto o fogo consumia seus robes de monge e seu corpo, e só saiu da posição de lótus depois de morrer e seu cadáver tombar para trás. A coisa toda durou cerca de 10 minutos.”

Dizem que o coração de Thich Quang Duc permaneceu intacto, tornando-se uma relíquia entre os budistas. Sabe-se que a turbulência que se seguiu à auto-imolação de Duc levou à derrubada e morte de Diem em novembro de 1963 e ao fim da guerra, em 30 de abril de 1975, depois de anos e anos de atrocidades por parte do exército norte-americano e de desesperada defesa e contra-ataque pelos guerrilheiros vietcongues.

Sebastiao Nunes

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