Um conto de Natal pernambucano, comentário de Valério Carvalho

Morreu de amor, muitos disseram. Jamais se saberá se é assim mesmo que acontece o regresso ao vazio

Por Valério Carvalho
Comentário no post Um canto cantalão de Natal

Um conto de Natal pernambucano

Em 1940, tudo corria bem para Chico. Ele ganhava a vida mercadejando farinha, feijão e milho produzidos em Camocim de S. Félix; vendia na ‘praia’ e de lá trazia coco, peixe e camarão. Vivia disso, do comércio de secos entre o agreste e o litoral; guiava animais de carga para transporte. Quase sempre a jornada iniciada numa segunda-feira era concluída na outra.

Recebeu de batismo o nome de Francisco Apolinário; com sua mulher, Quitéria, e seus filhos, Lia, dois anos, e José, sete meses, todos viviam a rotina dos justos… até chegar o infeliz tempo de seu infortúnio e tristeza.

No sábado catorze de dezembro, Quitéria teve um mal-estar logo de manhã e ficou o dia acamada, o que não era coisa comum para quem tinha saúde, energia e disposição. Chico ficou preocupado e desistiu da viagem prevista, que seria a última planejada para aquele ano. Entretanto, no domingo Quitéria teve aparente melhora e falou que prosseguisse o seu intento. Assim incentivado, lá foi cumprir o seu mister acreditando, ou forçando-se a crer, na recuperação da sua companheira. Embora um pouco receoso, ainda tinha de dar conta dos compromissos.

A ausência, a distância e o desassossego faziam do desconforto uma companhia que estendia o tempo; o caminho de volta parecia perdido em curvas d’estrada.

Havia uma menina (sobrinha de Quitéria) acostumada a esperar ansiosa o retorno do almocreve. Ela sabia, de outras oportunidades, que Chico marcava o regresso estalando o chicote ao longe, mais ainda quando descia a última ladeira e se aproximava de casa. Aquele sinal encantava Maria, na alegria dos seus cinco anos; isso a fazia correr em disparada ao seu encontro. A volta tornava o cansaço feliz; era agradável vê-la contente em torno de si. Trazia mimos de seu agrado, confeitos, pedaços de coco, camarões secos transformados em presente valioso. Assim os dois compartilhavam seus sorrisos.

Porém na segunda-feira antevéspera do Natal, Maria não foi ao seu encontro; um extenso silêncio foi sua recepção. A estrada vazia, nenhuma resposta de Quitéria, nem um barulho de criança… Isso o intimidou, e a desconfiança de notícia ruim abateu seu ânimo.

Algum tempo passou até a chegada de Luizinha, mãe de Maria. Chorando, ela contou que sua mulher havia morrido no sábado e sido enterrada no domingo.

Sem reação aparente, o viúvo, mergulhado na tristeza, retirou, silente, a carga dos animais, encheu os bornais de ração, olhou em frente sem nada ver… Emudeceu por longo tempo. Depois, pediu à vizinha que cuidasse dos filhos… Iria dar a trágica notícia à sua família.

Passaram alguns dias quando se soube que estava muito doente na casa do pai; de lá não mais voltou. Um mês após a morte de sua Quitéria, em vinte e um de janeiro de mil novecentos e quarenta e um, Chico foi ao seu encontro.

Morreu de amor, muitos disseram. Jamais se saberá se é assim mesmo que acontece o regresso ao vazio.

A menininha que costumava aguardar na estrada e que não pôde ir ao encontro do último regresso do viajante, porque sua mãe a impediu, nunca deixou de encontrar os que ficaram no tempo de sua infância –habitam nas lembranças enraizadas em seu coração.

(a José e Maria)

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Valério Carvalho

Redação

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